O Edito de Nantes
Alderi Souza de Matos
Introdução
O Edito de Nantes, promulgado pelo rei francês Henrique IV em
13 de abril de 1598, concedeu, ainda que de maneira limitada, direitos
religiosos, civis e políticos aos protestantes da França, os
huguenotes, que vinham sendo duramente reprimidos pelas autoridades seculares e
eclesiásticas daquele país.
A estudo da história reveste-se de grande relevância, visto
ser uma contínua fonte de ensinamentos, seja na forma de
advertências, seja na forma de inspiração e encorajamento.
Os fatos relacionados com o Edito de Nantes contêm os dois tipos de
ensinos. Advertências quanto ao mal da intolerância, o
desrespeito aos direitos da pessoa humana, o perigo de associações
ilegítimas entre a igreja e o estado. E inspiração
no que diz respeito ao heroísmo das pessoas e comunidades que
sofreram por causa de sua fé, e a coragem de cidadãos que, mesmo
sem terem um interesse pessoal nos conflitos, se colocaram ao lado dos
injustiçados.
I. O cristianismo na
França
A história da grande nação francesa e, em particular,
a história do cristianismo na França, é composta de luzes e
sombras. O cristianismo penetrou no antiga província romana da
Gália já no segundo século, quando surgiram pequenas
comunidades de seguidores de Cristo no sul daquele território. Dentre os
maiores líderes e teólogos da igreja antiga destaca-se
Irineu, o ilustre bispo de Lião, que morreu por volta do ano
200.
Num período em que as tribos chamadas bárbaras invadiam a
Europa, destruindo o Império Romano e assentando os alicerces de uma nova
civilização, o cristianismo "católico" obteve uma
vitória extraordinária com a conversão dos francos, cujo
rei Clóvis foi batizado, juntamente com três mil dos seus
guerreiros, no natal do ano 496. Dessa maneira, os ancestrais dos atuais
franceses foram a primeira nação germânica a abraçar
o cristianismo ortodoxo, trinitário, quando outros povos bárbaros
já haviam aderido a uma concepção herética da
fé cristã, o arianismo anti-trinitário, negador da
divindade de Cristo.
No início da Idade Média, o cristianismo francês
produziu frutos de grande valor. Os mosteiros tornaram-se grandes centros
de espiritualidade, beneficência e preservação da cultura.
Muitos monges foram também notáveis missionários, que
levaram a fé cristã e católica e outras partes da Europa.
Dentre eles, destaca-se Anskar, o apóstolo do norte, pioneiro
cristão entre os vikings da Escandinávia, durante o século
nono. Outra grande contribuição da França ao cristianismo e
à civilização européia verificou-se no ano 732,
quando Carlos Martelo (Charles Martel, 714-41) derrotou os
exércitos muçulmanos procedentes da Península
Ibérica na célebre e decisiva batalha de Tours, na França
central.
Carlos Martelo foi o primeiro líder de uma nova dinastia, os
carolíngios. Durante o reinado do seu filho Pepino, o Breve
(741-68), solidificou-se uma simbiose entre a igreja e o poder secular que
traria certas vantagens mas também grandes malefícios para o
cristianismo francês. Com muita freqüência, a
associação entre as duas esferas e a mútua troca de favores
corrompeu a ambas, principalmente a igreja. Pepino cedeu à Igreja os
territórios da Itália central que vieram a constituir os
Estados Pontifícios, que perduraram até o século
passado.
Seu ilustre filho Carlos Magno (768-814), coroado imperador pelo
papa Leão III em Roma, no natal do ano 800, foi o maior monarca do
período inicial da Idade Média: promoveu a cultura ("renascimento
carolíngio"), protegeu a igreja e ajudou os papas. Aos mesmo tempo, os
monarcas franceses, em troca dos favores prestados, sentiram-se no direito de
exercer um controle crescente sobre a igreja, seus líderes e suas
instituições. Por muitos séculos assistiu-se a uma
constante luta pela supremacia entre os dois poderes, o estado francês e a
cúria romana.
Alternaram-se também períodos de declínio e de
renovação na vida moral e espiritual da igreja. Um poderoso fator
de renovação do cristianismo francês foi o monasticismo. No
início do século décimo, o Mosteiro de Cluny deu
origem a um movimento reformador que muito beneficiou a igreja, purificando a
sua liderança e reivindicando maior autonomia em relação ao
poder temporal. [Hildebrando, papa Gregório VII, 1073]
Inocêncio III (1198-1216), o primeiro bispo de Roma a adotar o
título "Vigário de Cristo," foi o mais poderoso papa medieval.
Mais do que os seus predecessores, ele deu ênfase ao conceito do "corpus
christianum," a visão de uma sociedade cristã inteiramente
unificada, em todos os aspectos, sob a liderança do monarca secular e
principalmente do chefe da igreja. Inocêncio foi forte o bastante para
enfrentar o rei francês Filipe Augusto, fazendo-o submeter-se
à sua autoridade.
No entanto, profundas mudanças político-sociais estavam
transformando definitivamente a face da Europa, e no mesmo século treze
subiu ao trono
Filipe IV, o Belo (1285-1314), que fortaleceu a monarquia e preparou
a França para tornar-se o primeiro estado nacional moderno. Cioso das
suas prerrogativas, Filipe entrou em confronto direto com o papa
Bonifácio VIII (1294-1303), rejeitando qualquer intromissão
de Roma nos assuntos internos da França, especialmente nas áreas
econômica e judicial. O papa revidou com duas bulas, Ausculta fili
e Unam sanctam (1302), esta última considerada o "canto do
cisne do papado medieval." Filipe enviou suas tropas à Itália, o
papa foi preso e faleceu um mês após ser libertado.
Seguiu-se um período de acentuado declínio e
descrédito para a igreja quando o papa francês Clemente V
(1305-14) tranferiu a Cúria para Avinhão, no sul da
França, dando início ao chamado "cativeiro babilônico da
igreja" (1309-1377). A situação agravou-se ainda mais durante o
Grande Cisma, em que por 40 anos houve papas rivais, um em Roma e outro
em Avinhão (1378-1417), ouvindo-se em toda a Europa um clamor por
"reformas na cabeça e nos membros."
Outro aspecto negativo do final da Idade Média, foi o crescente uso
da força contra os dissidentes religiosos. No século XI havia
surgido no sul da França a seita dos cátaros ou albigenses,
que praticava um sincretismo cristão, gnóstico e
maniqueísta, que se manifestava em um extremo ascetismo. Condenados pelo
4º Concílio Lateranense em 1215 (Inocêncio III), os
cátaros eventualmente foram aniquilados por uma cruzada e pelas
ações da Inquisição, oficializada em 1233. Outro
grupo reprimido foram os valdenses, surgidos em Lião no
século XII. Condenados pelo Concílio de Verona em 1184, eles foram
perseguidos por vários séculos e mais tarde abraçaram a
Reforma Protestante.
Apesar desses fatores pouco edificantes, o cristianismo francês do
final da Idade Média também deu contribuições
positivas à nação e ao mundo. Entre essas
contribuições destaca-se o grande movimento no campo da filosofia,
teologia e ciência conhecido como escolasticismo, e o
simultâneo surgimento das universidades, sendo uma das primeiras a
de Paris, fundada no século XII. Dentre os homens produzidos pela igreja
francesa nesse período fecundo, destacam-se o grande místico
Bernardo de Claraval e o teólogo Pedro Abelardo. Foi esse
também o período em que a França deu ao mundo as grandes
manifestações da criatividade humana e cristã que foram as
majestosas catedrais.
II. A Reforma na França
No início do século XVI, a França era a maior
potência da Europa, sendo governada por monarcas absolutistas. Além
disso, desde o século XIII firmara-se a idéia de que a Igreja
francesa tinha uma posição privilegiada em relação a
Roma ("galicanismo"), o que certamente interessava aos reis. No início do
seu reinado, Francisco I (1515-47) firmou com o papa Leão X a
Concordata de Bolonha (1516), que aumentou sensivelmente o poder da coroa sobre
a igreja, concedendo ao monarca o direito de indicar os bispos e outras
autoridades eclesiásticas.
Foi nesse contexto que começaram a difundir-se na França as
idéias revolucionárias pregadas pelo monge alemão Martinho
Lutero, que propunha uma radical reforma teológica e institucional da
Igreja com base nos princípios da centralidade das Escrituras, da
justificação do pecador pela graça de Deus, mediante a
fé em Jesus Cristo, e do sacerdócio universal de todos os
fiéis.
Até o final da década de 1520, Francisco I mostrou-se
tolerante para com os protestantes franceses. A tolerância do rei
transformou-se em hostilidade quando as circunstâncias políticas o
levaram a precisar do apoio da hierarquia francesa e do papa, que agora, em
troca desse apoio, exigiam a supressão dos evangélicos. Como parte
da aproximação com Roma, o rei promoveu o casamento do seu filho
Henrique com Catarina de Médici, uma sobrinha do papa Clemente VII. A
situação complicou-se ainda mais quando elementos protestantes
radicais apelaram para a violência e iconoclasmo.
A partir de 1533, a perseguição de Francisco I contra os
protestantes alternou-se entre prisões, torturas e
execuções, e, ocasionalmente, a moderação exigida
pelas alianças com os príncipes luteranos alemães na luta
contra o imperador Carlos V. Muitos evangélicos foram protegidos da
severidade do rei pela sua própria irmã, Marguerite
d’Angoulême, esposa do rei Henrique de Navarra, outra simpatizante
das novas idéias.
Logo ficou claro que a movimento de reforma na França só
poderia prosperar com auxílio externo, e esse auxílio veio da
igreja reformada de Genebra, sob a firme liderança do mais ilustre dos
protestantes franceses, o pastor e teólogo João Calvino
(1509-1564). Calvino tornou-se conhecido em 1536, quando publicou a primeira
edição da sua importante obra, As Institutas da
Religião Cristã. À guisa de prefácio, ele
escreveu uma longa carta a Francisco I, apelando em favor dos perseguidos. Com
isso, repentinamente Calvino viu-se transformado no grande líder,
ideólogo e apologista do protestantismo francês.
Infelizmente, historiadores de todos os matizes tem contribuído para
perpetuar uma visão distorcida e unilateral do grande Reformador como uma
homem frio, tirânico e implacável ("um prato cheio para os
psicanalistas"). As únicas coisas que muitos sabem sobre Calvino é
que ele postulou a doutrina da predestinação e teve uma
participação na execução de Miguel Serveto. Sua
contribuição maior como teólogo, educador e reformador
é desconhecida. Não se leva em conta que ele teve de lutar quase
toda a sua vida com as autoridades civis de Genebra para levar adiante o seu
programa de reforma. Por outro lado, durante a vida de Calvino, Genebra
tornou-se em abrigo para centenas de refugiados religiosos procedentes de toda a
Europa. Outro fato desconhecido de muitos: nos anos em que esteve em Estrasburgo
(1538-41), Calvino participou de diversas conferências interconfessionais
que visavam a aproximação dos diferentes grupos religiosos da
Europa.
Nos anos seguintes, dezenas de pastores treinados em Genebra
começaram a ser enviados à França para organizar
igrejas. Os primeiros evangélicos da França eram chamados
de huguenotes, mas eles mesmos preferiam o nome "reformados." As igrejas
pioneiras de Meaux e Nîmes (1546-47) foram dispersas pela
perseguição. O martírio dos Catorze de Meaux, por terem
celebrado a Comunhão, foi particularmente odioso. Todos foram submetidos
a terríveis torturas, mas recusaram-se a revelar os nomes de outros
correligionários. Mais tarde, muitos mártires, antes de serem
queimados, teriam suas línguas cortadas, para que não
testificassem acerca da sua fé.
O filho de Francisco I, Henrique II (1547-59), foi ainda mais
rigoroso que o seu pai, promulgando editos de punição aos hereges
e instituindo um tribunal especial para casos de heresia, a Câmara
Ardente. Assim, antes de serem infiltrados na França, os pastores de
Genebra muitas vezes transferiam suas propriedades para as suas famílias,
pois sabiam que provavelmente não retornariam vivos.
Um fato notável desse período foi que os tribunais seculares
resistiram contra a sanha repressora das autoridades seculares e
eclesiásticas. Em 1555, quando o rei procurou estabelecer a
Inquisição, os juristas do Parlamento de Paris tiveram a ousadia
de opor-se a uma negação tão completa dos direitos humanos.
O seu porta-voz, Pierre Séguier, lembrou ousadamente ao rei que o antigo
imperador Trajano havia se recusado a empregar tais métodos "contra os
primeiros cristãos, que eram perseguidos como o são agora os
luteranos." Pelo Edito de Compiègne (1557), os juízes foram
expressamente proibidos de exercer clemência para com os
hereges.
Até 1567, Genebra enviou à França 120 pastores, cujas
congregações eram na maior parte clandestinas. No entanto, o
movimento difundiu-se rapidamente por todo o país. Em 1559, reuniu-se
secretamente perto de Paris o primeiro sínodo nacional da Igreja
Reformada, representando cerca de 2.000 comunidades. Pela primeira vez o
presbiterianismo foi organizado em âmbito nacional. Esse sínodo
aprovou uma declaração de fé, a Confissão
Galicana, cujo texto original foi revisto por Calvino. Uma versão
modificada dessa confissão, aprovada no sínodo de La Rochelle em
1571, continua a ser adotada pela Igreja Reformada da França até
os nossos dias.
O calvinismo francês atraiu determinados grupos sociais como
artesãos especializados, comerciantes independentes e homens de
negócios da classe média, tais como banqueiros. Todavia, o grupo
mais significativo para a Reforma na França foi a nobreza, especialmente
as famílias Bourbon (depois dos Valois, os primeiros pretendentes ao
trono) e Montmorency. O almirante Gaspard de Coligny (Montmorency) veio a
tornar-se um destacado líder huguenote. Outras importantes
famílias nobres do oeste e sudoeste da França também
ingressaram na igreja reformada, seguidos por nobres menos graduados e
camponeses, de modo que essa região tornou-se o bastião militar do
movimento de reforma.
As regiões norte e leste da França estavam sob o controle de
uma facção ultra-católica da nobreza, liderada pela
família Guise-Lorraine. Essa poderosa família ocupou uma
posição de destaque no reinado de Henrique II e possuía
cardeais que exerceram pressão no sentido de organizar-se uma
Inquisição de estilo espanhol para exterminar os calvinistas. Em
reação a isso, os huguenotes formaram um partido político e
militar para defender os seus direitos e a sua fé.
Embora Henrique II e sua esposa Catarina de Médici, sobrinha do papa
Clemente VII, detestassem os protestantes, boa parte das suas energias foram
gastas na perpétua rivalidade com Carlos V. Com a morte prematura do rei
francês, seu filho de 15 anos, Francisco II, subiu ao trono. No seu
breve reinado de um ano e meio, o governo foi controlado pelos Guises, que eram
tios da esposa do jovem rei, Maria Stuart, a rainha da Escócia.
O próximo rei foi o segundo filho de Catarina, Carlos IX
(1560-74), então com apenas 10 anos de idade. Legalmente, a
regência poderia ser exercida pela rainha-mãe ou por Antonio de
Bourbon, rei da Navarra, um líder dos huguenotes. (Sua esposa, Jeanne
D’Albret, uma calvinista convicta, correspondia-se com Calvino e
participou do sínodo nacional de La Rochelle.) Catarina teve êxito
na luta pela regência, mas precisou fazer uma série de
concessões aos reformados. Num esforço para pacificar o
país, ela convocou um encontro e um debate público das
lideranças católicas e protestantes.
O Colóquio de Poissy (setembro/outubro de 1561) foi um
importante reconhecimento oficial da realidade e da força do
protestantismo francês. O chanceler liberal Michel de
L’Hôpital, cuja esposa era uma huguenote, abriu o encontro
convidando as duas partes ao diálogo e ao entendimento. Numa
reação imediata, o arcebispo de Lião e primaz da
França, Cardeal Tournon, levantou-se para protestar contra a
própria natureza da assembléia. Os cerca de 50 bispos presentes,
com todo o seu galicanismo, desprezavam uma conferência imposta pelo
governo que os colocava em pé de igualdade com hereges.
Apesar do protesto, a reunião prosseguiu com a entrada da
delegação dos calvinistas – onze pastores com suas togas
pretas e vinte leigos representando diferentes comunidades calvinistas da
França. O Cardeal Tournon rompeu o embaraçoso silêncio
sussurrando: Voici ces chiens genevois! ("Aí estão os
cães de Genebra"). O líder que adiantou-se para apresentar a
posição dos huguenotes foi ninguém menos que Teodoro
Beza (1519-1605), amigo, confidente e herdeiro aparente de Calvino, bem como
professor de estudos bíblicos na nova Academia de Genebra.
Por cerca de um hora, Beza apresentou a posição calvinista de
modo eloqüente e erudito. A raínha-mãe encheu-se de
esperança e até mesmo os bispos não deixaram de
impressionar-se quando Beza mostrou-se aberto ao entendimento e discorreu sobre
os pontos doutrinários comuns entre as duas confissões, tais como
a trindade e a encarnação. Somente no final do discurso ele fez a
declaração fatal de que na Eucaristia o corpo de Cristo
"está tão distanciado do pão e do vinho quanto o céu
está da terra." A recepção do discurso, até
então educada, foi interrompida por gritos dos prelados acusando Beza de
blasfêmia. Embora deselegante, a colocação de Beza mostrou
que o verdadeiro problema a dividir católicos e protestantes não
eram questões políticas, mas convicções
doutrinárias e teológicas que envolviam os próprios
fundamentos sacerdotais e sacramentais do catolicismo.
Quando o teólogo jesuíta espanhol Diego Lainez obteve
permissão para falar, ele deixou claro à rainha que os seus
intentos de conciliação deixavam de levar em conta que os
calvinistas eram "serpentes, lobos em peles de ovelhas, e raposas." Para que ela
não tivesse dúvidas quanto ao que ele queria dizer, Lainez
insinuou que não somente a coroa, mas a própria alma da
raínha estava em jogo nessas questões.
O Colóquio de Poissy não teve êxito em produzir o
entendimento religioso, mas preparou o caminho para o Edito de
Tolerância de janeiro de 1562, que proporcionou certa liberdade aos
huguenotes. Líderes como Beza continuaram a ter acesso à corte e
procuraram converter a família real. O culto público dos
huguenotes foi permitido em casas particulares e fora dos muros das cidades.
Este foi o divisor de águas do protestantismo francês.
Poucas semanas após o Edito de Tolerância, a
situação dos calvinistas alterou-se radicalmente. Catarina de
Médici inteirou-se da indignação da família Guise e
dos espanhóis. Ela convenceu-se de que a unidade do país e os
direitos dos seus filhos ao trono seriam mais ameaçados pela hostilidade
dos espanhóis do que pelos huguenotes e seus aliados. Assim sendo,
Catarina passou a apoiar a facção católica, o que tornou
inevitável a guerra civil. Por mais de trinta anos, huguenotes e
católicos guerrearam cruelmente entre si, especialmente no sudoeste da
França. O episódio mais infame de toda essa violência foi o
massacre do dia de São Bartolomeu (24-08-1572).
III. O massacre do Dia de São
Bartolomeu
Em um dos seus períodos de moderação, Catarina havia
nomeado o líder huguenote Gaspard de Coligny como membro do
conselho real. Ele rapidamente passou a exercer forte influência sobre o
rei Carlos IX, que havia atingido a maioridade. Isso despertou na rainha
preocupações de ordem política e maternal. Quando Coligny
convenceu o rei a reverter a política externa tradicional e apoiar a
resistência dos protestantes holandeses contra os espanhóis, dessa
maneira criando o risco de uma guerra entre a França e a Espanha,
Catarina concluiu que Coligny precisava ser eliminado.
Sabendo que o seu filho não concordaria com uma
execução legal, Catarina optou pelo assassinato. Ela teve a
idéia de que, caso se acreditasse que o almirante fora morto pelos
Guise-Lorraine, a ira dos protestantes se voltaria contra os Guises, desse modo
eliminando-se ambas as ameaças ao estado, Coligny e a família
Guise. O problema é que o assassino errou o tiro e somente feriu
Coligny.
O rei Carlos enfureceu-se com o atentado contra o seu estimado conselheiro
e Catarina ficou receosa de que ele descobrisse quem foi responsável pelo
ataque. Sentindo que suas pretensões e sua própria vida corriam
perigo, Catarina acusou Coligny de estar tramando com os huguenotes para matar a
família real. Tais rebeldes, argumentou ela junto ao seu filho, deviam
ser executados rapidamente, antes que pudessem atacar a coroa.
O contexto do assassinato de Coligny e dos huguenotes foi o casamento de
Margarete de Valois, filha da Catarina, com Henrique de Navarra, líder
dos protestantes e aspirante ao trono. O casamento, ocorrido no dia 18 de agosto
de 1572, havia reunido em Paris a alta nobreza, inclusive a maior parte dos
líderes huguenotes. O atentado contra Coligny ocorreu no dia 22 e o
complô foi planejado para a madrugada do dia 24.
O sino do Palácio da Justiça deu o sinal às três
da manhã. Para manter a ordem, os portões de Paris foram fechados,
isolando as tropas dos huguenotes que estavam fora da cidade. Um dos
líderes das milícias reais, ligado a Henrique, duque de Guise,
anunciou aos seus homens que o rei havia ordenado a morte de todos os hereges.
Listas de nomes foram providenciadas para facilitar um massacre metódico.
Os desprevenidos huguenotes foram mortos ainda em suas camas, a começar
de Coligny, cujo corpo foi lançado pela janela do seu apartamento e
mutilado. Cerca de 6.000 foram mortos em Paris e milhares em outras cidades. No
fim, cerca de 20 mil foram eliminados em toda a França.
O papa Gregório XIII prescreveu um Te Deum anual de
ação de graças, que foi celebrado por muitos anos. Segundo
consta, o rei espanhol Filipe II riu em público pela primeira vez em sua
vida e ordenou que seus bispos celebrassem o evento com diversas
cerimônias. Todavia, Carlos IX parece ter sido vencido pelo remorso por
sua participação no massacre, morrendo menos de dois anos depois.
Ele foi sucedido por seu irmão Henrique III (1574-89), o
último da casa de Valois, que recusou-se a tomar partido quer com os
católicos quer com os protestantes, colocando a unidade nacional acima da
uniformidade religiosa. A essa altura havia surgido um terceiro partido, os
Politiques, que eram partidários da tolerância religiosa no
interesse da paz.
A oitava e última guerra religiosa ficou conhecida como a Guerra das
Três Henriques. Eventualmente, Henrique III ordenou a morte de Henrique de
Guise (23-12-1588). Treze dias depois, morreu Catarina de Médici. E meio
ano mais tarde o próprio Henrique III foi assassinado, chegando ao fim a
dinastia dos Valois.
IV. O Edito de Nantes
Com a morte de Henrique III, o huguenote Henrique de Navarra, filho de
Jeanne D’Albret, subiu ao trono como Henrique IV. Cinco anos
depois, ele converteu-se ao catolicismo sob pressão da Liga
Católica, que ameaçava declarar a sua sucessão
ilegítima. Segunda uma história popular, ele teria dito: "Paris
vale uma missa." Como o papa Clemente VIII não insistiu em que os
decretos do Concílio de Trento fossem aplicados na França,
Henrique respondeu às preocupações dos seus antigos
correligionários estabelecendo em 1598 uma política de
tolerância limitada, o Edito de Nantes.
O Edito de Nantes fez da Igreja Católica a igreja oficial, com seus
antigos direitos, propriedades e rendimentos. Aos huguenotes, cerca de 15% da
população, foram conferidos direitos religiosos de culto em muitas
áreas, exceto num raio de 30 km ao redor de Paris; direitos civis, tais
como seus próprios tribunais e elegibilidade para cargos públicos,
bem como direitos políticos, inclusive 200 locais fortificados (entre os
quais La Rochelle e Montpellier). O rei Henrique foi informado que o papa estava
"inconsolável" com o edito, por conceder "liberdade de consciência
a todos, a pior coisa do mundo." O Edito expressou a convicção,
rara naquela época, de que a aceitação da diversidade
religiosa era necessária para a preservação da
paz.
O edito não funcionou da maneira perfeita, mas pôs fim
às guerras religiosas. Foi revogado em 1685 por Luís XIV, o que
ocasionou um grande êxodo de huguenotes (cerca de 300.000) para outros
países da Europa e para os Estados Unidos. A Igreja Reformada ficou
conhecida como a "igreja no deserto."
Historicamente, os protestantes nem sempre têm sido coerentes com as
suas convicções no que diz respeito à liberdade de
consciência. Embora a tenham reivindicado para si próprios, muitas
vezes negaram-na a outros grupos, inclusive a outras confissões
evangélicas. Tal foi o caso dos reformados de Zurique em
relação aos anabatistas e dos puritanos da Nova Inglaterra em
relação aos quacres e outras minorias.
Todavia, o sofrimento e o testemunho de grupos como os huguenotes foi mais
um passo na luta pelas liberdades democráticas e pelos direitos humanos
sem os quais a vida seria impossível na complexa sociedade pluralista em
que vivemos. O seu exemplo nos exorta a redobrarmos os nossos esforços
pela manutenção de conquistas como a plena liberdade de culto, a
separação entre a igreja e o estado, e a proteção
das minorias étnicas, raciais e religiosas, conquistas essas que nunca
estão totalmente livres de ameaças.
Os evangélicos insistem no seu direito de atrair outros à sua
fé, mas insistem igualmente que isso deve ser feito com argumentos, com a
palavra e com o exemplo, e não por meio da violência, da
coerção e de outros recursos escusos que violam a dignidade
humana. Como em tudo o mais, o seu exemplo supremo é Aquele que veio ao
mundo como o príncipe de paz e ensinou seus seguidores a amarem a todos,
até mesmo aos seus inimigos.
Dr. Alderi S. Matos