ABRAHAM KUYPER: “A minha
glória não darei a outrem”
Pr. Franklin
Ferreira, RJ
UM TEMPO DE CONVULSÃO POLÍTICA E SOCIAL
Mesmo despontando hoje como uma grande força política, por
causa de seu crescimento, os evangélicos brasileiros continuam nutrindo
aversão à política. Principalmente por esta estar associada
a homens corruptos, cristãos de campanha, mentiras eleitoreiras,
apostasia, satisfação de interesses pessoais, que deixam o eleitor
desconfiado das reais motivações que levam determinado candidato a
lutar tanto por tal cargo. Unido a isto, temos uma fé afastada dos
negócios do mundo, e então temos os destinos da sociedade entregue
a incrédulos. Precisamos de um evangelho integral, que tenha uma palavra
de juízo e graça para todas as esferas da vida humana,
manifestando o Reino de Deus em nosso mundo. Um homem que é um modelo
como um evangélico envolvido na política é Abraham Kuyper,
e, segundo D.M. Lloyd-Jones, a obra deste homem “se ergue como um grande
monumento à única oposição verdadeira a toda a
idéia que está por trás da Revolução
Francesa.”
A Revolução Francesa, ocorrida no final do século
XVIII, criou sua própria religião, chamada a princípio de
“Culto à Razão” e depois “Culto ao Ser
Supremo”. Seus líderes achavam que a ciência e a razão
inaugurariam uma nova era, tendo então uma política fortemente
anti-cristã. Tudo que era cristão foi abolido. O homem se tornou o
centro, não Deus. Não somente em questões ligadas ao
Estado, como também em questões de religião. Criou-se um
novo calendário e novas cerimônias ocuparam o lugar das antigas
datas religiosas, e cultuava-se simultaneamente Jesus, Sócrates, Rousseau
e Voltaire. O lema francês desta época era “Nem Deus nem
mestre”, e mais tarde, por onde os exércitos de Napoleão
Bonaparte passaram, deixaram esta idéia como legado. A vizinha Holanda,
anteriormente uma fortaleza da fé bíblica, também foi
influenciada por estes acontecimentos. Seu recém-coroado rei, o
autoritário William I, buscou controlar a Igreja Reformada Holandesa,
enfraquecendo sua doutrina, por meio do favorecimento da teologia liberal (tendo
como princípio a negação de tudo que aparentasse ser
miraculoso, como a inspiração e inerrância bíblica, a
divindade de Cristo e sua ressurreição) que começava a
chegar nas faculdades de Teologia.
SUA PEREGRINAÇÃO ESPIRITUAL
Abraham Kuyper nasceu no meio desta convulsão, na Holanda, em 1837,
em Maassluis, filho de um ministro da Igreja Reformada Holandesa. Fez seu curso
superior na Universidade de Leiden, onde recebeu seu grau de Doutor em Teologia
em 1862. Quando estudante, absorveu muitas idéias antibíblicas
adotadas por seus professores liberais. Em 1871 ainda lembrava, diante dos
alunos da Universidade Livre, sua petulância espiritual, causa de seus
deslizes passados: “Em Leiden eu me achava entre os que aplaudiram
calorosa e ruidosamente quando nosso professor manifestou sua ruptura total com
a fé na ressurreição de Cristo”, acrescentando
porém: “Hoje a minha alma treme por causa de desonra que outrora
infligi a meu Salvador”. Ele também escreveu mais tarde: “No
mundo acadêmico eu não tinha defesa contra os poderes da
negação teológica. Fui roubado da fé da minha
infância. Era inconverso, arrogante e aberto a dúvidas.” A
despeito disto, ele foi ordenado pastor de uma congregação em
Beesd, um povoado de Gelderland, onde permaneceu por quatro anos. Durante seu
pastorado em Beesd, Kuyper ministrou a pessoas que permaneceram fiéis a
Cristo, algumas das quais possuíam um notável conhecimento das
Escrituras. Kuyper disse mais tarde: “Quando sai da universidade e fui
para lá
{Beesd}, meu
coração estava vazio.” Mas não permaneceu vazio, pois
os membros de sua congregação oraram pelo seu pastor e assistiram
à sua conversão. Uma jovem camponesa, Pietje Baltus, fazia
objeções à pregação de Kuyper, e a sua
influência alterou a vida dele para sempre. Esta jovem testemunhou a seu
pastor sobre a graça de Deus em sua vida. Estimulou-o a estudar as
confissões de fé reformadas, e expôs para seu pastor a
Palavra de Deus. Ele se converteu, e depois testificou que ela e outros em Beesd
foram os meios que Deus usou para levá-lo a Cristo. No estudo dos
escritos dos reformadores ele conseguiu fortes argumentos bíblicos para
fazer frente à influência da teologia liberal de sua
época.
Em 1870, Abraham Kuyper mudou-se para Amsterdã, para se tornar
pastor da famosa Nieuwekerk. Aquela cidade fora um baluarte da teologia
liberal, mas multidões, que apreciavam o calor e paixão de sua
ortodoxia vinham ouvir as pregações de Kuyper. Ele falou de seu
sonho para a igreja holandesa: “A igreja que eu quero é reformada e
democrática, livre e independente, e também totalmente organizada
no ensino doutrinário, no culto formal e no ministério
pastoral.” Ele exortava os cristãos a adotarem o princípio
da “purificação e desenvolvimento contínuos. A Igreja
Reformada está sempre reformando-se diante de Deus.” Por esta
época, ele já era um dos líderes da ala ortodoxa da Igreja
Reformada Holandesa. Ele trabalhou para ter uma igreja livre do controle do
Estado, que poderia reformar-se e assim recuperar seu estado anterior. Para
Kuyper, os cristãos de todas as épocas precisam ser constantemente
vigilantes para preservarem a pureza da igreja de Cristo, pois
“Satanás se opõe a Deus e, no desespero de sua
impotência, imita tudo o que Deus faz, para ver se consegue destruir o
Reino de Deus com os próprios instrumentos de Deus.”
Tendo um grande interesse na pureza da igreja visível, Kuyper seguia
os reformadores, vendo a pregação da Palavra e a correta
administração das ordenanças como as marcas da igreja
verdadeira. Embora nenhum grupo cristão mantenha perfeitamente estas
marcas, as falsas igrejas descartam a Palavra de Deus, pervertem o uso das
ordenanças e opõem-se aos que amam a verdade, e em seu entender, a
separação de tal igreja é necessária quando ela
impede que seus membros obedeçam a Deus. Ele afirmou:
“Satanás cria uma igreja para o Anticristo subvertendo as igrejas
cristãs existentes”. James E. McGoldrick, professor de
História no Coderville College, EUA, resume o pensamento de Kuyper sobre
este assunto da seguinte forma: “Você não deve retirar o seu
amor da sua igreja só porque ela está doente ou incapacitada, o
fato de estar enferma clama por sua maior compaixão. Somente quando
estiver morta e deixar de ser a sua igreja, e quando os gases venenosos da falsa
igreja ameaçarem matá-lo, fuja do seu toque e retire dela o seu
amor.” Como Kuyper mesmo disse: “Ninguém deve deixar a sua
igreja a menos que tenha certeza de que ela se tornou a sinagoga de
Satanás.” A degeneração da Igreja Reformada
começou com indiferença doutrinária, descambando para a
heresia e mau testemunho de seus membros. Como não ocorreram as
mudanças que Kuyper e seus amigos queriam - antes, seus
adversários se tornaram mais intransigentes - cerca de duzentas
congregações (170.000 crentes!) formaram “A Igreja dos
Tristes” (por causa da tristeza de terem de retirar-se de suas igrejas) em
1886. Ele escreveu muitos livros e artigos sobre teologia, filosofia,
política, arte e questões sociais, nos quais procurava expressar
um conceito cristão do mundo e da vida.
SEU ENVOLVIMENTO NA EDUCAÇÃO
Em seus esforços para reformar a igreja, Kuyper entendeu que a
educação teológica era da maior importância, e a
Universidade Livre de Amsterdã foi a resposta ao liberalismo que havia
infectado as faculdades da Igreja Reformada. Quando a Universidade Livre iniciou
suas atividades em 1880, Abraham Kuyper declarou em seu discurso inaugural:
“Não existe sequer um centímetro de nossa natureza humana do
qual Cristo, que é soberano de tudo, não proclame
‘Meu!’” Ele afirmou ainda que o cristão
“não pensa por um só momento em se limitar à teologia
e à contemplação, deixando as outras ciências como
personagens inferiores, nas mãos dos não-crentes”, pelo
contrário, “considerando isso como seu tema para conhecer Deus em
todos os seus trabalhos, está consciente de ter sido chamado para
penetrar com toda a energia do seu intelecto nas questões terrestres,
tanto quanto nas questões celestiais”. Seu sermão estava
baseado em Isaías 48.11: “A minha glória não darei a
outrem”, indicando que quando nos omitimos na esfera educacional, deixando
que Satanás proclame as suas filosofias abertamente e sem
contestação, enquanto passivamente assistimos seus avanços
em todas as esferas, estamos fazendo justamente o que Deus expressa não
permitir: deixamos que sua glória seja dada a outrem! Esta Universidade
foi fundada como o meio principal de promover uma reforma da igreja e da
sociedade, alcançando “a restauração da verdade e da
santidade no lugar do erro e do pecado.” Por acreditar que toda verdade
vem de Deus, e que cada centímetro da criação pertence a
Cristo, ele não apenas estabeleceu uma escola de teologia, mas uma
universidade na qual todo o currículo, todas as artes e ciências
eram parte de uma cosmovisão bíblica. Kuyper ensinou ali teologia,
homilética, hebraico e literatura.
SUA VISÃO POLÍTICA
Sua crescente preocupação acerca das questões sociais
e políticas da Holanda lançou-o na vida política. Em 1874
foi eleito ao parlamento como representante do recém-formado Partido
Anti-Revolucionário, que foi o primeiro partido político moderno
da Holanda. Para se candidatar, afastou-se do ministério. Em 1900, o
partido Anti-Revolucionário chegou ao poder, e Kuyper se tornou
primeiro-ministro. Seus alvos políticos abrangiam a extensão do
voto, o reconhecimento do Estado sobre o direito dos cristãos de
conduzirem suas próprias escolas e uma legislação social
que ajudasse a proteger o povo trabalhador. Em 1905, após uma amarga
campanha eleitoral, perdeu seu mandato, mas continuou a exercer sua
influência política como redator de um jornal político. O
objetivo deste diário era “elucidar todos os fatos concernentes ao
problema social..., abrir os olhos do povo para um governo que, de um lado,
provoca uma revolução que em seguida sufocará com sangue e,
de outro lado, causa condições sociais tão anormais que boa
parte da população mal consegue sobreviver.” Ele escreveu
neste jornal até pouco antes de sua morte, em 1920. Kuyper disse:
“O medo da política... não é cristão e
não é ético”. Apesar de ter perdido as duas primeiras
eleições que participou, não desistiu. “Conosco, o
que importa não é a influência que temos agora, mas a que
teremos daqui a cinqüenta anos... Quantos da próxima
geração serão seguidores dos nossos
princípios?” Sua teoria social e política da soberania de
Deus sobre todas as esferas da vida humana é uma tentativa de limitar o
poder de um Estado totalitário. Em seu pensamento, cada esfera da vida
humana (Família, Igreja, Estado) tem sua própria área de
responsabilidade, que é derivada diretamente de Deus, e as pessoas dentro
de cada esfera, são responsáveis apenas perante Deus. Este
princípio foi um baluarte contra toda forma de totalitarismo. Ele
entendia, então, que a função do Estado era preservar na
sociedade a justiça de Deus, como revelada em sua Palavra.
SUA VISÃO SOCIAL
Neste tempo, quando pensamos em ação social, podemos aprender
do pensamento de Kuyper nesta área. Em 1871, deixou clara a
compreensão de sua tarefa: “Lutar contra um mal social isolado ou
resgatar os indivíduos, embora excelente, é muito diferente de
agarrar o problema sócio-econômico em si com o sagrado entusiasmo
da fé”, reconhecendo que os interesses comerciais, e não
apenas os governamentais, podem oprimir os pobres. Falando no Parlamento, em
1874, defendeu a elaboração de um código de Leis que
protegessem o trabalhador, numa época em que tais códigos
não existiam. Em seguida, tirou do bolso um Novo Testamento e leu o texto
de Tiago 5.1-11. Em meio à reação escandalizada, disse:
“Se eu mesmo tivesse falado essas palavras, que lhes parecem radicais e
revolucionárias, vocês poderiam se opor. Mas foram escritas por um
apóstolo do Senhor. Como pode, pois, alguém confessar a Cristo e
não defender o trabalhador quando reclama?” Em outra
ocasião, afirmou: “Quando ricos e pobres se opõem uns aos
outros, [Jesus]
nunca fica do lado dos ricos, mas sempre do lado dos pobres... Ele se colocava
invariavelmente contra os poderosos e aqueles que viviam luxuosamente, e a favor
dos que sofriam e eram oprimidos.” André Bielér, professor
de Ciências Econômicas da Universidade de Genebra,
Suíça, diz: “É certo que o Evangelho não deixa
de encorajar à paciência aqueles que sofrem injustiças ou
que são oprimidos... Mas ter-se-á uma idéia muito falsa da
doutrina evangélica se pensar que a paciência e a caridade
cristãs sejam sinônimos de passividade diante da desordem social,
de complacência para com a injustiça ou de indiferença
diante da tirania. Muito pelo contrário. A luta contra toda forma de
opressão, seja política, econômica ou social, é uma
das exigências da Reforma, e decorre diretamente de sua teologia e de sua
concepção do homem.”
O CRISTÃO NUMA ÉPOCA REVOLUCIONÁRIA
Devemos ter mais cristãos se candidatando à política.
Agora, qual o perfil do candidato cristão? Precisamos cada vez menos de
pessoas despreparadas, amadoras, ingênuas ou desonestas, que são
eleitas por um voto corporativista, para representar os interesses de uma igreja
particular, para fazer favores, conseguir emprego, telha, terreno ou tijolo para
a congregação. Temos que ter, isto sim, mais pessoas preparadas,
que tenham uma formação bíblica sólida e abrangente,
que possam ir aos centros de decisão (sejam eles simples
associações comunitárias, sindicatos, partidos
políticos, assembléias legislativas ou palácios do governo)
representando o Senhor da glória, para expansão de Seu reino, e
para o bem comum da sociedade, sendo “sal da terra” e “luz do
mundo”. Como Abraham Kuyper, precisamos de cristãos que tenham o
desejo de termos uma igreja forte, ortodoxa e disciplinada e uma sociedade
justa. Que tenham o lema de Kuyper: “Estimar a Deus como tudo, e todos os
outros como nada.”