Paulo R. B. Anglada
Orare e labutare foram palavras empregadas por Calvino para resumir a sua concepção hermenêutica. Com estes termos ele expressou a necessidade de súplica pela ação iluminadora do Espírito Santo e do estudo diligente do texto e do contexto histórico, como requisitos indispensáveis à interpretação das Escrituras. Com o mesmo propósito, Lutero empregou uma figura: um barco com dois remos, o remo da oração e o remo do estudo. Com um só destes remos, navega-se em círculo, perde-se o rumo, e corre-se o risco de não chegar a lugar algum.
Palavras e figuras como estas revelam a consciência que os reformadores tinham do caráter divino-humano das Escrituras e o equilíbrio fundamental que caracteriza a hermenêutica reformada da Palavra de Deus.
O mesmo não ocorre hoje. O evangelicalismo brasileiro parece estar vivendo dias difíceis. Quando se considera a diversidade doutrinária e prática que, em geral, caracteriza as igrejas evangélicas no nosso país, talvez não seja descabido questionar até mesmo se o termo "evangélico" ainda tem algum sentido, se ainda se presta para distinguir um grupo definido de pessoas dentro da igreja cristã.
Pode haver muitas razões para tal estado de coisas. Mas, sem dúvida, a rejeição da sã doutrina é uma delas. Na prática, as igrejas evangélicas em geral não têm professado teologia precisa, sistemática, confessional e histórica. Mesmo as denominações mais tradicionais parecem estar se distanciando progressivamente das doutrinas e práticas reformadas que caracterizavam as igrejas protestantes do passado, e pelas quais muitos chegaram a dar suas vidas.
É convicção deste autor que boa parte desta descaracterização teológica e eclesiástica das igrejas evangélicas no nosso país se explica pelas hermenêuticas deficientes que têm regido a interpretação e pregação da Palavra de Deus. Também é convicção deste autor que a hermenêutica reformada das Escrituras é um modelo de interpretação bíblica capaz de promover, com a graça de Deus, a reforma teológica, litúrgica e eclesiástica que o evangelicalismo brasileiro necessita. Este é o assunto deste artigo.
O termo hermenêutica tem sido empregado em dois sentidos. Historicamente, nos compêndios clássicos de interpretação bíblica, designa a disciplina que, partindo de pressupostos básicos, estuda e sistematiza a teoria da interpretação das Escrituras, enquanto a exegese designa a prática. Neste sentido, o objetivo da hermenêutica é descobrir e sistematizar os princípios e métodos apropriados para a compreensão do sentido que o autor intentou transmitir aos seus leitores originais.
Mais recentemente, entretanto, estes termos têm sido usados com sentidos diferentes: exegese, para designar o estudo das Escrituras com vistas a descobrir o sentido original pretendido pelo autor, e hermenêutica, no sentido restrito da sua contemporaneidade. Ou seja, a exegese seria uma primeira tarefa histórica pela qual se busca compreender o que os leitores originais entenderam; enquanto que a hermenêutica seria uma tarefa teológica prática e posterior, na qual se busca compreender a relevância da sua mensagem para nós, hoje, no nosso contexto específico.1
Neste artigo estes termos são usados no sentido histórico mais comum: hermenêutica, designando a disciplina que estuda e sistematiza os princípios e técnicas, com as quais, partindo de determinados pressupostos, se busca compreender o sentido original do texto bíblico; exegese, designando a prática destes princípios e técnicas; e aplicação, designando a busca da relevância do texto ao nosso contexto específico. Isto é: tendo compreendido qual a mensagem do texto para os seus leitores originais, em que sentido esta mensagem é aplicável aos nossos dias e ao nosso contexto?
Convém esclarecer também que o termo reformada, não é empregado neste artigo para designar especificamente a hermenêutica dos reformadores. Não se pretende aqui fazer uma descrição específica e detalhada da hermenêutica desenvolvida e praticada por Lutero, Melanchton, Calvino e outros. O termo também não se refere à denominação reformada (ramo da reforma como ficou conhecido especialmente na Europa). O termo hermenêutica reformada, neste trabalho, refere-se a uma corrente ou escola de interpretação bíblica histórica, distinta de outras correntes, fundamentada em pressupostos bíblicos quanto à natureza das Escrituras, e que emprega princípios e métodos específicos. Trata-se de uma escola ou corrente de interpretação que adota o método histórico-gramatical, em contraposição aos métodos intuitivos (da corrente espiritualista) e histórico-crítico (humanista) de interpretação bíblica.
Com a expressão hermenêutica reformada, quer-se designar neste artigo o modelo de interpretação bíblica defendida e aplicada pelos reformadores, pelos principais símbolos de fé protestantes (inclusive batista2), pelos puritanos ingleses, pelos huguenotes franceses, e pelas igrejas evangélicas ortodoxas em geral até os nossos dias. Esta corrente de interpretação poderia ser chamada de hermenêutica protestante ou hermenêutica evangélica. Mas, ao que parece, estes termos já não caracterizam muita coisa pelo menos no campo da hermenêutica , pois englobam, sem qualquer distinção, defensores e praticantes de todas as correntes de interpretação bíblicas: desde a corrente espiritualista (intuitiva) até a corrente humanista (histórico-crítica).
A importância do assunto dificilmente pode ser exagerada, pois a hermenêutica é a base teórica da exegese, que, por sua vez, é o alicerce tanto da teologia (quer bíblica, quer sistemática) como da pregação. O diagrama a seguir ilustra estas relações:
Parece que, atualmente, pelo menos no Brasil, estas disciplinas têm sido parcialmente relegadas por alguns segmentos evangélicos a um segundo plano. Exegese, doutrina e pregação têm sido substituídas por coisas mais práticas (tais como a ação social, o engajamento político, a administração eclesiástica, o evangelismo, a liturgia, as exortações morais, etc.). Quando não se nega a importância da exegese, da doutrina e da pregação, na teoria, nega-se na prática.
Convém observar, entretanto, que o apóstolo Paulo exorta Timóteo a cuidar de si mesmo e da doutrina, de modo que possa ser ele mesmo salvo bem como os seus ouvintes (1 Tm 4.16). Ele o admoesta a apresentar-se a Deus aprovado, como obreiro que não tem do que se envergonhar, que maneja bem a palavra da verdade (2 Tm 2.15). E afirma que devem ser considerados merecedores de dobrados honorários (ou honra) os presbíteros que presidem bem, com especialidade os que se afadigam na Palavra e no ensino (1 Tm 5.17).
Não se pode esquecer de que aprouve a Deus salvar aos que crêem, pela loucura da pregação (1 Co 1.21); e de que a fé vem pela pregação e a pregação pela palavra de Cristo (Rm 10.17).
A importância da doutrina é vista especialmente nas cartas do apóstolo Paulo e no tratamento que faz da questão da justificação pela fé na carta aos Gálatas. Nem a Igreja de Corinto, com todos os seus problemas morais, foi tão duramente tratada pelo apóstolo quanto as igrejas da Galácia, em função do seu desvio doutrinário.
A verdade de Deus expressa em sua Palavra é o instrumento empregado pelo Espírito Santo para salvar e santificar. São as sagradas letras que podem tornar-te sábio para a salvação pela fé em Cristo Jesus, e fazer com que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra (2 Tm 3.15,17).
Richard Baxter, um dos puritanos mais conhecidos do século XVII, foi o instrumento nas mãos de Deus em um reavivamento na sua cidade. Autor de dezenas de obras, a maioria de cunho prático, usou uma figura para expressar a relação entre a verdade da Palavra e a santidade. Eis suas palavras:
...as verdades de Deus são os próprios instrumentos da santificação de vocês; essa santificação é o resultado produzido por essas verdades sobre o entendimento e a vontade de vocês. As verdades são o selo e a alma de vocês é a cera; a santidade, é a impressão feita. Se vocês receberem apenas algumas verdades, terão apenas uma impressão parcial... Se vocês as receberem de modo desordenado, a imagem que produzirão nas almas de vocês será igualmente desordenada; como se os membros dos corpos de vocês fossem unidos de modo monstruoso.3
Aí está a importância da hermenêutica: ela é a base teórica da exegese, que por sua vez é o fundamento da teologia e da pregação, das quais depende a saúde espiritual da igreja, e da nossa própria vida. Uma hermenêutica deformada fatalmente resultará em exegese deformada, produzirá teologia e pregação deformadas, e se manifestará tragicamente em igrejas e vidas deformadas.
Todo leitor é um intérprete. Mas ler não implica necessariamente em entender. Quando não há barreiras na compreensão de um texto, a interpretação é automática e inconsciente. Mas isso nem sempre ocorre. De conformidade com a doutrina reformada da clareza ou perspicuidade das Escrituras, a Bíblia é substancialmente, mas não completamente clara. As verdades básicas necessárias à salvação, serviço e vida cristã são evidentes em um ou outro texto, mas nem todos os textos das Escrituras são igualmente claros.
Por ser um livro divino-humano, inspirado por Deus, mas escrito por homens, admite-se que há dificuldades de ordem espiritual e de ordem humana para a compreensão das Escrituras. O apóstolo Pedro reconheceu essa dificuldade com relação aos escritos do apóstolo Paulo, dizendo que neles há certas coisas difíceis de entender... (2 Pe 3.16).
Isto significa que a compreensão das Escrituras não é necessariamente automática e espontânea. É, sim, o resultado da ação iluminadora do Espírito Santo, por um lado, e por outro, do estudo diligente da língua e do contexto histórico em que foi escrita.
O aspecto espiritual envolvido na interpretação das Escrituras é demonstrado claramente em passagens bíblicas tais como 1 Coríntios 2.14 e 2 Coríntios 4.3-6:
Ora, o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, por que lhe são loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente.
...se o nosso evangelho ainda está encoberto, é para os que se perdem que está encoberto, nos quais o deus deste século cegou os entendimentos dos incrédulos, para que lhes não resplandeça a luz do evangelho da glória de Cristo, o qual é a imagem de Deus... Porque Deus que disse: De trevas resplandecerá luz, ele mesmo resplandeceu em nossos corações, para iluminação do conhecimento da glória de Deus na face de Cristo.
Nestes textos o apóstolo Paulo ensina claramente a absoluta incapacidade do homem natural (não regenerado) de compreender a revelação de Deus. A razão desta incapacidade é a cegueira espiritual em que se encontra como resultado da queda do homem do seu estado original, e da ação diabólica. E a cura desta cegueira não é intelectual, mas espiritual. Só o Espírito Santo pode fazer resplandecer a luz do Evangelho da glória de Cristo num coração em trevas.
Outro texto que demonstra o caráter espiritual envolvido na interpretação das Escrituras é 2 Coríntios 3.14-15. Neste texto o apóstolo Paulo explica que os judeus tinham como que um véu embotando os seus olhos espirituais, de modo que não podiam compreender o significado do que liam, por causa da incredulidade:
Mas os sentidos deles se embotaram. Pois até ao dia de hoje, quando fazem a leitura da antiga aliança, o mesmo véu permanece, não lhes sendo revelado que em Cristo é removido. Mas até hoje, quando é lido Moisés, o véu está posto sobre o coração deles.
Como este véu pode ser retirado? Pela conversão, responde o apóstolo no verso seguinte: Quando, porém, algum deles se converte ao Senhor, o véu é retirado.Na carta aos Efésios, o apóstolo Paulo ensina a mesma coisa com relação aos gentios:
...não mais andeis como também andam os gentios, na vaidade dos seus próprios pensamentos, obscurecidos de entendimento, alheios à vida de Deus por causa da ignorância em que vivem, pela dureza dos seus corações (Ef 4.17-18).
A ação iluminadora do Espírito Santo é, portanto, indispensável na interpretação e apreensão do ensino das Escrituras. A erudição piedosa é preciosa e indispensável para a preservação da sã doutrina. Um erudito, por mais bem equipado que esteja hermeneuticamente, desprovido, porém, da ação regeneradora e iluminadora do Espírito, possivelmente não alcançará o sentido da Escritura tanto quanto um crente simples e fiel, mesmo que indouto em métodos e técnicas de interpretação.
Mesmo o crente precisa da ação iluminadora contínua do Espírito Santo para progredir na compreensão das Escrituras. Seu coração não está embotado como o dos judeus descrentes; nem seu entendimento está obscurecido, como o dos gentios incrédulos. Mas ainda há muito a compreender; e a ação iluminadora do Espírito Santo permanece indispensável. Com esse propósito o apóstolo Paulo orava insistentemente pelos crentes, a fim de que Deus lhes iluminasse mais e mais, para compreenderem mais profundamente a natureza do evangelho e a suprema riqueza da sua graça. Eis um exemplo apenas na carta aos Efésios:
...não cesso de dar graças por vós, fazendo menção de vós nas minhas orações, para que o Deus de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai da glória, vos conceda espírito de sabedoria e de revelação no pleno conhecimento dele, iluminados os olhos do vosso coração, para saberdes qual é a esperança do seu chamamento, qual a riqueza da glória da sua herança nos santos, e qual a suprema grandeza do seu poder para com os que cremos... (Ef 1.16-19).
Textos como este revelam o papel do Espírito Santo e da fé na compreensão das verdades espirituais. A interpretação e compreensão das Escrituras torna-se essencialmente uma tarefa espiritual embora não rejeitando habilidades naturais ou técnicas.
Deve-se observar, entretanto, que as Escrituras também revelam, por ensino direto e por inúmeros exemplos, que o coração do homem é mais enganoso do que todas as coisas e desesperadamente corrupto (Jr 17.9), não sendo, portanto, totalmente confiável. Além disso, não existe somente o Espírito da verdade; há também o espírito do erro (1 Jo 4.6). O pai da mentira está sempre pronto a enganar, se possível for, até os eleitos. Logo, o caráter espiritual envolvido na interpretação das Escrituras não elimina, de modo algum, o lado humano, também necessário para a sua correta interpretação e compreensão. Afinal, é pela própria Palavra, e através da Palavra, que o Espírito Santo realiza essa obra iluminadora.
Por haver sido escrita em línguas humanas, em contextos históricos, sociais, políticos e religiosos específicos, um conhecimento adequado da língua e do contexto histórico também é necessário para uma melhor interpretação e compreensão das Escrituras. Deve-se lembrar também que o ministro da Palavra é aquele que se afadiga no estudo dela (1 Tm 5.17). Logo, para uma interpretação e compreensão adequada das Escrituras, fazem-se necessários requisitos de natureza espiritual, bem como requisitos de natureza intelectual. Ambos são necessários e imprescindíveis.
As classificações normalmente pecam pelo simplismo. É de fato difícil resumir e agrupar adequadamente as diversas ênfases, tendências, princípios e práticas de uma determinada área de estudos, sem negligenciar peculiaridades importantes. Com a hermenêutica não é diferente. Contudo, observando as diferentes ênfases, tendências, princípios e práticas de interpretação das Escrituras adotados no curso da história da Igreja, pode-se perceber pelo menos três correntes gerais nas quais as diversas escolas podem ser de certo modo agrupadas:
Muitos grupos na história da interpretação bíblica se caracterizaram por superenfatizar o caráter espiritual (místico) das Escrituras, em detrimento do seu caráter humano. Esta corrente distingue-se especialmente pela insatisfação generalizada com o sentido natural, literal das Escrituras. Dois dos textos mais explorados são 2 Coríntios 3.6: ...a letra mata, mas o Espírito vivifica e 1 Coríntios 2.7: ...falamos a sabedoria de Deus em mistério. O maior perigo dessa corrente de interpretação é o subjetivismo e o misticismo. Nenhuma das duas passagens mencionadas prescreve a supremacia de sentidos "espirituais" e ocultos da Escritura sobre sentidos naturais e óbvios. 2 Coríntios 3.6 faz um contraste entre os dois ministérios ou alianças exercidos por Moisés e por Cristo; 1 Coríntios 2.7 trata do mistério de Deus, que é Cristo, mistério agora revelado. Nada há nestas passagens que exaltem sentidos ocultos da Escritura, disponíveis apenas aos "espirituais" ou avançados. Alguns sistemas hermenêuticos pertencentes à corrente espiritualista são descritos abaixo.
Trata-se de um dos métodos de interpretação mais antigos. Fortemente influenciados pelo platonismo e pelo alegorismo judaico, os defensores desse método de interpretação atribuíam diversos sentidos ao texto das Escrituras, enfatizando o sentido chamado de alegórico.
Clemente de Alexandria (215) e Orígenes (254) são os dois principais nomes da escola alegórica de Alexandria, no Egito. Clemente identificava cinco sentidos para um dado texto das Escrituras: 1) histórico, 2) doutrinário, 3) profético, 4) filosófico e 5) místico. Orígenes distinguia três níveis de sentidos: 1) o literal, ao nível do corpo, 2) o moral, ao nível da alma, e 3) o alegórico, ao nível do espírito.
A hermenêutica alegórica prevaleceu durante toda a Idade Média, especialmente em sua forma quádrupla. Sua origem é provavelmente o sistema hermenêutico de Agostinho. Segundo este método, as passagens das Escrituras teriam quatro sentidos: um sentido literal, e três sentidos espirituais: moral, alegórico e anagógico. O sentido literal seria o registro do que aconteceu (o fato); o sentido moral conteria uma exortação quanto à conduta (o que fazer); o sentido alegórico ensinaria uma doutrina a ser crida (o que crer); e o sentido anagógico apontaria para uma promessa a ser cumprida (o que esperar). Assim, uma referência bíblica sobre a água, teria um sentido literal (a água), um sentido moral (exortação a uma vida pura), um sentido alegórico (o sacramento do batismo), e um sentido anagógico (a água da vida na Nova Jerusalém).4
Este método pode fornecer esplêndidas interpretações, mas rouba o real significado do texto, desviando a atenção do leitor do seu verdadeiro sentido, que o Espírito Santo intentou transmitir.
O caráter fantasioso deste método de interpretação fica manifesto na conhecida interpretação alegórica de Orígenes5 da parábola do bom samaritano (Lc 10.30-37). Segundo ele, o homem atacado pelos ladrões simbolizava Adão (a humanidade); Jerusalém, os céus; Jericó, o mundo; os ladrões, o diabo e suas hostes; o sacerdote, a lei; o levita, os profetas; o bom samaritano, Cristo: o animal sobre o qual foi colocado o homem ferido, o corpo de Cristo (que suporta o Adão caído); a estalagem, a igreja; as duas moedas, o Pai e o Filho; e a promessa do bom samaritano de voltar, a segunda vinda de Cristo.6
Outro exemplo do caráter fantasioso desse método de interpretação pode ser percebido nas diferentes interpretações alegóricas atribuídas às duas moedas mencionadas nessa parábola: o Pai e o Filho, o Antigo e o Novo Testamento, os dois mandamentos do amor (a Deus e ao próximo), fé e obras, virtude e conhecimento, o corpo e o sangue de Cristo, etc.
Muitos são consciente ou inconscientemente adeptos desta corrente de interpretação bíblica. Também chamados de impressionistas,7 os hermeneutas intuitivos caracterizam-se por identificar a mensagem do texto com os pensamentos que lhes vêm à mente ao lê-lo, sem contudo dar a devida atenção à gramática, ao contexto e às circunstâncias históricas, geográficas, culturais, religiosas, etc. Um passo adiante estão os místicos, que aqui e ali aparecem na história da igreja, com a sua ênfase na iluminação interior. Uma versão moderna do método de interpretação intuitiva pode ser verificada na prática de abrir as Escrituras ao acaso para pregar ou encontrar uma mensagem para uma ocasião específica, sem o devido estudo do texto e do seu contexto histórico.
Há uma escola contemporânea de interpretação das Escrituras que enfatiza excessivamente o conhecimento subjetivo em detrimento do seu sentido gramatical e histórico. Trata-se da assim chamada nova hermenêutica, que nada mais é do que um desenvolvimento dos princípios hermenêuticos de Bultmann, com sua ênfase na relevância da mensagem do Novo Testamento para o homem contemporâneo.
Para Bultmann e para a nova hermenêutica reconhecidamente influenciados pela filosofia existencialista de Martin Heidegger8 o importante não é a intenção do autor, nem o que o texto falou aos seus leitores originais, mas o que fala a nós, hoje, no nosso contexto: esse é o sentido do texto. Para a hermenêutica existencialista o importante mesmo não é o texto, mas o que está por trás dele. Não interessa tanto o que o texto diz (historicamente), mas o que ele quer dizer (existencialmente). Logo, as Escrituras só serão interpretadas realmente se lidas existencialmente, se forem experimentadas. Ou seja, as Escrituras não são objetivamente a Palavra de Deus, elas se tornam Palavra de Deus, quando nos falam subjetivamente.
Talvez as principais críticas à hermenêutica existencialista sejam que ela rejeita o elemento sobrenatural das Escrituras (milagres, encarnação, ressurreição, etc.) como sendo mitos, e que torna subjetivo o conceito de Palavra de Deus, com sua ênfase existencialista. Com isso, ela esvazia a mensagem bíblica e, assim como o método alegórico e o método intuitivo, abre espaço para se ler no texto quaisquer idéias ou conceitos originados na mente do leitor.9
No extremo oposto da corrente espiritualista encontra-se a corrente que se pode chamar de humanista. Esta corrente caracteriza-se por dar ênfase excessiva ao caráter humano das Escrituras e por uma aversão ao seu caráter sobrenatural. A ênfase dessa corrente está no método, na técnica, nos aspectos literários ou históricos das Escrituras, em detrimento do seu caráter divino, espiritual e sobrenatural.
Os saduceus, com o seu repúdio à doutrina da ressurreição e descrença na existência de seres angelicais, podem ser considerados como precursores dessa corrente de interpretação das Escrituras. Pouco se sabe sobre a origem desse partido judaico, mas parece haver adotado uma posição secular-pragmática de interpretação das Escrituras.10 Ao negarem verdades básicas das Escrituras, os saduceus podem ser considerados, guardadas as devidas proporções, como os modernistas ou liberais da época.11
Os humanistas renascentistas, com seu interesse meramente literário e acadêmico nas Escrituras, e com sua ênfase na moral, também podem ser incluídos nesta corrente de interpretação bíblica. Alguns se dedicaram ao estudo das Escrituras, outros chegaram até a editar textos bíblicos na língua original. Mas o interesse deles era meramente acadêmico, lingüístico, literário e histórico. Estavam interessados nas Escrituras por sua antigüidade e não por serem a Palavra de Deus.
A escola mais característica e influente desta corrente de interpretação bíblica é a escola crítica, com o seu método histórico-crítico. Uma das razões para o surgimento do método histórico-crítico parece ter sido a pretensão de tornar científicos os estudos bíblicos, ou seja, faze-los compatíveis com o modelo científico e acadêmico da época.12 E o resultado desta nova postura para com as Escrituras (crítica, ao invés de gramatical) foi o liberalismo teológico que tem assolado a Igreja desde o século passado.
Trata-se sem dúvida de uma hermenêutica racionalista. Ao invés da revelação governar a razão, a razão é que determina a revelação. A razão e o intelecto passaram a ser determinantes, sendo rejeitado como erro, fábula ou mito tudo o que não puder ser explicado ou harmonizado com a razão.
Os adeptos desta corrente rejeitam as doutrinas reformadas das Escrituras, tais como inspiração, autoridade, inerrância, e preservação; enfatizam a moralidade e descartam o sobrenatural. Sob forte influência do evolucionismo de Darwin e da dialética de Hegel, as Escrituras deixaram de ser vistas como a Palavra de Deus inspirada na qual ele se revela ao homem, passando a ser considerada como um registro do desenvolvimento evolucionista da consciência religiosa de Israel (e mais tarde da Igreja).13 O conceito liberal de inspiração das Escrituras só é objetivo no sentido de as Escrituras serem o objeto da inspiração. No mais, é subjetivo: elas são o sujeito: elas é que inspiram, com o seu poder de inspirar experiências religiosas.14
Na prática, portanto, a principal característica da escola crítica de interpretação é o pressuposto de que as Escrituras devem ser estudadas do mesmo modo que as demais literaturas antigas, pelo emprego das mesmas metodologias. Esta postura, crítica, com sua ênfase apenas no caráter humano das Escrituras, resultou em uma série de metodologias críticas de caráter histórico ou lingüístico que vêm sendo empregadas na interpretação das Escrituras.
A crítica ou história da tradição é uma dessas metodologias, cuja pretensão é descobrir a história percorrida por determinado trecho, no âmbito da tradição oral, ou seja, na fase anterior à sua fixação literária mais antiga.15 Isto é: estudar como os eventos históricos e ensinos originais de Jesus teriam dado origem às diversas formas de tradições orais até o seu registro escrito. Seu propósito é destradicionalizar (semelhante à desmitologização de Bultmann) os Evangelhos, em busca do fato ou ensino original.16
A crítica da forma é outra metodologia crítica. Sua pretensão é classificar os escritos do Novo Testamento em gêneros literários e identificar as tradições que teriam dado origem às fontes empregadas pelos autores do Novo Testamento. Segundo os teóricos da crítica da forma,17 os evangelhos provém de tradições orais não cronológicas existentes (chamadas de paradigmas, novelas, lendas, mitos e exortações). Posteriormente essas tradições orais teriam sido organizadas em relatos cronológicos escritos que foram empregados pelos evangelistas. Mas a teoria é extremamente especulativa, visto que não explica como esses gêneros teriam surgido e se desenvolvido. Além disso, não existe registro histórico dessas supostas coleções não cronológicas.18
Outra metodologia desenvolvida pela escola crítica de interpretação é a crítica das fontes. De acordo com esta teoria há muito pouco nos evangelhos (especialmente nos sinópticos) originário dos evangelistas. Eles teriam sido mais coletores e editores dos diversos relatos (tradições escritas) existentes sobre a vida de Jesus do que propriamente autores. A teoria se baseia nas palavras de Lucas no início do seu evangelho (cf. Lc 1.1,3), e na observação de que os evangelhos de Mateus e Lucas normalmente concordam literalmente com o evangelho de Marcos (ambos ou cada um isoladamente), enquanto que raramente concordam entre si, quando discordam de Marcos. A conclusão mais comum a que se chegou é que Mateus e Lucas foram copiados de Marcos (quando concordam com ele) e de outra suposta fonte chamada "Q", quando concordam entre si, mas discordam de Marcos.
Não há, contudo, concordância entre os críticos da forma. As evidências internas (baseadas em supostas inconsistências cronológicas, estilísticas, teológicas e históricas) a favor dessa teoria são bastante limitadas, subjetivas, ambíguas e contraditórias com as evidências externas (afirmativas dos pais da igreja que apontam de modo unânime em direção oposta).19 Muitas outras possibilidades tornam qualquer conclusão extremamente incerta. Marcos poderia ter usado Mateus e Lucas; os três evangelistas podem ter usado as mesmas fontes; Jesus pode ter repetido ensinos e parábolas com palavras diferentes em ocasiões diferentes, etc. A verdade é que não se sabe com exatidão como os evangelistas escreveram seus evangelhos.
Parece evidente que pelo menos um, Lucas, lançou mão de algumas fontes, mas conforme ele mesmo afirma, ele e suas fontes basearam-se no que lhes transmitiram testemunhas oculares dos acontecimentos (Lc 1.2). Entretanto, não há meios de saber concretamente que fontes foram estas e até que ponto e como as usaram. Isso torna a crítica da forma necessariamente especulativa. De concreto, mesmo, têm-se os Evangelhos, como Palavra de Deus escrita por homens inspirados (movidos) pelo Espírito Santo, fundamentados no que testemunharam e no testemunho de outras testemunhas oculares, e, portanto, fidedignas.
Além dessas metodologias, há também a crítica da redação, que se propõe a estudar como os evangelistas teriam usado (editado) as suas supostas fontes na composição dos evangelhos; isto é, que mudanças peculiares (ou contribuições) teriam sido introduzidas pelos evangelistas às fontes que usaram, e com que propósito (especialmente teológico).20 Mas, a que conclusões seguras se pode chegar com a crítica da redação, se nem mesmo há certeza alguma com relação ao uso das fontes?
Por fim, pode ser mencionado o criticismo histórico. Sua pretensão é avaliar a historicidade das narrativas bíblicas, ou, como escreve Marshall, ...testar a precisão do que se propõe ser uma narrativa histórica.21 Mas este propósito não é somente pretensioso (inconsistente do ponto de vista bíblico); é também tendencioso, na medida em que explora as aparentes contradições internas (especialmente entre as passagens paralelas dos evangelhos) e externas (com fontes seculares e históricas); e encara os relatos de ocorrências sobrenaturais por uma perspectiva altamente especulativa. Assim, o criticismo histórico não vê os textos paralelos como complementares, mas como contraditórios; atribui às fontes seculares autoridade superior à das Escrituras; rejeita as intervenções sobrenaturais; e considera muitas narrativas históricas como invenção da igreja, novelas ou mitos.
O gráfico a seguir resume estas metodologias críticas do método histórico-crítico de interpretação dos evangelhos, em ordem lógica.
Os resultados de todas estas metodologias críticas são inseguros, questionáveis e dúbios, e sua aplicação prática extremamente limitada (se possível). São hipóteses construídas sobre especulações infrutíferas que não contribuem em praticamente nada para a compreensão do texto do Novo Testamento, a não ser para lançar dúvidas sobre a sua inspiração, autoridade e inerrância.22
Não obstante, parece que a corrente humanista de interpretação das Escrituras tem começado a prevalecer em um número considerável de seminários teológicos no nosso país. A ênfase hermenêutica destes seminários está no método, na técnica, nos aspectos literários ou históricos das Escrituras, em detrimento do seu caráter divino, espiritual e sobrenatural. A metodologia predominante tem sido o método histórico-crítico. E, em virtude da impossibilidade de conciliar este método com as doutrinas bíblicas da inspiração, autoridade, suficiência, inerrância e preservação das Escrituras, muitos destes seminários têm se afastado cada vez mais da verdadeira fides reformata (fé reformada).
Como os resultados das metodologias críticas empregadas pelo método histórico-crítico são quase sempre infrutíferos, e sua aplicação prática extremamente limitada, não é incomum que o produto final de muitos dos nossos seminários seja formandos despreparados para o ofício de ministros da Palavra. Nesta condição, não é de estranhar que, como observou Lopes, ...os púlpitos de bom número das igrejas evangélicas destilam uma espécie de sermão onde pouca ou nenhuma atenção se dá ao sentido original do texto bíblico.23 Destilam também, acrescento, teologias imprecisas e inconsistentes, que pouco edificam os membros de suas congregações.
A corrente reformada de interpretação das Escrituras (objeto específico deste estudo) posiciona-se entre as duas correntes extremas já consideradas. Ela (a corrente reformada) caracteriza-se pelo equilíbrio resultante do reconhecimento do caráter divino-humano das Escrituras. Em função disso, os intérpretes desta corrente reconhecem a necessidade da iluminação do Espírito falando através da própria Palavra, ao mesmo tempo em que admitem a necessidade de interpretação gramatical e histórica das Escrituras. A interpretação reformada rejeita, por um lado, a alegorização indevida das Escrituras e, por outro, repudia uma postura primariamente crítica com relação a elas.
O método de interpretação adotado e praticado pela corrente reformada ou protestante conservadora é conhecido pelo nome de método gramático-histórico; o método de interpretação honrado pelo tempo, no dizer de M. Lloyd-Jones. Trata-se de um método fundamentado em pressuposições bíblicas quanto à própria natureza das Escrituras, que emprega princípios gerais e métodos lingüísticos e históricos coerentes com o caráter divino-humano da Palavra de Deus.
Os reformadores não criaram este método de interpretação bíblica do nada. Eles se fundamentaram no próprio ensino bíblico sobre a sua natureza e na prática apostólica. As origens da interpretação reformada também são encontradas na escola de Antioquia da Síria, que pode ser considerada precursora do método gramático-histórico. Seus principais representantes foram Teodoro de Mopsuéstia (428) e João Crisóstomo (407), o Boca de Ouro. Eles rejeitaram tanto o literalismo judeu, como o alegorismo de Alexandria; defendiam uma interpretação literal e histórica das Escrituras; criam na realidade histórica dos eventos descritos no Antigo Testamento; defendiam a unidade das Escrituras e admitiam o desenvolvimento ou progressividade da revelação.24
Agostinho também pode ser considerado precursor do método gramático-histórico de interpretação bíblica. Ele não parece haver sido consistente na aplicação do seu método. De fato, sua distinção de quatro sentidos das Escrituras foi tão influente que prevaleceu por toda a Idade Média, como já foi visto. Apesar disso, ele estabeleceu importantes princípios de interpretação bíblica no seu manual de hermenêutica e pregação, De Doctrina Chistiana. Eis alguns desses princípios:25
1. A fé é um pré-requisito fundamental para o intérprete da Palavra de Deus.
2. Deve-se considerar o sentido literal e histórico do texto.
3. O Antigo Testamento é um documento cristológico.
4. O propósito do expositor é descobrir o sentido do texto e não atribuir-lhe sentido.
5. O credo ortodoxo deve controlar a interpretação das Escrituras.
6. O texto não deve ser estudado isoladamente, mas no seu contexto bíblico geral.
7. Se o texto for obscuro, não pode se tornar matéria de fé. As passagens obscuras devem dar lugar às passagens claras.
8. O Espírito Santo não dispensa o aprendizado das línguas originais, geografia, história, ciências naturais, filosofia, etc.
9. As Escrituras não devem ser interpretadas de modo a se contradizerem. Para isso, deve-se considerar a progressividade da revelação.
Tem sido reconhecido que a reforma teológica e eclesiástica do século XVI foi o resultado de outra reforma: uma reforma hermenêutico-exegética.26 De fato, a redescoberta das doutrinas bíblicas pelos reformadores e a reforma eclesiástica decorrente foram precedidas por um evidente rompimento com os princípios hermenêuticos e com a prática exegética medieval.
a. A Única Regra Infalível de Interpretação
A Reforma Protestante rejeitou veementemente a hermenêutica alegórica medieval, e registrou seu repúdio em alguns dos seus principais símbolos de fé. Eis um exemplo: o parágrafo IX do capítulo I da Confissão de Fé de Westminster (idêntico ao mesmo parágrafo da Confissão de Fé Batista de 1689):
A regra infalível de interpretação da Escritura é a mesma Escritura; portanto, quando houver questão sobre o verdadeiro e pleno sentido de qualquer texto da Escritura (sentido que não é múltiplo, mas único), esse texto pode ser estudado e compreendido por outros textos que falem mais claramente.
Este parágrafo estabelece o princípio reformado fundamental de interpretação bíblica, segundo o qual a única regra infalível de interpretação das Escrituras é a própria Escritura. Ela se auto-interpreta, elucidando, assim, suas passagens mais difíceis. O que estas confissões querem dizer com essa afirmativa é que o sentido de uma passagem obscura não pode ser autoritativamente determinado nem por tradição, nem por decisão eclesiástica, nem por argumento filosófico, nem por intuição espiritual, mas sim, unicamente, por outras partes das Escrituras que expliquem e esclareçam o seu sentido.
b. Repúdio à Interpretação Alegórica Medieval
O parágrafo acima, citado da Confissão de Fé, também representa o repúdio dos reformadores ao método de interpretação quádrupla medieval. Em lugar dele, os reformadores ensinavam que cada passagem das Escrituras tem um só sentido, que é literal a não ser que o próprio contexto ou outro texto das Escrituras requeiram claramente uma interpretação figurada ou metafórica.
John Colet (c. 1467-1519) foi um dos primeiros reformadores a romper com o método alegórico medieval, ao expor em 1496, em Oxford, as cartas do apóstolo Paulo em seu sentido literal e no seu contexto histórico.27 Três anos depois, em 1499, ele já sustentava o princípio de que as Escrituras não podem ter senão um único significado: o mais simples.28
Lutero também rejeitou a interpretação alegórica. Defendeu que nós devemos nos ater ao sentido simples, puro e natural das palavras, como requerido pela gramática e pelo uso do idioma criado por Deus entre os homens.29
Quanto a Calvino, sua aversão à interpretação alegórica era de tal ordem que ele chegou a afirmar ser satânica, por desviar o homem da verdade das Escrituras. É uma audácia próxima do sacrilégio, escreveu ele, usar as Escrituras ao nosso bel-prazer e brincar com elas como com uma bola de tênis, como muitos antes de nós o fizeram.30
c. Necessidade de Iluminação Espiritual
Os reformadores reconheceram a natureza divino-humana das Escrituras, e enfatizaram o papel do Espírito Santo no processo de interpretação da sua mensagem. Para eles, o impedimento maior estava na cegueira espiritual do homem, em função da queda, e não nas Escrituras. Tanto para Lutero, como para Calvino,31 nenhuma pessoa poderia interpretar corretamente as Escrituras sem a ação iluminadora do Espírito Santo através da própria Palavra. Eis as palavras de Lutero sobre o assunto:
...a verdade é que ninguém que não possui o Espírito de Deus vê um til sequer do que está na Escritura. Todos os homens têm seus corações obscurecidos, de modo que, mesmo quando discutem e citam tudo o que está na Escritura, não compreendem ou conhecem realmente qualquer assunto dela... O Espírito é necessário para a compreensão de toda a Escritura e cada uma de suas partes.32
d. Interpretação Gramatical e Histórica
Por outro lado, reconhecendo a natureza histórica das Escrituras, os reformadores defendiam a sua interpretação literal, enfatizando também a importância da gramática e da história na compreensão da sua mensagem.
Melanchton foi um dos responsáveis pela ênfase reformada na exegese gramatical. Em um discurso proferido em 1518 em Wittenberg, ele exortou seus ouvintes a recorrerem às Escrituras nas línguas originais, onde encontrariam Cristo, livre das discordâncias dos teólogos latinos. Lutero ficou tão impressionado com o que ouviu, que passou a assistir às aulas de grego de Melanchton, dedicando-se com afinco ao estudo do grego.33
Mas foi Calvino, sem dúvida, quem melhor praticou a exegese gramatical e histórica. Ele tem sido considerado por muitos o maior intérprete da Reforma e um dos maiores de todas as épocas. A profundidade, lucidez e erudição dos seus comentários, que abrangem praticamente todos os livros da Bíblia,34 continuam a ser admirados e considerados atuais e raramente igualados.35 E não se pense que essa é a opinião apenas dos calvinistas (um compreensível exagero presbiteriano deste autor). Mesmo Jacobus Arminius (1560-1609), um dos mais conhecidos opositores das doutrinas de Calvino, reconhecia a excelência dos comentários dele, e chegou a recomendá-los como incomparáveis. Eis suas palavras:
Depois da leitura das Escrituras..., e mais do que qualquer outra coisa,... eu recomendo a leitura dos Comentários de Calvino... Pois afirmo que na interpretação das Escrituras Calvino é incomparável, e que seus Comentários são mais valiosos do que qualquer coisa que nos tenha sido legada nos escritos dos pais tanto assim que atribuo a ele um certo espírito de profecia no qual ele se encontra em uma posição distinta acima de outros, acima da maioria, na verdade, acima de todos.36
e. Desenvolvimento do Método Gramático Histórico
Estes e outros princípios de interpretação praticados pelos reformadores (Lutero, Calvino e demais reformadores alemães, suíços, franceses e ingleses) viriam a ser desenvolvidos e adotados pelo protestantismo ortodoxo em geral desde então,37 e se tornaram conhecidos pelo nome de método gramático-histórico de interpretação bíblica.
Foi este o método empregado pelos puritanos no séc. XVII;38 pelos líderes evangélicos do século XVIII na Europa e América do Norte (tais como George Whitefield e Jonathan Edwards); pelo anglicano J. C. Ryle, pelo batista Charles Spurgeon na Inglaterra e pelos presbiterianos Charles e Alexander Hodge no Seminário de Princeton nos EUA, no século passado; e pelos intérpretes e pregadores protestantes (luteranos, anglicanos, presbiterianos e batistas) ortodoxos deste século.
Os manuais de hermenêutica de Davidson, Patrick, Imer, Terry, Berkhof, Berkeley, Mickelsen e Ramm pertencem todos a essa escola de interpretação bíblica, bem como os comentários bíblicos de Keil e Delitzsch, Meyer, Matthew Henry, Lange, Alford, Ellicot, Lightfoot, Hodge, Broadus e muitos outros.
O método gramático-histórico de interpretação bíblica desenvolvido pela corrente reformada é, de fato, a hermenêutica honrada pelo tempo. É um método coerente com a natureza das Escrituras; fundamenta-se em pressuposições teológicas bíblicas; e emprega princípios gerais adequados e métodos lingüísticos e históricos extremamente frutíferos.
A teologia e a praxis eclesiástica deformadas do evangelicalismo moderno clamam por reforma; clamam por um novo retorno às Escrituras. A corrente espiritualista de interpretação bíblica já foi colocada na balança e achada em falta: as hermenêuticas alegórica, intuitiva e existencialista, por não darem a devida consideração ao caráter humano das Escrituras, abrem espaço para todo tipo de eisegese. O caráter fantasioso destas hermenêuticas acaba desviando a atenção do leitor ou ouvinte do verdadeiro sentido do texto bíblico (aquele que o Espírito Santo intentou transmitir).
A corrente humanista de interpretação bíblica também já foi colocada na balança e achada em falta: a hermenêutica dos saduceus, dos humanistas renascentistas e da escola crítica, por não darem a devida atenção ao caráter divino das Escrituras, tendem a atribuir à razão a autoridade que pertence à revelação. Este caráter racionalista da hermenêutica humanista induz ao liberalismo teológico que acaba negando a legítima fé reformada.
A corrente reformada de interpretação bíblica também já foi colocada na balança da história, mas foi aprovada com louvor: o método gramático-histórico fundamentado no próprio ensino bíblico sobre as Escrituras e desenvolvido e aplicado pelos reformadores e seus legítimos herdeiros, por dar a devida atenção tanto ao caráter divino como ao caráter histórico das Escrituras, promoveu as reformas teológicas e eclesiásticas mais profundas já experimentadas pela igreja cristã.
Durante a Reforma Protestante do século XVI e a reforma puritana do século XVII, por exemplo, muito entulho religioso teve que ser rejeitado. Muitas doutrinas e práticas eclesiásticas acumuladas no decurso dos séculos tiveram que ser abolidas, quando reformadores e puritanos dedicaram-se com labor e oração a perscrutar as Escrituras para ver se as coisas eram de fato assim. A hermenêutica reformada das Escrituras já demonstrou ter a capacidade de revelar a falácia de doutrinas e práticas eclesiásticas fundamentadas em interpretações alegóricas, intuitivas, existencialistas e racionalistas.
Na convicção deste autor, o evangelicalismo brasileiro tem acumulado nos últimos cem anos especialmente nas últimas décadas considerável entulho religioso. Não é possível entrar em detalhes aqui. Mas a proliferação de teologias estranhíssimas, práticas litúrgicas inusitadas e condutas eclesiásticas no mínimo excêntricas, já descaracterizaram a fé e o culto reformados. Mesmo denominações historicamente reformadas têm absorvido doutrinas e práticas de culto inconsistentes com o ensino bíblico e com seus símbolos de fé. Esta descaracterização se explica, pelo menos em parte, pelo emprego das hermenêuticas deficientes que estivemos considerando.
Não é tempo, portanto, de reconsiderarmos os rumos que estamos tomando? De nos desvencilharmos das hermenêuticas alegóricas, intuitivas, existencialistas e racionalistas, e de retornarmos à hermenêutica reformada aprovada pela história? Não é tempo de fazermos da oração uma prática hermenêutica, suplicando pela iluminação do Espírito Santo; e de labutarmos no estudo diligente das Escrituras, dando a devida atenção à língua e às circunstâncias históricas em que foram escritas?
Orare e labutare é o caminho. Não é um caminho fácil nem mágico. Requer sinceridade e diligência. Talvez não forneça interpretações esplêndidas nem realce a criatividade, imaginação e genialidade do pregador. Mas é o antigo e bom caminho aprovado com louvor pela história. Ele deixa que a verdade de Deus opere e que as Escrituras falem com poder e graça, promovendo profundas reformas teológicas e eclesiásticas.
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1 Gordon D. Fee e Douglas Stuart, Entendes o Que Lês? Um Guia para Entender a Bíblia com o Auxílio da Exegese e da Hermenêutica (São Paulo: Vida Nova, 1986) 19, 25.
2 Ver o capítulo primeiro da Confissão de Fé Batista de 1689.
3 Richard Baxter, "Directions for Weak Distempered Christians," em The Practical Works of Richard Baxter (Grand Rapids: Baker, 1981) 677.
4 F. F. Bruce, "The History of New Testament Study," em New Testament Interpretation: Essays on Principles and Method, ed. I. H. Marshall (Exeter: The Paternoster Press, 1979) 28.
5 Um dos iniciadores e um dos principais nomes da escola alegórica de interpretação das Escrituras.
6 Bruce, "The History of New Testament Study," 28.
7 Ralph P. Martin, "Approaches to New Testament Interpretation," em New Testament Interpretation: Essays on Principles and Method, ed. I. H. Marshall (Exeter: The Paternoster Press, 1979) 220.
8 Bruce, "The History of New Testament Study," 51.
9 Outros dados sobre a hermenêutica existencialista podem ser encontrados em Bernard L. Ramm, "La Nova Hermeneutica", em Diccionario de la Teología Práctica; Hermeneutica, ed. Rodolf G. Turnbull (Grand Rapids: Subcomisión Literatura Cristiana de la Iglesia Cristiana Reformada, 1976) 83-88.
10 S. Taylor, "Saduceus," em Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, vol. III (São Paulo: Vida Nova, 1990) 332.
11 B. J. Van der Walt, Anatomy of Reformation: Flashes and Fragments of a Reformed Cosmocope (Potchefstroom: Potchefstroom University for Christian Higher Education, 1881) 10, 26.
12 Enio Ronald Mueller, "O Método Histórico-Crítico: Uma Avaliação," em Entendes o Que Lês? Um Guia para Entender a Bíblia com o Auxílio da Exegese e da Hermenêutica, eds. Gordon D. Fee e Douglas Stuart (São Paulo: Vida Nova, 1986) 245.
13 Henry A. Virkler, Hermenêutica: Princípios e Processos de Interpretação Bíblica (Miami: Editora Vida, 1987) 52.
14 Bernard Ramm, Protestant Biblical Interpretation: A Textbook of Hermeneutics, 3a. ed. rev. (Grand Rapids: Baker, 1973) 64.
15 Mueller, "O Método Histórico-Crítico," 257.
16 Mais sobre o assunto em David R. Catchpole, "Tradition History," em New Testament Interpretation: Essays on Principles and Method, ed. I. H. Marshall (Exeter: The Paternoster Press, 1979) 165-180.
17 Tais como K. L. Schmidt, M. Dibelius e R. Bultmann.
18 Mais sobre o assunto pode ser encontrado em Stephen H. Travis, "Form Criticism," em New Testament Interpretation: Essays on Principles and Method, ed. I. H. Marshall (Exeter: The Paternoster Press, 1979) 153-164.
19 David Wenham, Source Criticism, em New Testament Interpretation: Essays on Principles and Method, ed. I. H. Marshall (Exeter: The Paternoster Press, 1979) 144.
20 Stephen S. Smalley, "Redaction Criticism," em New Testament Interpretation; Essays on Principles and Method, ed. I. H. Marshall (Exeter: The Paternoster Press, 1979) 181.
21 I. Howard Marshall, "Historical Criticism," em New Testament Interpretation; Essays on Principles and Method, ed. I. H. Marshall (Exeter: The Paternoster Press, 1979) 126.
22 Uma crítica em português ao método histórico-crítico de interpretação das Escrituras pode ser encontrada em Mueller, "O Método Histórico-Crítico," 255-271. Nestas páginas Mueller expõe resumidamente as metodologias críticas e apresenta as objeções ao método histórico-crítico levantadas por Gerhard Maier, de Tübingen, no livro Das Ende der Historisch-kritischen Methode ("O Fim do Método Histórico-Crítico"), publicado em 1974, e no artigo Concrete Alternatives to the Historical Critical Method," em Evangelical Review of Theology 6/1 (abril 1982).
23 Augustus Nicodemus Lopes, Lutero Ainda Fala: Um Ensaio em História da Interpretação Bíblica, em Fides Reformata 1/2 (1996) 110.
24 Ramm, Protestant Biblical Interpretation, 48-50.
25 De acordo com Ramm, Protestant Biblical Interpretation, 36-37, e Virkler, Hermenêutica, 45.
26 Ramm, Protestant Biblical Interpretation, 52.
27 Bruce, "The History of New Testament Study," 29.
28 Marvin W. Anderson, La Reforma y la Interpretacion," em Diccionario de la Teología Práctica; Hermeneutica, ed. Rodolf G. Turnbull (Grand Rapids: Subcomisión Literatura Cristiana de la Iglesia Cristiana Reformada, 1976) 52.
29 Em sua obra Sobre a Escravidão da Vontade (citada por F. F. Bruce, The History of New Testament Study, 31). Este livro de Lutero, publicado inicialmente em 1525, foi condensado por Clifford Pond e publicado em inglês em 1984 com o título Born Slaves, e em portugês em 1992 pela Editora Fiel, com o título Nascido Escravo.
30 Ramm, Protestant Biblical Interpretation, 58.
31 Lamberto Floor enfatiza com muita propriedade este aspecto da interpretação bíblica de Calvino no artigo "The Hermeneutics of Calvin," em Calvinus Reformatur: His Contribution to Theology, Church and Society (Potchefstroom, South Africa: Potchefstroom University for Christian Higrer Education, 1982) 181-191.
32 Citado por Ralph A. Bohlmann, Princípios de Interpretação Bíblica nas Confissões Luteranas (Porto Alegre: Casa Publicadora Concórdia, 1970) 29.
33 Anderson, "La Reforma y la Interpretación," 54-55.
34 Com exceção de 2 e 3 João e Apocalipse (no Novo Testamento).
35 Ver Ramm, Protestant Biblical Interpretation 57; e Louis Berkhof, Principios de Interpretación Biblica (Grand Rapids: Subcomisión Literatura Cristiana, 1976) 52.
36 Carta escrita a Sebastian Egbertsz, publicada em P. van Limborch e C. Hartsoeker, Praestantium ac Eruditorum Virorum Epistolae Ecclesiasticae et Theologicae (Amsterdam, 1704), nº 101 (citado por Bruce, "The History of New Testament Study," 33).
37 Cf. Virkler, Hermenêutica, 49.
38 Breves exposições em português dos princípios de interpretação puritana das Escrituras podem ser encontradas no capítulo Os Puritanos como Intérpretes da Bíblia em J. I. Pacher, Entre os Gigantes de Deus: Uma Visão Puritana da Vida Cristã (São José dos Campos, São Paulo: Editora Fiel, 1996) 105-114; e em Leland Ryken, Santos no Mundo: Os Puritanos como Realmente Eram (São José dos Campos, São Paulo: Editora Fiel, 1992) 155-159.