A Justificação pela Fé
nas Tradições Luterana e Reformada:
Um Ensaio em Teologia Comparativa

Heber Carlos de Campos

O propósito deste ensaio é mostrar as similaridades e diferenças entre as duas grandes tradições dentro do protestantismo — o luteranismo e o calvinismo — na mais importante doutrina levantada no período da Reforma do século dezesseis. A concentração deste ensaio será mais nas diferenças do que nas similaridades, tentando despertar no leitor a mente crítica na análise das duas tradições.

Este trabalho é apenas uma tentativa de ser justo com ambos os ramos do protestantismo. Não é meu propósito argumentar extensivamente a favor ou contra luteranos e ou reformados. Meu único propósito é apresentar com precisão as similaridades e diferenças presentes, sem fazer neste trabalho extensiva justificativa bíblica. Será apenas uma apresentação histórico-teológica do assunto sem, contudo, ter uma conotação apologética, muito embora eu não consiga esconder totalmente minhas próprias convicções e predileções reformadas.

A. Similaridades

1. Sobre a Importância da Doutrina da Justificação

A doutrina da justificação é de tal importância para a teologia luterana que, em círculos luteranos, ela é chamada articulus stantis et cadentis ecclesiae (o artigo sobre o qual a igreja permanece ou cai), sendo o artigo principal das confissões luteranas(1), a espinha dorsal da teologia na qual todas as outras doutrinas estão apensas e da qual todas dependem. A doutrina da justificção nos símbolos de fé luteranos é o carro-chefe de doutrina, sendo o core de cada artigo. A Apologia afirma literalmente que, na controvérsia sobre a justificação, "a principal doutrina do cristianismo está envolvida".(2) A Fórmula de Concórdia, citando a Apologia, diz: "Nas palavras da Apologia, este artigo da justificação pela fé é ‘o artigo chefe da totalidade da doutrina cristã’".(3)

Para a fé reformada esta doutrina é também muito significativa. Durante o tempo da Reforma, a mesma importância a esta doutrina foi dada nos círculos calvinistas. Calvino tratou deste assunto em suas Institutas da Religião Cristã, escrevendo sobre ela centenas de páginas. Ele insiste em que a doutrina da justificação é "a principal dobradiça sobre a qual a religião se dependura, de modo que devotemos uma maior atenção e preocupação para com ela".(4)

O contexto histórico da Reforma Protestante do séc. 16, na luta contra o catolicismo romano, exigiu uma grande ênfase na doutrina da justificação pela fé em ambas as tradições, já que o pensamento vigente na Igreja Católica era a de uma justificação na qual as obras faziam parte.(5)

2. Sobre a Justificação pela "Fé Somente"

Está absolutamente evidente que o sola fide é muito enfatizado na teologia luterana em sua batalha contra a teologia do catolicismo medieval. Fé e obras são termos excludentes entre si. Nada poderia ser acrescentado à justiça de Cristo. Nenhuma adição humana seria tolerada.

A doutrina de Trento ensinava que a justiça merecida por Cristo deveria ser apoiada pela justiça do próprio pecador que cooperava com a graça. Literalmente, Trento expressa-se desta forma, no Cânone 9, da Sexta Sessão:

Se alguém diz que o pecador é justificado pela fé somente, significando que nada mais é requerido para cooperar a fim de obter a graça da justificação, e que não é de forma alguma necessário que ele seja preparado e disposto pela ação de sua própria vontade, que seja anátema.(6)

No pensamento luterano, nunca as duas coisas, fé e obras, andaram juntas soteriologicamente. Com os católicos em mente, Melanchton, o escritor de Apologia, diz que "a partícula somente ofende algumas pessoas..."(7) Se eles se desagradam dessa partícula excludente ‘somente’, deixe-os remover os outros termos também excludentes como ‘livremente’, ‘não de obras’, ‘é um dom’, etc."(8)

Em seu comentário sobre a Carta de Paulo aos Gálatas, Lutero diz que somos "justificados não pela fé proporcionada pelo amor, mas pela fé unicamente e somente". Segundo ele, a fé não justifica porque produz o fruto do amor a Cristo, mas porque ela recebe o fruto do amor de Cristo.(9)

Embora Lutero tenha sido o primeiro a enfatizar o pela "fé somente", esta ênfase não é exclusiva da teologia luterana. Stanford Reid disse que "Calvino não hesitou em dar grande ênfase na doutrina da justificação pela fé somente."(10) Reid conclui: "Portanto, se a justificação pela fé somente é uma doutrina especificamente luterana, devemos colocar Calvino no círculo luterano antes que no reformado."(11) Calvino não ignora a dificuldade de defender a expressão "pela fé somente", pois reconhece a força dos ataques de Roma.(12) Contudo, Calvino, embora reconheça que a expressão "pela fé somente" não é encontrada no texto bíblico, e cônscio ainda dos ataques da Igreja de Roma a essa expressão, dá pleno suporte a essa doutrina nascida nos círculos luteranos.(13)

3. Sobre o Aspecto Forense da Justificação

O aspecto forense (14) da justificação é distintivo de todos os reformadores. Eles lutaram contra o conceito de justificação dominante na Igreja de Roma, que se definia mais claramente no Concílio de Trento. Trento afirmava a justiça infusa e rejeitava o conceito forense da justificação e anatematizava todos os protestantes, do lado oposto. Trento insistia na justiça infusa.

Esta disposição ou preparação é seguida pela justificação propriamente, que não é somente uma remissão de pecados mas também a santificação e renovação do homem interior através da recepção voluntária da graça e os dons por meio de que um injusto torna-se justo.(15)

Portanto, na visão de Trento, a justificação é um processo, na qual o pecador é tornado justo, misturando a justificação com a santificação. Estes dois termos são virtualmente sinônimos em Trento. Na visão de Roma, a justiça é infusa, causando mudança na vida interior do pecador. A imputação é negada na prática, e afirmada unicamente a iustitia infusa. Ainda no Cânone 11, Trento afirmou:

Se alguém diz que os homens são justificados unicamente pela imputação da justiça de Cristo ou unicamente pela remissão dos pecados, para a exclusão da graça e da caridade que é derramada nos seus corações pelo Espírito Santo, e permanece neles, ou também que a graça pela qual nós somos justificados é somente a vontade de Deus, que seja anátema.(16)

Os Protestantes não poderiam ficar silentes diante de tal condenação da parte dos Católicos. Eles se uniram na luta contra o forte inimigo que os atacava. A iustitia infusa era inadimissível para os Protestantes. Estes criam que a graça era derramada, mas que a justificação era uma matéria judicial, que tinha a ver com a imputação da justiça de Cristo a nós. A imputação era o coração e a essência da justificação forense. Não poderia haver o aspecto forense da justificação sem a imputação da justiça de Cristo. A doutrina da imputação da justiça de Cristo é co-irmã da doutrina da justificação. Elas não podem estar separadas.

Na teologia luterana, "a justificação é um termo jurídico e significa pronunciar e tratar como justo, justificar."(17) Analisando o texto de Romanos 2.13, a Apologia da Confissão de Augsburgo diz: "Ser justificado aqui não significa que o ímpio é tornando justo, mas que ele é pronunciado justo num sentido forense."(18) Lutero usou a famosa frase simul justus et peccator (ao mesmo tempo justo e pecador), referindo-se à condição simultânea do pecador, onde ele é contado, ao mesmo tempo, como justo judicialmente, em virtude da imputação da justiça de Cristo e, todavia, permanecendo pecador em si e de si mesmo. Por causa do aspecto forense da doutrina, todo pecador é visto como justificado coram Deo.

Calvino seguiu os passos dos reformadores de primeira geração, como Lutero, Melanchton, Oecolampadius, Zwinglio, no aspecto forense da justificação. Reid disse que "semelhantemente aos outros reformadores, Calvino foi um advogado que pensava muito em termos forenses."(19) Calvino diz que "justificado pela fé é aquele que, excluído da justiça das obras, agarra-se à justiça de Cristo através da fé, e vestido com ela, aparece na vista de Deus não como um pecador, mas como um homem justo."(20) A justificação, portanto, segundo Calvino, "acontece quando Deus declara o pecador justo; ele é aceito e perdoado por causa de Cristo somente."(21) Este é o seu conceito forense de justificação.

Está claro para ambas as tradições que todos os que são limpos pelo sangue de Jesus Cristo derramado sobre a cruz são plenamente reconciliados com Deus e aceitos por ele, porque seus pecados foram imputados a Cristo e Sua justiça lhes foi imputada.

4. Sobre a Justiça Transferida

Trento afirmava que a santificação era seguida da justificação. A justificação é o resultado da justiça infusa (não imputada) de Cristo. A justiça é antes transformadora do indivíduo do que creditada a ele. Na verdade, o pecador é justificado com base em uma justiça interna (iustitia in nobis) do que por uma justiça que vem de fora. Em resumo, na teologia Católica, a justiça é dada ao justo antes que ao pecador.

Novamente contra as investidas Católicas, os protestantes afirmavam uma justiça que vem de fora deles, uma justitia extra nos, vinda da imputação da justiça de Cristo.

A teologia luterana diz que a "justiça concedida ao pecador não é sua própria, produzida por ele mesmo, mas uma ‘justiça que vem de fora pertencente a Jesus Cristo. A justiça não é uma qualidade do homem. Ela consiste antes em ser justo somente através da imputação graciosa da justiça de Cristo, isto é, uma justiça ‘fora’ do homem."(22)

Semelhantemente, Calvino enfatizou a iustitia aliena, isto é, a justiça que vem de outro, que vem de fora. Embora como Lutero Calvino use a frase "pela fé somente", ele é cuidadoso em dizer também que a fé não efetua de si mesma a justificação, mas entende que a fé é o meio pelo qual nos apropriamos da justiça de outro, que é transferida a nós. Ele diz: "Não há nenhuma dúvida de que aquele que é ensinado procurar justiça fora de si próprio é destituído de justiça em si mesmo."(23) Mais adiante, Calvino diz: "Você pode ver que nossa justiça não está em nós, mas em Cristo, e que a possuimos somente sendo participantes em Cristo; de fato, com ele possuimos todas essas riquezas."(24)

A justiça de Cristo, portanto, é ensinada como sendo imputada a nós. A justificação do ímpio vem de fora dele, iustitia extra nos, procedendo da justiça de Cristo. Ambas as tradições enfatizam a justiça que não é própria do homem, mas vem de fora, transferida de Jesus Cristo para nós.

5. Sobre o Papel da Fé na Justificação

O papel da fé na justificação também trouxe controvérsia dos Reformadores contra Roma. Esta negava que havia a justificação pela fé que recebe e descansa em Cristo somente para a salvação, tal como ela é livremente oferecida no Evangelho. Roma ensinou que o pecador é justificado pela fé em Cristo, mas é uma fé informada pelo amor (25), sendo o gérmen de uma nova obediência. Essa fé é infusa no coração do homem quando do batismo dos infantes, de forma que ela apaga o pecado original. Esse tipo de fé foi rejeitado pelos Reformadores, porque ela não somente é infusa, mas porque ela exala algum tipo de necessidade de boas obras que estão contidas nessa fides caritate formata.

Para o luteranismo, a fé tem um papel muito diferente, porque é diferente o conceito de fé. Ela é preponderante na justificação, dentro da tradição luterana. "A fé que justifica, contudo, não é um mero conhecimento histórico, mas uma aceitação firme da oferta de Deus de prometer o perdão dos pecados e a justificação. ...Fé é aquela adoração que recebe as bênçãos que são oferecidas por Deus."(26)

Dentro da tradição luterana, a fé vem em oposição aos que confiavam na guarda da lei como base para a justificação. A Apologia da Confissão de Augsburgo diz que:

a obediência da lei justifica pela justiça da lei. Mas Deus aceita esta justiça imperfeita da lei somente por causa da fé... Disto fica evidente que somos justificados diante de Deus pela fé somente, visto que pela fé somente recebemos o perdão dos pecados e a reconciliação em nome de Cristo... Portanto, ela (justificação) é recebida pela fé somente, embora a guarda da lei siga com o dom do Espírito Santo.(27)

Para o Calvinismo, a fé tem também um papel importantíssimo. É pela fé somente que o homem é justificado, mas a fé em si mesma não justifica. Através dela o homem abraça a Cristo por cuja graça somos justificados. "É dito da fé que ela justifica porque ela recebe e abraça a justiça oferecida no Evangelho."(28)

Osiander, contra quem Calvino se insurgiu, havia dito erroneamente que a "fé é Cristo". Em resposta a ele, Calvino disse que "a fé, que é o único instrumento para receber a justiça, é ignorantemente confundida com Cristo, tornando-o a causa material e ao mesmo tempo o Autor e Ministro deste grande benefício."(29) A fé para Calvino era apenas a causa instrumental da justificação.

Somente Deus justifica. Então, nós transferimos esta mesma função a Cristo porque a ele foi dado ser nossa justiça. Comparamos a fé a uma espécie de vaso. A menos que venhamos esvaziados e com a boca de nossa alma aberta para procurar a graça de Cristo, não seremos capazes de receber Cristo.(30)

Para ambas as tradições, portanto, a fé não é a base para a justificação, mas simplesmente o meio, o órgão de apropriação, ou o instrumento dela. Pela fé somente o pecador toma posse de todas as bênçãos da justificação.

B. Diferenças

Nesta segunda parte deste ensaio destaco as diferenças que existem entre as duas tradições, luterana e calvinista, para fins didáticos. As diferenças não são mais importantes que as semelhanças, mas aquelas são menos desconhecidas que estas. Portanto, a finalidade de tratar com mais detalhes das diferenças é com o propósito de ajudar o leitor a compreender onde as duas maiores tradições da Reforma pensaram diferentemente.

1. Diferença Quanto à Extensão da Justificação

a) Embora na teologia luterana a doutrina da justificação pela fé seja o articulus stantis et cadentis ecclesiae, controlando todas as outras doutrinas, inclusive as relacionadas com a soteriologia, o aspecto da sua extensão está na dependência de uma outra importante doutrina do esquema teológico luterano — a doutrina da Graça Universal, isto é, a doutrina que ensina que Jesus Cristo morreu e realmente justificou o mundo. Dentro da tradição Luterana, a expressão "o mundo" deve ser entendida como "cada pessoa sem exceção". Esta doutrina exerce uma influência muito grande na extensão da justificação, dizendo que "o juízo justificante de Deus cobre todos os homens. Como Cristo morreu não somente pelos crentes mas por todos os ímpios ... todos eles foram justificados pelo seu sangue perante Deus."(31) Comentando 1 Coríntios 5.18-20, que trata da reconciliação, Theodore Engelder, um teólogo do Sínodo de Missouri, critica um outro luterano famoso, o Dr. Lenski, dizendo que:

ele repudia e ridiculariza o ensino de que na manhã de Páscoa Deus perdoou realmente todo o mundo e todos os seus pecados, e que real e verdadeiramente Deus justificou o mundo. Ele protesta contra tornar a reconciliação objetiva, contra a justificação geral, querendo dizer que Deus realmente não pronunciou o mundo, e cada um dos indivíduos do mundo, realmente inocente de todo o pecado e culpa.(32)

A doutrina da justificação objetiva tem que combinar com a doutrina da graça universal. Por essa razão, McGrath comenta:

Assim como pouco podemos limitar a redenção de Cristo a certos indivíduos, assim pouco podemos limitar o efeito imediato desta redenção, isto é, justificação, a esses indivíduos; pelo sangue de Cristo todos os homens são justificados.(33)

Segundo a teologia luterana, a graça de Deus é universal. Portanto, Cristo Jesus levou os pecados de todos os homens sem exceção, trazendo-lhes justificação.

Deus, então, não imputou aos homens as suas transgressões. Ele, então, perdoou todos os seus pecados, os pecados de todos eles. O ato de perdoar é um ato terminado, é cumprido, os pecados são perdoados a todos os homens. Portanto, não pregamos a respeito do perdão de pecados, mas nós pregamos o perdão em si, oferecemos aos homens um produto terminado, não uma possibilidade futura.(34)

Por essa razão, Deus não imputa mais aos homens todos os seus pecados, porque todos foram justificados em Cristo, que por eles todos morreu. Todos os homens sem exceção são declarados justos diante de Deus pelo fato de Cristo ter morrido por eles.

b) A teologia reformada da extensão da justificação tem também a mesma dependência da obra cristológica, mas a diferença está na extensão da expiação. O que faz a diferença nas duas tradições é a diferença na extensão da expiação, não o conceito de justificação. Segundo a fé reformada Deus justifica somente o seu povo, sua igreja, aqueles que pertencem a Deus, aqueles que o Pai entregou ao Filho para que por eles morresse e ressuscitasse, os chamados eleitos.

Esta doutrina reformada pode ser claramente deduzida de Romanos 8.33-34. A extensão da justificação está limitada aos eleitos de Deus, conforme o texto de Paulo: "Quem intentará acusação contra os eleitos de Deus? É Deus quem os justifica" (Rm 8.33).

Ninguém pode fazer qualquer acusação contra os eleitos de Deus, porque eles já receberam a justificação de Deus, que os torna sem débito perante a lei. Eles não mais são devedores à lei. Sua dívida foi quitada pelo "fiador" deles (Hb 7.22), que se tornou responsável pelas obrigações legais daqueles a quem ele representou. Portanto, nem o inimigo deles, Satanás, pode fazer qualquer acusação na presença de Deus, contra aqueles que têm o seu débito devidamente pago; e um pagamento que é perfeitamente aceito pelo credor, porque é pagamento de alguém que foi enviado justamente para tal tarefa.

"Quem condenará os eleitos de Deus? É Cristo Jesus quem morreu, ou antes, quem ressuscitou, o qual está à direita de Deus, e também intercede por nós" (Rm 8.34).

Deus, portanto, considera todos os seus eleitos justificados, em virtude da obra redentora feita por Jesus Cristo em favor deles. Eles não mais podem ser condenados, pois a dívida foi paga, e a mesma dívida não pode ser paga duas vezes, pois isso seria injustiça de Deus. Deus, por questão de exatidão, não pode lançar na condenação nenhuma pessoa por quem Jesus Cristo morreu. Se ele fizesse isso, seria injusto consigo mesmo, pois estaria considerando nula uma obra tão importante que seu Filho veio fazer. Se ele veio morrer pelos pecados do seu povo, Deus já puniu o seu povo, pelos seus pecados. Ora, se Deus já puniu seu povo na morte de Jesus, por que iria puni-lo uma segunda vez? Como a mesma culpa pode ser paga duas vezes? A morte de Cristo, que é substitutiva, tira qualquer possibilidade de que alguém por quem ele veio morrer, receba de novo a condenação de seus pecados. É preciso que esta verdade seja devidamente entendida. A morte de Jesus Cristo na cruz em favor do seu povo é algo extremamente sério para ser anulada apenas pela incredulidade dos pecadores. Na verdade, todos os pecadores por quem Jesus morreu são, de fato, justificados, e não mais terão que pagar suas próprias culpas.

Todos os eleitos de Deus recebem a graciosa obra de justificação, e somente eles. Ninguém mais. Além disso, o texto diz que Deus considera plenamente satisfatório o que Cristo fez, pois é dito que é "Deus quem os justifica". Se Deus justifica, ninguém pode condenar. E a base dessa verdade, segundo o texto de Romanos 8.34 é o fato de Jesus Cristo ter morrido e resssucitado pelos eleitos de Deus.

A grande diferença entre as duas tradições é realmente vista quando elas estudam o texto básico sobre justificação, que é Romanos 5.12-19.

Quando tratamos da extensão da justificação, ambos, luteranos e reformados, vão para o mesmo texto supra-citado. A diferença entre as duas tradições não está na definição ou no conteúdo da doutrina da justificação, mas nas pressuposições contidas na extensão da doutrina da expiação, com as quais vamos estudar essa matéria.

A teologia luterana interpreta este texto do seguinte modo: "Pela desobediência de um, Adão, todos os homens foram tornados pecadores pela imputação, v.19a, e, por causa do pecado de Adão, a condenação da morte veio sobre todos os homens, v.18a."(35) Até este ponto ambas as tradições concordam perfeitamente. Contudo, quando Paulo começa a falar a respeito daqueles que são justificados, a diferença de interpretação logo surge. A teologia luterana interpreta o v.18b deste modo: "Porque é um fato que a ofensa de Adão resultou na condenação de morte para todos os homens; da mesma forma é um fato que a justiça de Cristo resultou na justificação de vida para todos os homens."(36) Todos os homens que estão debaixo da condenação de Adão, estão também debaixo da justificação de Cristo. Segundo a teologia luterana, Paulo está falando de um e do mesmo povo. Segundo a tradição luterana, este texto prova "conclusivamente que o julgamento gracioso original de Deus, pelo qual os pecadores são absolvidos e contados como justos, não é limitado aos crentes, mas cobre todos os homens. Por esta razão, ela é chamada justificação universal."(37)

A teologia reformada interpreta este mesmo texto de uma forma diferente. Ela assevera que Paulo está falando de dois povos diferentes neste texto. Ele está falando da "velha humanidade" em Adão e da "nova humanidade" em Cristo. Todos aqueles que estão debaixo da obra de Cristo um dia também estiveram debaixo da condenação de Adão, mas nem todos os que estão debaixo da condenação de Adão estão também sob a obra de Cristo. O "todos" em Adão não é equivalente ao "todos" em Cristo. Mas deve ser entendido que o "todos" em Cristo certamente recebem a "justificação que dá vida".

Ambos, luteranos e reformados, crêem que "todos" estão justificados, mas a diferença real é a respeito de quem Paulo está falando. Quem são os "todos"? Os luteranos dizem que eles são exatamente os mesmos que estiveram em Adão, mas os reformados dizem que eles não são exatamente os mesmos numericamente. Estas interpretações distintas fazem uma enorme diferença na extensão da justificação.

2. Diferença Quanto à Relação entre Justificação

Objetiva e Subjetiva(38)

Ambas as tradições crêem que a justificação objetiva é a base para a justificação pessoal ou subjetiva, mas a diferença entre elas está na aplicação da justificação subjetiva, como um resultado da justificação objetiva.

A tradição luterana crê que:

as grandes bênçãos espirituais que Cristo preparou para todos os homens através de sua vida santa e de seu sofrimento e morte inocentes, e que são oferecidos livremente a todos no evangelho, não ajudarão aqueles que as rejeitam em incredulidade ... Assim, a justificação objetiva ou universal não deve ser elaborada para significar que eo ipso todos os homens agora desfrutam perdão, sejam pessoalmente justificados e serão salvos.(39)

Dessa citação de Koehler posso dizer que, de acordo com a tradição luterana, não há qualquer garantia de que todas as pessoas por quem Jesus morreu serão pessoal e infalivelmente salvas. A obra de Jesus Cristo não é eficaz em cada pecador por quem ela é feita, no sentido de todos, sem exceção, experimentarem uma justificação pessoal. A razão para isto é que alguém pode rejeitar os benefícios da justificação objetiva através da incredulidade. Segundo a tradição luterana, o ato de perdoar foi terminado, cumprido, e os pecados de todos os homens são realmente perdoados. A tradição luterana diz: "Nós pregamos o perdão em si mesmo; nós oferecemos aos homens um produto acabado, não uma possibilidade futura."(40) Contudo, a ausência de fé impede que alguém possa ser salvo e possa desfrutar a salvação. E a tradição luterana insiste: "Todavia, sua incredulidade não invalida o fato que seus pecados são perdoados".(41)

Portanto, eu posso dizer que a justificação objetiva não ocasiona, necessariamente, a manifestação da justificação subjetiva. A aplicação desta última depende, em última instância, do indivíduo, porque "é pela fé, e pela fé somente, que o indivíduo aplica a si próprio o julgamento gracioso de Deus, e, assim, ganha a posse pessoal e o desfrutar de tudo o que ela implica."(42)

Diferentemente, na tradição reformada há o ensino de que todas as pessoas por quem Cristo morreu, infalivelmente serão salvas. A justificação objetiva é uma obra do Redentor que é feita extra nos, num determinado tempo da história do mundo (nisto Luteranos e Calvinistas estão juntos), mas na concepção calvinista essa obra que é feita objetivamente na cruz assegura a aplicação da justificação subjetiva. Portanto, a justificação subjetiva é um resultado da obra eficaz do Espírito Santo que, por meio da Palavra, gera fé nos corações daqueles por quem Jesus morreu. Nesta obra de aplicação da obra redentora de Cristo, o Espírito não falha. Todos aqueles que foram justificados coram Deo (diante de Deus), através da obra realizada por Jesus Cristo, são trazidos à fé pelo Espírito Santo, através da instrumentalidade da pregação da Palavra. A obra do Espírito Santo é aplicar a soteriologia objetiva ao coração do pecador, trazendo-o à fé, que é o instrumento ou órgão de apropriação da justiça de Cristo conquistada na cruz. Quando uma pessoa crê, ela é justificada pessoalmente, tomando posse das bênçãos de Cristo conquistadas em seu favor na cruz. A aplicação da justificação objetiva de Cristo não depende do pecador, mas é unicamente o resultado da obra do Espírito Santo que usa a Palavra para criar fé no coração. Então o pecador crê e a justificação subjetiva acontece.

Para que entendamos esta diferença de aplicação da justificação é necessário que entendamos um outro aspecto muito importante, que é o da relação entre a obra do Espírito e a pregação da Palavra, em ambas as tradições.

Na tradição luterana, a obra do Espírito Santo é absolutamente inseparável da pregação da Palavra no sentido em que cada vez que a Palavra é pregada, o Espírito Santo opera nos corações dos homens com a mesma intensidade, fazendo tudo o que é possível para convencê-los de sua pecaminosidade, tentando trazê-los todos à salvação. Mas, ao mesmo tempo, os homens são capazes de resistir à obra do Espírito Santo nos seus corações. Neste sentido, é dito que eles rejeitam sua obra, e a justificação objetiva não lhes é aplicada, e eles, por causa de sua incredulidade não são justificados pessoalmente, mas condenados.

Na tradição reformada, contudo, a obra do Espírito Santo é relacionada à pregação da Palavra (embora em alguns círculos de pensadores reformados haja a crença de que a obra regeneradora do Espírito, excepcionalmente, precede a pregação da Palavra), mas nem sempre o Espírito opera aplicando a obra da redenção através da pregação da Palavra nos corações dos que a ouvem. Ele aplica o Evangelho simplemente àqueles por quem Jesus Cristo morreu, no tempo que lhe apraz. Nem todo eleito crê logo que ouve a pregação, nem a obra do Espírito (e, obviamente, o resultado da pregação) é a mesma em todas as pessoas que ouvem a pregação da Palavra. Ele não opera do mesmo modo em todos os ouvintes. Mas, certamente, ele é diretamente responsável pela obra que causa a fé justificadora, ou a justificação subjetiva. Sua obra é sempre eficaz e ele nunca falha na aplicação da obra de Cristo ao coração dos pecadores. Ele sempre torna certa a justificação pessoal deles.

3. Diferença Quanto ao Motivo da Justificação e da Condenação

É crido por ambas as tradições que a base para a nossa justificação é encontrada na obediência ativa e passiva de Jesus Cristo. É também crido por ambas que a fé é a causa instrumental da justificação ou o medium apprehendens, pelo qual recebemos o que nos é oferecido na pregação do Evangelho.

Mas quando tratamos da causa da condenação, as diferenças aparecem. A condenação é o oposto da justificação. Se uma pessoa não é justificada, isto é, se ela não é pessoalmente perdoada, ela certamente será condenada. A pergunta que se faz, então, é: Qual é a base para a condenação?

Segundo a tradição luterana, todos os homens, sem exceção, são objetivamente justificados, e eles não podem ser condenados pelos pecados pelos quais Jesus Cristo morreu. Então, quando se fala a respeito da justificação subjetiva, sempre se menciona a fé, mas se uma pessoa não crê na oferta de salvação, ela é condenada por causa de sua incredulidade, não por causa daqueles pecados pelos quais Jesus já morreu. Novamente eu faço uma citação, que reflete a tradição luterana: "Todavia, a sua incredulidade não invalida o fato que seus pecados são perdoados."(43) As pessoas que têm os seus pecados perdoados não podem ser condenadas por eles. Portanto, se um pecador é objetivamente perdoado na cruz, certamente não pode ser levado à condenação por aquilo que já foi pago. Então, o único pecado que pode trazer condenação, e pelo qual Jesus não pagou, é a descrença na obra de Jesus, ou seja, a incredulidade.

Segundo a tradição reformada, o aspecto da incredulidade é relevante, mas a ênfase na matéria da condenação não está nela, mas no fato de os pecadores serem culpados por seus pecados, e porque seus pecados têm que ser pagos. Somente seus pecados os conduzem à condenação, nada mais. Eles não são condenados simplesmente porque são descrentes, mas porque merecem condenação em virtude de sua pecaminosidade que não foi expiada. Assim como a fé não é a base da justificação, a incredulidade não é a base ou a causa da condenação. Para expressar isto em outras palavras, na fé reformada crê-se que assim como a fé é o órgão de apropriação para as bênçãos da salvação, a fim de desfrutá-las nesta presente vida, assim a incredulidade também é o instrumento através do qual se toma posse das maldições da ira de Deus, mesmo neste tempo presente, sofrendo a ausência de paz, pela separação de Deus, uma espécie de antecipação da morte eterna, que será aplicada na manifestação final da ira de Deus.

A fim de entendermos essas duas diferentes posições dos herdeiros da Reforma, temos que entender antes alguma coisa da extensão da expiação de Cristo.

Na tradição luterana, a obra expiatória de Jesus Cristo foi feita em favor de cada pessoa sem exceção. Objetivamente, através da obra de Jesus Cristo, todas as pessoas são perdoadas, e apenas os que crêem são subjetivamente justificados.

Na tradição reformada, diferentemente, a obra de Jesus Cristo é em favor e no lugar daqueles que são seus, do seu povo, daqueles que o Pai lhe havia entregue. Portanto, todas essas pessoas que o Pai entregou ao Filho são objetivamente e subjetivamente justificadas, tendo os seus pecados perdoados, porque todos aqueles por quem Jesus Cristo morreu, por causa da obra do Espírito neles, certamente virão à fé.

Então, o motivo da justificação-condenação, obviamente, segue diferente nas duas tradições:

Na teologia luterana não há nenhum lugar para um duplo pagamento, isto é, o mesmo débito sendo pago duas vezes (uma vez por Cristo e a outra pelo pecador), porque a teologia luterana crê numa substituição real. Se há substituição, as pessoas substituídas na cruz (e cada pessoa sem exceção o é), não têm que pagar pessoalmente os seus pecados, pois eles já foram pagos. Por esta razão, a motivo da condenação é a incredulidade.

Na teologia reformada também não há qualquer lugar para o pagamento duplo da mesma penalidade, porque ela também crê na real substituição. Se um morreu no lugar de outros, esses outros não mais têm que pagar o mesmo débito. Eles já estão absolutamente livres desse pagamento! Mas a diferença entre esta tradição e a outra é que nesta nem todas as pessoas têm os seus pecados pagos na cruz. O motivo da condenação não é simplesmente a sua incredulidade, mas seus pecados. Então, eles experimentam pessoalmente a ira de Deus por causa de sua pecaminosidade não expiada, enquanto que os eleitos (os do seu povo) desfrutam o amor salvador de Deus porque tiveram seus pecados pagos na cruz.

4. Diferença Quanto à Relação entre a Justificação e os outros

Aspectos da Soteriologia

Como a doutrina da justificação é o articulus stantis et cadentis ecclesiae, o artigo central da fé luterana, todos os outros aspectos da soteriologia são estudados à luz do conceito da justificação, e mesmo alguns luteranos dizem que a justificação é sinônima de regeneração, redenção, etc, seguindo os ensinos de suas Confissões.

Quando os teólogos luteranos tratam desta matéria, a palavra ‘justificação’ assume uma conotação diferente, não ligada estritamente aos termos bíblicos e forenses. Teologicamente (ou em seu "sentido doutrinário"), o termo ‘justificação’ é diferente e mais amplo(44) "contendo muito mais significação por detrás de si do que mesmo os vocábulos do hebraico e do grego."(45) Aqui, a justificação é usualmente sinônimo de Evangelho num sentido mais estrito.

Os teólogos reformados não fazem distinção entre a justificação num sentido mais estrito e num sentido mais amplo. Eles não usam metáforas ou outra coisa qualquer para expressar a identidade da justificação com outras matérias soteriológicas. Eles dizem, contudo, que a justificação é um aspecto do processo total da restauração do pecador, mas por causa da sua importância doutrinária, a justificação é relacionada intimamente com todos os outros aspectos da soteriologia. Por exemplo, a regeneração não é uma "metáfora" para justificação, mas ela é absolutamente ligada à regeneração, sendo que esta última causa mudança na vida do pecador enquanto que a primeira causa mudança no modo de Deus tratar o pecador.

Não existe qualquer diferença entre "um sentido doutrinário" mais amplo e um significado mais limitado do entendimento exegético dos vocábulos, na teologia reformada. A ênfase da teologia reformada é apenas no aspecto forense da justificação e, portanto, mais relacionado ao aspecto exegético do significado dos vocábulos nas línguas originais. Por esta razão, há uma relacionamento próximo entre a justificação e os outros aspectos soteriológicos, mas não há nenhum sentido mais amplo de justificação como o que está presente nas Confissões Luteranas.

5. Diferença Quanto à Origem e os Elementos Constitutivos da Fé Justificadora

Ambas as tradições crêem que Cristo é o objeto de nossa fé. Contudo, é necessário entender que devemos saber algumas coisas do que ele disse e do que ele fez, que estão registradas no Evangelho. Por esta razão devemos crer no evangelho. Neste sentido, o Evangelho é também o objeto de nossa fé.

Ambas as tradições também crêem que a fé é gerada no coração dos homens pela obra do Espírito Santo, mas a questão a respeito dos instrumentos que causam a fé levanta algumas diferenças entre elas:

Sobre a Origem da Fé Justificadora

Na tradição luterana, a fé é gerada através da pregação do Evangelho e através da administração dos sacramentos, batismo e eucaristia.(46)

Na tradição reformada, a fé vem como resultado da obra do Espírito, apenas através da pregação do Evangelho, e não através do batismo (ou outro sacramento), como é crido na tradição luterana.

Sobre os Elementos Constitutivos da Fé Justificadora

O que faz a diferença entre as duas tradições são os elementos constitutivos da fé justificadora.

A teologia reformada crê que a fé justificadora sempre deve conter um elemento intelectivo. Aquele que crê tem que possuir algum conhecimento daquele em quem crê e daquilo que ele disse e fez. Quando um infante, de absoluta tenra idade, é batizado, ele não tem a capacidade de entender nada daquilo que é feito com ele, nem a capacidade de entender algo a respeito de Cristo ou de sua obra, ou ainda de suas palavras. Os reformados batizam os seus infantes, mas o batismo não gera fé nos corações deles, porque na fé justificadora, de acordo com a teologia reformada, os três elementos devem estar presentes: intelectivo, emocional e volitivo. Contudo, no batismo dos filhos pequeninos, estes elementos não podem estar presentes. Portanto, o sacramento em si mesmo, não gera fé neles. Eles são batizados, não porque crêem ou porque o sacramento gera algo neles, mas porque são herdeiros das promessas, pois Deus diz que abençoaria os crentes e os seus filhos, sendo a promessa de salvação para os do pacto e de sua descendência.

A teologia luterana, contudo, não dá ênfase a esses três elementos, especialmente no caso do batismo dos infantes. O elemento mais importante para ela é a "fiducia", a confiança do coração, que certamente acontece no coração de quem é batizado, mesmo quando ainda na mais tenra idade. Um dos mais representativos teólogos luteranos, ainda estudado e aceito nos círculos luteranos, disse que fiducia é:

o ato apresentado pelo homem, esteja ele dormindo ou acordado, seja ele adulto ou criança, seja debaixo de circunstâncias normais quando ele está cônscio de sua fé ou nas horas mais severas de provação quando ele imagina que perdeu a sua fé.(47)

Por essa razão é crido que fiducia pode acontecer no coração de um infante quando o sacramento do batismo é ministrado.

Essa questão sobre os elementos constitutivos da fé faz uma enorme diferença quando se trata do assunto da justificação subjetiva. Em outras palavras, segundo a tradição luterana, todos os infantes que são devidamente batizados são justificados subjetivamente, porque o elemento fiducia já está presente no coração deles, independente de qualquer entendimento que eles possam ter daquilo que objetivamente Jesus Cristo fez por eles. Na fé reformada, contudo, o elemento fiducia aparece quando há o devido entendimento da mensagem que é proclamada, porque a fé vem pelo ouvir da pregação. Portanto, somente aqueles que crêem pessoalmente é que são justificados subjetivamente, e eles crêem simplesmente porque entendem aquilo que lhes é pregado. O elemento intelectivo (juntamente com os outros dois) é extremamente importante para que haja fé. A fé não é cega, ela pressupõe um conhecimento de Cristo. Quando alguém crê no que é pregado, por graça divina, esse conhecimento se torna salvador. Aí, então, acontece a justificação subjetiva.

Um outro aspecto importante da tradição reformada é que, quando um infante morre, ele não precisa ser justificado subjetivamente, porque a fé só é necessária para que se desfrute a salvação neste presente mundo. Já que a criança não vai desfrutar da salvação nesta vida presente, ela não necessita de fé.

6. Diferença Sobre a Ordo Salutis

Na teologia luterana a ordo salutis, geralmente falando, começa com a obra da justificação. "Então, quando a pessoa é justificada, ela é também renovada e santificada pelo Espírito Santo, da qual (justificação) a renovação e a santificação, e os frutos das boas obras provém."(48) Lutero também segue uma ordo salutis parecida na explicação do artigo terceiro de seus catecismos. Pieper diz que nessa explicação e "em todas as passagens na qual ele (Lutero) chama a doutrina da justificação, como a doutrina central, e ao redor da qual todas as outras doutrinas estão agrupadas, seja como antecedens ou consequens."(49) A regeneração, ou a renovação é algo posterior à fé justificante. A Apologia da Confissão de Augsburgo, preparada por Melanchton diz que "quando nós cremos, o Espírito Santo desperta os nossos corações através da palavra de Cristo."(50) Portanto, o despertamento (que é equivalente à regeneração segundo o entendimento da teologia reformada) acontece como um resultado da fé, na tradição luterana. Isto está claro em outros lugares: "Visto que a fé traz o Espírito Santo e produz a nova vida em nossos corações, ela deve também produzir os impulsos espirituais no coração ... Após termos sido justificados e regenerados pela fé, portanto, começamos a temer e amar a Deus..."(51) Em outro lugar ainda diz: "A fé somente aceita o perdão dos pecados, justifica e regenera."(52) E ainda: "A fé é o verdadeiro conhecimento de Cristo, ela usa suas bênçãos e ela regenera nossos corações."(53)

Portanto, na teologia luterana, a fé é o que causa a regeneração. O novo nascimento também é produto da fé justificadora. Os símbolos luteranos dizem que "nós não podemos guardar a lei a menos que tenhamos sido nascidos de novo pela fé em Cristo."(54) É verdade que é também dito nas Confissões que a regeneração é obra do Espírito, mas tem que ser entendido que a regeneração do Espírito é mediante a fé. É uma ordo salutis diferente da esposada pela fé reformada.

Na fé reformada a ordo salutis é totalmente diferente. A primeira coisa a ser considerada nela é a regeneração (que normalmente nos adultos acontece concomitantemente com a pregação da Palavra), que é a implantação do princípio de vida, e então, a pessoa nasce de novo, sendo habilitada a crer em Cristo, a fim de ser justificada subjetivamente. A fé é o resultado do ato regenerador de Deus, não a causa que leva o Espírito Santo a operar a regeneração. Por esta razão, na fé reformada, os pequeninos não são batizados a fim de serem justificados. Eles podem ser objeto da obra regeneradora do Espírito Santo antes de terem a fé justificadora. Sendo objeto da obra regeneradora de Deus, quando ouvem a Palavra e a entendem em alguma medida, crêem no seu Redentor. A teologia reformada segue geralmente uma forma mais desenvolvida da ordo salutis, incipiente em Romanos 8.30.

Algumas Conclusões

Nas partes em que diferem:

1. As diferenças entre ambas as tradições não são unicamente as de interpretação de textos relacionados à justificação, mas estão, sobretudo, nas suas pressuposições teológicas.

2. Ambas as tradições possuem uma estrutura teológica bastante consistente, se as entendemos à luz de sua própria hermenêutica e pressuposições.

Nas partes em que concordam:

3. Ambas as tradições, na formulação de sua doutrina sobre a justificação, lutaram contra o mesmo inimigo, a teologia da Igreja de Roma. O nascedouro dessa doutrina tem a mesma raíz em ambas as tradições.

4. Ambas as tradições sempre concordam nos pontos onde o inimigo comum foi a a teologia da Igreja de Roma com respeito à doutrina da justificação.

 English Abstract

This article is a comparison of the Lutheran and Reformed teaching on Justification by faith. Dr. Campos compares what these two great traditions within Protestantism believe, showing their similarities and differences on this issue.

Both traditions agree as to the importance of the doctrine, its forensic aspect, the fact that it is by faith alone, that it is imputed and as the role of faith in justification. They disagree however as to the extension of Justification, the relation between objective and subjective Justification, the basis on which God justifies and rejects, the relation between Justification by faith and other aspects of soteriology, the origin and the elements of justifying faith, and the order of salvation.

Dr. Campos concludes that the differences are due mainly to the theological pressupositions of both traditions as they interpret the relevant biblical passages. He also points out that they agree whenever they face their common enemy, Roman Catholic teaching on Justification.

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Notas

1 No Book of Concord (Philadelphia: Fortress Press, 1959), onde estão todos os principais documentos confessionais luteranos, o artigo sobre a justificação é o mais extenso de todos, especialmente na "Apologia da Confissão de Augsburgo".

2 "Apology of Augsburg Confession", Art. IV,2 (Book of Concord, p.107,2).

3 "Formula of Concord, Solid Declaration", Art.III, 6 (Book of Concord, p. 540,6).

4 John Calvin, Institutes of Christian Religion, vol. 1 (Philadelphia: The Westminster Press, 1960, editado por John T. McNeill), III, 11,1.

5 No período da controvérsia sobre a justificação entre protestantes e católico, a Confutação Romana dizia: "É inteiramente contrário à Santa Escritura negar que nossas obras são meritórias...Contudo, todos os católicos confessam que, de si mesmas, nossas obras não têm nenhum mérito mas que a Graça de Deus os torna dignos da vida eterna (Pt I, Art. IV). Esse documento de Roma diz ainda que a atribuição dos Príncipes luteranos "da justificação à fé somente é diametralmente oposta à verdade do Evangelho, pelo qual as obras não são excluídas..." (citado no Book of Concord, 107, nota de rodapé 8). O Cânone IX do Concílio de Trento, tratando da justificação diz: "Se alguém diz que pela fé somente o ímpio é justificado, de modo que queira dizer que nada mais é requerido para cooperar a fim de obter a graça da justificação, e que não necessário de modo algum, que ele esteja preparado e disposto por um movimento de sua própria vontade: que seja anátema." (vide Philip Schaff, Creeds of Christendom, vol. 2, [Grand Rapids: Baker, reimpressão 1990] 112 - itálicos acrescentados).

6 H.J. Schroeder, Canons and Decrees of the Council of Trent, (London: Herder Book Co., 1941), 43.

7 Esta expressão de Melanchton nasceu de uma tradução que Lutero fez de Rm 3.28, onde ele diz que "o homem é justificado pela fé somente, independentemente das obras da lei", sendo que o texto grego não inclui literalmente a palavra ‘somente’.

8 Art. IV, 73 (Book of Concord, 117,73), itálico acrescido.

9 Joel R. Beeke, em Justification by Faith Alone, editado por Don Kistler, (Soli Deo Gloria Publications, 1995), 81.

10 Stanford Reid, "Justification by Faith According to John Calvin", Westminster Theological Journal, 1990, 296. (Conferir Institutes III, iii, 1).

11 Reid, "Justification by Faith...", 296.

12 Literalmente, Calvino diz: "Eles (os Sofistas) se atrevem a negar que o homem é justificado pela fé porque ela (a doutrina) ocorre muito frequentemente na Escritura. Mas visto que a palavra "somente" não é expressa em lugar algum, eles não permitem que esta adição seja feita" (Institutes, III, 11, 19).

13 Ibid.

14 A palavra "forense" usada em teologia tem a ver com os assuntos que dizem respeito aos procedimentos do sistema judicial, isto é, os termos legais frequentemente encontrados na Escritura. O assunto da justificação envolve uma matéria legal de grande importância na Bíblia, porque trata do julgamento da situação de uma pessoa em razão dos procedimentos de um Substituto, que age em seu lugar.

15 H.J. Schroeder, Canons and Decrees of the Council of Trent, (London: Herder Book Co., 1941), 33.

16 Ibid., 42.

17 Alister McGrath, "The Article by which the Church Stands or Falls", Evangelical Quarterly, 58, 1986, 221.

18 Art. IV, 252 (Book of Concord, 143, 252).

19 Reid, "Justification by faith...", 294 (itálico acrescido).

20 Institutes, III, 11, 2.

21 Reid, "Justification by Faith...", 294.

22 Paul Althaus, The Theology of Martin Luther, 227-228.

23 Calvin, Institutes, III, 11, 23.

24 Ibid., III, 11, 23.

25 A frase fides caritate formata (fé informada pelo amor), é muito comum dentro do catolicismo romano. Esta fé é animada e instruída pelo amor, e é, portanto, ativa na produção de boas obras. Segundo os doutores medievais, fides caritate formata poderia existir somente quando o crente estava num estado de graça, visto que tal fides deve descansar sobre um hábito ou disposição de amor criado sobrenaturalmente na alma pela graça. Esta concepção de fé é negada pelos reformadores, porque implica na necessidade de obras para a justificação, de modo que ela descansa sobre um conceito de graça criada, implantada ou infusa no homem (Richard Muller, Dictionary of Latin and Greek Theological Terms,Baker, 1985), 116.

26 Apology of the Augsburg Confession, art. IV, Justification (Book of Concord, p. 114.48-49).

27 Ibid., 132.181-182.

28 Calvin, Institutes, III, 11,17.

29 Ibid., III, 11,7.

30 Ibid., III, 11, 7.

31 E. W. A. Koehler, "Objective Justification", Concordia Theological Monthly, XVI, April 1945, 222.

32 Theodore Engelder, "Objective Justificação", Concordia Theological Monthly, 4, 1933, 508. Esta crítica de Lenski evidencia, ao menos, que nem todos os luteranos crêem absolutamente na justificação objetiva do modo como crêem especialmente os teólogos ligados ao Sínodo Missouri.

33 McGrath, "The Article by Which the Church Stands or Falls", 222.

34 Ibid., 224.

35 Koehler, "Objective Justification", 223.

36 Ibid., 224.

37 Ibid., 224.

38 Por justificação objetiva entendemos aquela que é feita extra nos (fora de nós), na história do mundo, objetivamente, na cruz do calvário, por Cristo Jesus; por justificação subjetiva, entendemos aquela que é feita intra nós (dentro de nós), na nossa história pessoal, que é apropriada pela fé.

39 Koehler, "Objective Justification", 228.

40 Ibid., 226.

41 Ibid., 227.

42 Ibid., 224.

43 Ibid., 226.

44 Nas Confissões luteranas não há muita precisão quanto ao sentido de algumas expressões teológicas. Às vezes, nelas, a justificação é sinônimo de regeneração em alguns lugares, e em outros não. A Apologia da Confissão de Augsburgo, por exemplo, diz: "Portanto, nós somos justificados pela fé somente, sendo a justificação entendida como tornar um homem injusto num justo, ou efetuando a sua regeneração" (Art.IV, 78 - Book of Concord, p. 117.78, cf. 123.117; 124.125). Por essa razão, vários anos mais tarde, por volta de 1580, na Fórmula de Concórdia, seus signatários reconheceram: "Algumas vezes, como na Apologia, as palavras regeneratio (renascimento) e vivificatio (tornar vivo) são usadas no lugar de justificação, e então elas significaram a mesma coisa, mesmo embora de outro modo, estes termos referem-se à renovação do homem e distinguem-na da justificação pela fé" (Formula of Concord, Epitome, Art. III, 8 - Book of Concord, 474.8).

45 Jacob Preus III, "Project proposal: Biblical Metaphors for Justification", 1 (trabalho não publicado, apresentado em classe no Concordia Theological Seminary, Saint Louis, Mo.).

46 Em alguns círculos luteranos creu-se na absolvição como um terceiro sacramento. E a Apologia da Confissão de Augsburgo afirma que "a fé é concebida e confirmada através da absolvição e através do ouvir do evangelho" (Art. XII - Penitência, Book of Concord 187.42- itálico acrescido) e ainda: "o sacramento foi instituído para mover o coração a crer através do que ele apresenta aos olhos. Porque o Espírito Santo opera através da Palavra e dos sacramentos" (Apology, art. XXIV, 70). Lutero, no Small Catechism, IV, resposta à pergunta 2 diz: "Quais são os benefícios que o batismo concede? Ele efetua perdão de pecados, liberta da morte e do diabo, e concede salvação eterna a todos os que crêem, como a Palavra e a promessa de Deus declaram" (Book of Concord, 348.5-6); ver também Book of Concord 211.5 e 262.70.

47 Francis Pieper, Christian Dogmatics, vol. II (Saint Louis: Concordia Publishing House), 436-37.

48 Ibid., 419.

49 Ibid., 420. A doutrina da justificação é absolutamente central na ordo salutis, embora algumas doutrinas venham logicamente antes, como a eleição por exemplo, e outras depois, como a regeneração, santificação, etc. Essa é a idéia de antecedens e consequens.

50 Apology of the Augsburg Confession, Art.XII, 44 (Book of Concord, 187.44), (itálico acrescentado).

51 Ibid., Art.IV, 125 (Book of Concord, 124.125), (itálico acrescentado).

52 Ibid., 292 (Book of Concord, 152.292), (itálico acrescido).

53 Ibid., 46 (Book of Concord, 113.46), (itálico acrescido).

54 Ibid., 256 (Book of Concord, 144.256), (itálico acrescido).