O PAPADO: ORIGEM E EVOLUÇÃO
HISTÓRICA
Alderi Souza de Matos
Desde uma perspectiva protestante, o papado não é uma
instituição de origem divina, mas resultou de um longo e complexo
processo histórico. As Escrituras não dão apoio a essa
instituição como uma ordenança de Cristo à sua
igreja. É verdade que o Senhor proferiu a Pedro as bem conhecidas
palavras: "Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha igreja" (Mt
16.18). Todavia, isto está muito longe de declarar que Pedro seria o
chefe universal da igreja (o primado de Pedro) e que a sua autoridade seria
transmitida aos seus sucessores (sucessão apostólica). As
primeiras gerações de cristãos não entenderam as
palavras de Cristo dessa maneira. Tanto é que não se vê em
todo o Novo Testamento qualquer noção de que Pedro tenha ocupado
uma função especial de liderança na igreja primitiva. No
chamado "Concílio de Jerusalém", narrado no capítulo 15 de
Atos dos Apóstolos, isso não aconteceu, e o próprio Pedro
não reivindica essa posição em suas duas epístolas.
Antes, ele se apresenta como apóstolo de Jesus Cristo e como um
presbítero entre outros (1 Pe 1.1; 5.1).
Mais difícil ainda é estabelecer uma relação
inequívoca entre Pedro e os bispos de Roma. Os historiadores não
vêem uma base absolutamente segura para afirmar que Pedro tenha estado em
Roma, quanto mais para admitir que ele tenha sido o primeiro bispo daquela
igreja. Ademais, é um fato bem estabelecido que não houve
episcopado monárquico no primeiro século. As igrejas eram
governadas por colegiados de bispos ou presbíteros (ver Atos 20.17 e 28;
Tito 1.5 e 7).
Ao mesmo tempo, não se pode deixar de reconhecer que ainda na igreja
antiga os bispos de Roma alcançaram grande preeminência, que o
papado em muitas ocasiões prestou serviços crucialmente relevantes
à igreja e à sociedade e que muitos papas foram homens de grande
piedade, integridade moral, saber teológico e habilidade administrativa.
Ao longo dos séculos, muitos dos principais eventos da história da
igreja nas áreas da teologia, organização
eclesiástica e relações entre a igreja e a sociedade
tiveram conexão com a instituição papal. Originalmente, a
palavra grega papas ou a latina papa foi aplicada a altos oficiais
eclesiáticos de todos os tipos, especialmente aos bispos. A partir de
meados do quinto século passou a ser aplicada quase que exclusivamente
aos bispos de Roma. Foram múltiplos e complexos os fatores que levaram ao
reconhecimento de que esses bispos detinham autoridade suprema sobre a igreja
ocidental.
Em primeiro lugar, há que se destacar a importância crescente
da igreja local de Roma desde o primeiro século. O livro de Atos dos
Apóstolos termina com a chegada de Paulo a Roma. O apóstolo aos
gentios escreveu a principal de suas epístolas a essa igreja e no segundo
século surgiu uma tradição insistente de que tanto Paulo
como Pedro, os dois apóstolos mais destacados, haviam sido martirizados
naquela cidade. Além disso, já numa época remota a igreja
de Roma tornou-se a maior, a mais rica e a mais respeitada de toda a cristandade
ocidental. Outro fator que contribuiu para a ascendência da igreja romana
e do seu líder foi a própria centralidade e importância da
capital do Império Romano. Ao contrário da região oriental,
em que várias igrejas (Alexandria, Jerusalém, Antioquia e
Constantinopla) competiam pela supremacia em virtude de sua antiguidade e
conexões apostólicas, no ocidente a igreja de Roma desde o
início foi praticamente a líder inconteste. Outrossim, a partir de
Constantino muitos imperadores romanos fizeram generosas concessões
àquela igreja, buscaram o conselho dos seus bispos e promulgaram leis que
ampliaram a autoridade dos mesmos.
Outro elemento importante é que desde cedo a igreja romana e os seus
líderes reivindicaram, direta ou indiretamente, certas prerrogativas
especiais. No final do primeiro século (ano 96), o bispo Clemente enviou
em nome da igreja de Roma uma carta à igreja de Corinto para
aconselhá-la e exortá-la quanto a alguns problemas que a mesma
estava enfrentando. Um século depois, o bispo Vítor (189-198)
exerceu considerável influência na fixação de uma
data comum para a Páscoa, algo muito importante face à
centralidade da liturgia na vida da igreja. As consultas entre outros bispos e
Roma também datam de uma época antiga, embora a primeira decretal
oficial (carta normativa de um bispo de Roma em resposta formal à
consulta de outro bispo) só tenha surgido em 385, com o papa
Sirício. Por volta de 255, o bispo Estêvão utilizou a
passagem de Mateus 16.18 para defender as suas idéias numa disputa com
Cipriano de Cartago. E Dâmaso I (366-84) tentou oferecer uma
definição formal da superioridade do bispo romano sobre todos os
demais.
Essas raízes da supremacia eclesiástica romana foram
alimentadas pelas atividades capazes de muitos papas. No quinto século
destaca-se sobremaneira a figura de Leão I (440-61), considerado por
muitos "o primeiro papa". Leão exerceu um papel estratégico na
defesa de Roma contra as invasões bárbaras e escreveu um
importante documento teológico sobre a pessoa de Cristo (o Tomo)
que exerceu influência decisiva nas resoluções do
Concílio de Calcedônia (451). Além disso, ele defendeu
explicitamente a autoridade papal, articulando mais plenamente o texto de Mateus
16.18 como fundamento da autoridade dos bispos de Roma como sucessores de Pedro.
Seu sucessor Gelásio I (492-96) expôs a célebre teoria das
duas espadas: dos dois poderes legítimos que Deus criou para governar no
mundo, o poder espiritual – representado pelo papa – tinha
supremacia sobre o poder secular sempre que os dois entravam em
conflito.
O apogeu do papado antigo ocorreu no pontificado do notável
Gregório I ou Gregório Magno (590-604), o primeiro monge a ocupar
o trono papal. Sua lista de realizações é impressionante.
Ele supervisionou as defesas romanas contra os ataques dos lombardos, realizou
complicadas negociações com o imperador bizantino, saneou as
finanças da igreja e reorganizou os limites e responsabilidades das
dioceses ocidentais. Ele foi também um dedicado estudioso das Escrituras:
suas exposições bíblicas, especialmente um
comentário do livro de Jó, foram muito lidas em toda a Idade
Média. Seus escritos sobre os deveres dos bispos deram forte ênfase
ao cuidado pastoral como uma atividade prioritária. Ele reformou a
liturgia, regularizou as celebrações do calendário
cristão e promoveu a música sacra ("canto gregoriano").
Finalmente, Gregório foi um grande promotor de missões, enviando
missionários para vários centros estratégicos do norte e do
oeste da Europa e expandindo a área de jurisdição do
papado.
Um momento especialmente significativo na evolução do papado
ocorreu no Natal do ano 800, quando o papa Leão III coroou Carlos Magno
como sacro imperador romano. A esta altura, a complexa associação
dos elementos citados (e outros mais) havia criado uma situação na
qual o bispo romano era amplamente considerado o principal personagem
eclesiástico do ocidente, bem como o representante do cristianismo
ocidental junto ao oriente. Algumas décadas antes, o pai de Carlos Magno
havia cedido à igreja os amplos territórios do centro e norte da
Itália que vieram a constituir os estados pontifícios. Isso fez
dos papas governantes seculares como os demais soberanos europeus. Por
vários séculos, os papas teriam um relacionamento estreito e
muitas vezes altamente conflitivo com esses soberanos. Mas a sua autoridade como
líderes máximos da igreja ocidental não seria
questionada.
O papado também teve seus períodos sombrios, marcados por
imoralidade e corrupção. Um desses períodos ocorreu entre o
final do século IX e o início do século XI, quando a
instituição papal foi controlada por poderosas famílias
italianas. A história revela que um terço dos papas dessa
época morreu de forma violenta: João VIII (872-882) foi espancado
até a morte por seu próprio séquito; Estêvão
VI (885-891), estrangulado; Leão V (903-904), assassinado pelo sucessor,
Sérgio III (904-911); João X (914-928), asfixiado; e
Estêvão VIII (928-931), horrivelmente mutilado, para não
citar outros fatos deploráveis. Parte desse período é
tradicionalmente conhecida pelos historiadores como "pornocracia", numa
referência a certas práticas que predominavam na corte
papal.
A partir de meados do século XI, surgiram vários papas
reformadores que procuraram moralizar a administração da igreja,
lutando contra vários males que a assolavam. O mais notável foi
Hildebrando ou Gregório VII (1073-1085), que notabilizou-se por sua luta
contra a simonia, ou seja, o comércio de cargos eclesiásticos, e
ficou célebre por sua confrontação com o imperador
alemão Henrique IV. Ele escolheu como lema do seu pontificado o texto de
Jeremias 48.10: "Maldito aquele que fizer a obra do Senhor relaxadamente".
Todavia, o ápice do poder papal ocorreu no pontificado de Inocêncio
III (1198-1216), considerado o papa mais poderoso de todos os tempos, aquelo
que, mais do que qualquer outro, concretizou o ideal da "cristandade", ou seja,
uma sociedade plenamente integrada sob a autoridade dos reis e especialmente dos
papas. Ele foi o primeiro a utilizar o título "vigário de Cristo",
ou seja, o papa era não somente o representante de Pedro, mas do
próprio Senhor. Seus sucessores continuaram por algum tempo a fazer
ousadas reivindicações de autoridade sobre toda a sociedade, sem
contudo transformá-las em realidade como o fizera
Inocêncio.
Novo período de declínio e desmoralização do
papado ocorreu no século XIV e início do século XV.
Primeiro, os papas residiram na cidade de Avinhão, ao sul da
França, por mais de setenta anos (1305-1378), colocando-se sob a
influência dos reis franceses. Esse período ficou conhecido como "o
cativeiro babilônico da igreja". Em seguida, por outros quarenta anos
(1378-1417), houve dois e finalmente três papas simultâneos (em
Roma, Avinhão e Pisa), no que ficou conhecido como "o grande cisma". Essa
situação embaraçosa foi sanada por vários
concílios reformadores, especialmente o de Constança, que
reivindicaram autoridade igual ou mesmo superior à dos papas. Em
reação, estes reafirmaram ainda mais enfaticamente a sua
autoridade suprema sobre a igreja.
O final do século XV e início do século XVI
testemunhou o pontificado dos chamados "papas do renascimento", os quais, ao
contrário de muitos de seus predecessores ou sucessores, tiveram escassas
preocupações espirituais e pastorais. Como papa Alexandre VI
(1492-1503), o espanhol Rodrigo Borja dedicou-se prioritariamente a promover as
artes e a embelezar a cidade de Roma; Júlio II (1503-1513) foi um papa
guerreiro, comandando pessoalmente o seu exército; e Leão X
(1513-1521) teria dito ao ser eleito: "Agora que Deus nos deu o papado, vamos
desfrutá-lo". Foi ele quem despertou a indignação do monge
agostiniano Martinho Lutero ao autorizar a venda de indulgências para
concluir as obras da Catedral de São Pedro. O resultado dessa
indignação é conhecido de todos.