Amando a Deus e ao Próximo:
João Calvino e o Diaconato em
Genebra
Alderi Souza de Matos
Testemunhamos em nossos dias um renovado interesse na diaconia
cristã e em suas implicações para a igreja e a sociedade.
Diferentes denominações e entidades cristãs cooperativas
tem participado de uma constante discussão e reflexão
teológica acerca do seu significado e relevância para os tempos
atuais. Cresce entre muitos cristãos a consciência de que a
diaconia é crucial para a fé, a vida e a missão da
igreja.
Muitas vezes um tema negligenciado e mal-compreendido no pensamento e
na prática cristã, o serviço cristão cada vez mais
tem sido entendido como "inseparável da essência da igreja...
‘a liturgia após a liturgia,’ a continuação no
mundo da vida de adoração da comunidade."1 Por esta
razão, "a diaconia deve ser legitimada não somente como uma
função cristã, mas como o modo de ser da
igreja."2
No Brasil, infelizmente, muitas igrejas evangélicas ainda
não consideram este tema como prioritário em sua agenda. As
próprias igrejas presbiterianas, apesar de possuírem uma rica
herança nessa área, não têm na prática
revelado grande interesse na dimensão diaconal e social da igreja. Uma
boa ilustração dessa atitude pode ser vista no empobrecimento do
ofício do diaconato em nossas comunidades. Em muitas de nossas igrejas,
os diáconos limitam-se a atividades tais como auxiliar a
manutenção da ordem durante os cultos e recolher as
contribuições dos fiéis. Todavia, por ser um conceito
central nas Escrituras, na ética e na teologia, a diaconia cristã
deve ter alta prioridade na vida e no testemunho da igreja.
O objetivo deste trabalho é considerar o ensino e a
prática de João Calvino com respeito ao diaconato e à
ação social, e demonstrar como ele, à semelhança dos
outros reformadores, "redescobriu a função de serviço
social desempenhada pelo diácono na igreja primitiva."3
Após uma breve abordagem da vida de Calvino até o início do
seu ministério em Genebra, destacaremos alguns aspectos relevantes do seu
pensamento social, bem como as suas idéias sobre o diaconato. Será
dada uma atenção especial às diferentes
interpretações propostas quanto à fonte do conceito de
Calvino acerca do duplo diaconato. Além disso, discutiremos dois
notáveis exemplos de como as idéias do reformador encontraram
expressão prática na cidade de Genebra.
I. Calvino: De Noyon a Genebra4
Jean Calvin ou João Calvino (1509-1564) nasceu em Noyon, uma pequena
cidade situada a cerca de 100 km a nordeste de Paris. Seu pai, Gérard
Cauvin, era um assistente administrativo do bispo local. Sua mãe, Jeanne,
morreu quando Jean, seu quarto filho, tinha apenas cinco ou seis anos de idade.
Uma autora argumenta que esta triste experiência certamente contribuiu
para o sentimento de ansiedade e inquietação pessoal
característico de Calvino.5
Calvino viveu por vários anos com a aristocrática
família Montmor, à qual ele sempre se mostraria profundamente
agradecido. Ele dedicou o seu primeiro livro, em 1532, a um membro dessa
família, afirmando: "Eu lhe devo tudo o que sou e tenho... Quando menino,
fui criado em sua casa e iniciei os meus estudos com você. Assim sendo,
devo à sua nobre família o meu primeiro treinamento na vida e nas
letras."6
Graças a interferência de seu pai, com a idade de doze
anos Calvino recebeu um benefício eclesiástico do bispo de Noyon.
A posse de um benefício exigia o ingresso em uma ordem menor –
João tornou-se sacristão e recebeu a tonsura – e o
exercício de tarefas eclesiásticas, no seu caso o cuidado de um
dos altares da catedral. A renda desse benefício era uma espécie
de bolsa de estudos através da qual o jovem Calvino, já
então um estudante precoce, pode continuar os seus estudos.
Em agosto de 1523 o jovem foi para Paris a fim de iniciar os seus
estudos formais. Inicialmente ele matriculou-se no Collège de la Marche,
onde aperfeiçoou o seu conhecimento do latim sob o grande mestre Mathurin
Cordier, que anos depois haveria de lecionar na Academia de Genebra. A seguir,
Calvino, dedicou-se aos estudos teológicos no Collège de Montaigu,
famoso por sua rígida disciplina e por sua péssima comida. Sendo
um estudante compulsivo, Calvino saiu-se muito bem nos seus estudos. Ao mesmo
tempo, sob influências humanistas, ele também adquiriu uma forte
antipatia pelo método escolástico de se fazer teologia.
Em 1528, por insistência de seu pai, Calvino mudou-se para
Orléans a fim de estudar Direito. Gérard Cauvin percebeu que o seu
inteligente filho provavelmente se daria melhor como advogado do que como
religioso. Mais tarde Calvino deu prosseguimento aos seus estudos
jurídicos em Bourges, onde também estudou grego com o erudito
evangélico alemão Melchior Wolmar. Timothy George observa que o
treinamento jurídico de Calvino exerceu duas influências
significativas sobre o seu futuro trabalho: proporcionou-lhe um sólido
fundamento em questões práticas que lhe foi muito útil no
seu esforço para remodelar as instituições de Genebra, e
abriu os seus olhos para a antigüidade clássica e o estudo dos
textos antigos.7
Quando seu pai morreu, em 1531, Calvino sentiu-se livre para
abandonar o estudo do Direito em favor da sua verdadeira paixão, a
literatura clássica. Ele voltou para Paris e no ano seguinte publicou o
seu primeiro livro, uma edição crítica do tratado de
Sêneca Sobre a Clemência, juntamente com um extenso
comentário.
A sua transição de humanista a reformador foi marcada por
algo que ele certa vez descreveu como uma "conversão repentina"
(conversio subita). Isso aconteceu por volta de 1533-1534 e foi precedido
de um período de lutas, inquietação e dúvidas. Seus
primeiros biógrafos Beza e Colladon atribuem um importante papel na sua
conversão ao seu primo Robert Olivétan, para cujo Novo Testamento
francês Calvino escreveu um prefácio sob o título: "A todos
os que amam Jesus Cristo e o seu Evangelho" (1535). Esta foi a sua primeira obra
publicada como protestante. Sua conversão foi atestada publicamente
quando ele retornou a Noyon em maio de 1534 a fim de renunciar ao
benefício de que tinha usufruído por treze anos.8
No Dia de Todos os Santos em 1533, Nicholas Cop, um amigo de Calvino
que acabara de ser eleito reitor da Universidade de Paris, fez um discurso de
abertura do ano letivo que chocou a audiência por causa de suas
idéias protestantes. Acusado de ser um propagandista luterano, Cop teve
de fugir para salvar a vida. Calvino, sob suspeita de ser o co-autor do
discurso, teve seus papéis apreendidos e tornou-se persona non grata em
Paris. Ele encontrou refúgio na casa de um amigo em Angoulême, onde
começou a escrever as suas Institutas da Religião
Cristã.
Um ano mais tarde, quando irrompeu a perseguição contra
os protestantes franceses, Calvino buscou proteção na cidade
reformada de Basiléia, a terra natal de Cop, que ali já se
encontrava.9 Em março de 1536 veio a lume a primeira
edição das Institutas, um livro destinado a tornar-se "o
principal documento da teologia protestante no século
dezesseis."10 Um bestseller quase da noite para o dia, o livro foi
distribuído rapidamente por toda a Europa. Houve duas razões
principais para tamanho sucesso: a sua carta introdutória dirigida ao rei
Francisco I constituiu-se numa poderosa defesa dos evangélicos franceses
perseguidos; todavia, o seu propósito principal foi catequético
– servir como um manual para o ensino e a reforma das igrejas. A sua
edição definitiva, vastamente ampliada, seria publicada somente em
1559.
No verão de 1536 Calvino estava viajando com seu irmão
e meio-irmã de Paris a Estrasburgo, onde esperava instalar-se para uma
vida longamente esperada de tranqüilidade e estudo.11 Todavia,
os exércitos de Francisco I e do imperador Carlos V estavam empenhados em
manobras militares numa área onde os viajantes deveriam passar. Assim
sendo, estes tiveram de fazer um desvio pelo sul, através da cidade de
Genebra, na fronteira entre a França, Savóia e a
Suíça. Por ironia, Calvino não teve uma boa
impressão da cidade e planejou permanecer ali apenas uma noite.
O ardoroso Guillaume Farel (1489-1565) tinha levado a cidade a
abraçar a Reforma somente dois meses antes, através do voto
unânime de uma assembléia de cidadãos realizada em 25 de
maio de 1536. A obra da Reforma em Genebra estava intimamente ligada à
sua emancipação política da Casa de Savóia, de
convicção católica. Nos anos de 1526 e 1527 a cidade tinha
sido atraída para a órbita da Suíça e em 1533 Berna
promovera ativamente a causa da Reforma Protestante em Genebra.
Sabendo que Calvino estava na cidade, Farel irrompeu em seu quarto de
hotel e lhe implorou que permanecesse em Genebra e o ajudasse a consolidar a
Reforma recentemente abraçada. Calvino ficou chocado com a idéia,
pois sentiu-se despreparado para a tarefa. Ele poderia fazer mais pela igreja
através de seus tranqüilos estudos e de seus escritos. Nesse
momento, Farel trovejou a ira de Deus sobre Calvino com palavras que este jamais
iria esquecer – Deus amaldiçoaria o seu lazer e os seus estudos se
em tão grave emergência ele se retirasse, recusando-se a ajudar.
George observa que "a partir daquele momento, o destino de Calvino ficou ligado
ao de Genebra."12
A primeira estadia de Calvino em Genebra durou menos de dois anos. O
seu primeiro catecismo e confissão de fé foram adotados, mas ele e
Farel entraram em conflito com as autoridades civis acerca de questões
eclesiásticas: disciplina, adesão à confissão de
fé e práticas litúrgicas. Em abril de 1538 eles foram
expulsos da cidade. Depois de outra breve estadia em Basiléia, Calvino
transferiu-se para Estrasburgo, seu destino original dois anos antes. Naquela
cidade ele haveria de passar os três anos mais felizes da sua vida
(1538-1541); provavelmente eles também foram os anos mais decisivos da
sua formação como reformador e teólogo.
Timothy George destaca cinco dimensões da vida de Calvino
durante esse período crucial.13 Primeiramente, ele pastoreou
uma pequena congregação de refugiados franceses. Em segundo lugar,
ele foi professor na escola de João Sturm, que serviria de modelo para a
sua futura Academia de Genebra. Calvino também escreveu extensamente: uma
edição inteiramente revista das Institutas (publicada em
agosto de 1539), a sua primeira tradução francesa (1541), o
Comentário de Romanos, e três escritos mais breves,
porém brilhantes – a Resposta a Sadoleto, "provavelmente a
melhor apologia da fé reformada escrita no século
dezesseis,"14 um livro de liturgia, e um tratado sobre a Santa Ceia.
Calvino ainda atuou como diplomata eclesiástico, viajando para muitas
cidades como conselheiro de delegações protestantes em
conferências interconfessionais que procuravam restaurar a unidade entre
protestantes e católicos. Finalmente, ele contraiu núpcias com uma
de suas próprias paroquianas, Idelette de Bure, em uma cerimônia
oficiada por seu amigo Farel.
Em 1541 os genebrinos suplicaram que Calvino retornasse à sua
igreja. Persuadido por Martin Bucer (1491-1551), o grande líder da
Reforma em Estrasburgo, Calvino retornou a Genebra no dia 13 de setembro, viu-se
nomeado pastor da antiga catedral de Saint Pierre e foi "contemplado com um
salário razoável, uma casa ampla, e porções anuais
de 12 medidas de trigo e 250 galões de vinho."15
O restante da carreira de Calvino como reformador foi simbolizado
pelos dois primeiros atos oficiais que ele empreendeu após o seu retorno.
No domingo seguinte ele voltou ao seu púlpito e simplesmente prosseguiu a
exposição das Escrituras no ponto em que a havia interrompido
três anos antes. Além disso, ele apresentou ao conselho da cidade
um plano detalhado para a ordem e o governo da igreja. As suas
Ordenanças Eclesiásticas requeriam a
instalação dos quatro ofícios de pastores, doutores,
presbíteros e diáconos, os quais correspondiam às
áreas de doutrina, educação, disciplina e
ação social. O conselho aprovou o plano de Calvino, mas este
passaria o restante da sua carreira tentando, nunca com pleno êxito, obter
o seu cumprimento.
II. O Pensamento Social de Calvino16
O conceito de Calvino acerca de um quádruplo
ministério, mencionado acima, revela que a assistência social
estava entre as suas principais preocupações. Sua primeira e mais
importante contribuição nessa área foi teórica
– suas idéias e princípios teológicos concernentes
à responsabilidade da igreja cristã para com os desafortunados. O
pensamento social de Calvino sobre riqueza e pobreza, bem-estar social e
questões correlatas pode ser encontrado em diversas fontes,
principalmente nas Institutas, nos comentários bíblicos e
em sermões.
Vários autores observam que Calvino jamais estabeleceu uma
conexão entre riqueza ou pobreza e o favor ou desfavor de Deus em
relação a indivíduos. W. Fred Graham argumenta que
Calvino nunca viu a pobreza e o infortúnio como evidências do
desfavor de Deus para com o indivíduo afligido, nem considerava a
prosperidade como um sinal da bênção de Deus por causa de
méritos pessoais ou como evidência da eleição para a
salvação.17
Antes, o reformador entendeu a riqueza e a pobreza como expressões
do favor ou do julgamento de Deus sobre toda a comunidade, que então
deveria redistribuir os seus recursos com vistas ao bem-comum. Calvino pergunta:
"Por que é então que Deus permite a existência da pobreza
aqui embaixo, a não ser porque ele deseja dar-nos ocasião para
praticarmos o bem?"18
Em muitas oportunidades, Calvino condenou severamente a
ganância e a insensibilidade dos ricos, porque ele estava preocupado com
que as dádivas de Deus fossem usadas para o benefício de toda a
comunidade do povo de Deus. Graham argumenta que não foi ao ascetismo que
Calvino conclamou os ricos de Genebra, mas à regra do amor: "De fato, se
existe um tema central no pensamento social e econômico de Calvino,
é que a riqueza vem de Deus a fim de ser utilizada para auxiliar os
nossos irmãos."19 A solidariedade da comunidade humana
é tal que torna-se inexcusável alguns terem abundância e
outros passarem necessidade.20 Ronald Wallace observa: "[Calvino]
insistia que, como uma lei da vida, onde havia riqueza abundante também
deveria haver doações generosas dos ricos aos
pobres."21
Um dos textos que Calvino utiliza mais freqüentemente nos seus
escritos e ensinos é o apelo de Isaías ao homem rico de Israel:
"... e não te escondas do teu semelhante" (58:7), que ele interpreta como
uma referência ao "teu pobre."22 Em outro sermão, ele
pondera: "Deus mistura os ricos e os pobres para que eles possam encontrar-se e
ter comunhão uns com os outros, de modo que os pobres recebam e os ricos
repartam."23
Os pobres são irmãos e devem ser tratados como tais.
Graham pondera: "Não existe uma beneficência fria no plano
calvinista; a beneficência deve ser praticada com
compaixão."24 A contribuição não deve ser
uma expressão de legalismo, mas de espontaneidade e
liberalidade.25
Graham acentua a ética altruísta articulada por Calvino
no terreno social e econômico: "A solidariedade humana é tal que
qualquer coisa que contribua para o empobrecimento de uma parte da sociedade
é, ipso facto, maléfica."26 Quando Calvino pregava
sobre a proibição vetotestamentária de se privar um credor
pobre da sua mó superior, como garantia de uma dívida, ele falava
com implicações que hoje podem ser entendidas no sentido de que
nenhuma sociedade jamais deve privar qualquer pessoa da oportunidade de
trabalhar para ganhar o seu sustento.27
O reformador ficava particularmente exasperado com aqueles que
praticavam o monopólio e a especulação envolvendo
alimentos.28 Assim sendo, ele defendeu alguma
intervenção por parte do governo para a proteção do
bem comum, a fim que "os homens respirem, comam, bebam e mantenham-se
aquecidos."29 Como William C. Innes observou, Calvino
insistiu
que a caridade cristã e uma preocupação ética
pelo bem da comunidade fossem os fatores determinantes em todas as
decisões econômicas. A sua influência e ensinos
doutrinários incentivaram e promoveram o interesse já existente em
Genebra por uma assistência ampla e respeitosa aos pobres.30
III. O Diaconato
Provavelmente a principal contribuição teológica
de João Calvino ao entendimento reformado do bem-estar social é
aquela encontrada nas suas idéias acerca do diaconato.31
Calvino tinha o ofício de diácono em alta
consideração: os diáconos eram oficiais públicos da
igreja responsáveis pela assistência aos pobres. Ele insistiu que
os mesmos fossem versados na fé cristã, uma vez que, no decurso do
seu ministério, eles muitas vezes teriam de oferecer conselhos e conforto
espiritual. Na realidade, "os diáconos na Genebra de Calvino devem ter
sido peritos no que hoje denominamos serviço social, bem como em
assistência pastoral."32
Existem duas fontes principais para os ensinos de Calvino acerca do
diaconato. Primeiramente, as Institutas, especialmente a partir da
segunda edição (a edição definitiva foi publicada em
1559 e a sua tradução francesa no ano seguinte).33 Em
segundo lugar, as Ordenanças Eclesiásticas que ele redigiu
para Genebra em 1541, sua "primeira contribuição concreta para a
reforma da assistência social."34 Uma fonte adicional
são os seus sermões sobre I Timóteo, publicados em
1561.
As Institutas estão distribuídas em quatro
livros que seguem em geral o modelo do Credo dos Apóstolos. O primeiro
livro trata do conhecimento de Deus como Criador e inclui as doutrinas da
Escritura, trindade, criação e providência; o segundo livro
discute o conhecimento de Deus como Redentor e inclui a queda, o pecado, a lei,
o Velho e o Novo Testamento e Cristo, o mediador – sua pessoa e obra. O
terceiro livro aborda a maneira pela qual se recebe a graça de Cristo,
seus benefícios e efeitos; inclui a fé e a
regeneração, o arrependimento, a vida cristã, a
justificação, a predestinação e a
ressurreição final. Por fim, o quarto livro fala dos meios
externos pelos quais Deus convida as pessoas à comunidade cristã.
Aqui Calvino trata da igreja, dos sacramentos e do governo civil. É neste
último livro que encontramos as idéias de Calvino sobre o
diaconato.
Robert M. Kingdon pondera que Calvino reagiu com firmeza contra o
ensino católico romano tradicional de que os diáconos deviam ser
assistentes dos sacerdotes, auxiliando-os em várias responsabilidades
litúrgicas e administrativas, enquanto geralmente aguardavam a
promoção ao sacerdócio.35 Em vez disso, os
diáconos deviam exercer um ministério específico de
serviço aos pobres. Calvino argumentou que Deus quis que a igreja
instituísse o ofício de diácono para cumprir com a sua
obrigação de assistir os necessitados. Portanto, grande parte do
seu pensamento sobre a assistência social está relacionado com o
seu conceito acerca do diaconato.36
Além disso, Calvino insistiu que deveria haver dois tipos de
diáconos: administradores, que recolhiam e geriam os fundos destinados ao
socorro dos pobres, e assistentes sociais, inclusive viúvas, que
utilizavam esses fundos na assistência direta aos carentes. Este conceito
de um duplo diaconato é particularmente característico de Calvino,
a versão definitiva deste ensino sendo encontrada na edição
de 1559 das Institutas (4:3:9).37 O reformador
argumenta:
O cuidado dos pobres foi confiado aos diáconos. Todavia, dois tipos
são mencionados na Carta aos Romanos: "Aquele que contribui,
faça-o com simplicidade;... o que exerce misericórida, com
alegria" [Rom 12.8; cf. Vulgata]. Como é certo que Paulo está
falando do ofício público da igreja, deve ter havido dois graus
distintos. A menos que eu esteja equivocado em meu julgamento, na primeira
cláusula ele designa os diáconos que distribuem as esmolas, mas a
segunda refere-se àqueles que haviam se devotado ao cuidado dos pobres e
enfermos. Deste tipo eram as viúvas que Paulo menciona a Timóteo
[1 Tim 5:9-10]. As mulheres não podiam exercer qualquer outro
ofício público, senão o de se devotarem ao cuidado dos
pobres. Se aceitarmos isto (como deve ser aceito), haverá dois tipos de
diáconos: um para servir a igreja administrando as questões
referentes aos pobres, e outro para cuidar dos pobres eles mesmos. Assim, muito
embora o termo δ ι α κ ο ν ι α em si
mesmo tenha uma implicação mais ampla, a Escritura designa
especificamente como diáconos aqueles a quem a igreja indicou para
distribuirem as esmolas e cuidarem dos pobres, e também servirem como
mordomos da caixa comum dos pobres.
IV. O Duplo Diaconato: Fonte do Conceito
A. Robert M. Kingdon:
Kingdon indaga onde originou-se esta doutrina clara e distintiva de
um duplo diaconato. Ele propõe uma explicação
institucional: Calvino encontrou um duplo diaconato já em funcionamento
quando ele chegou em Genebra pela primeira vez. Esse estudioso acredita que a
observação do que acontecia no "Hospital Geral" influenciou o
pensamento de Calvino neste particular.38
Como vimos anteriormente, quando Calvino chegou a Genebra em 1536 a cidade
já havia abraçado a Reforma. Com a expulsão ou
demissão dos clérigos que ministravam às necessidades
religiosas, educacionais e sociais da cidade, havia surgido um vácuo.
Novas instituições estavam sendo criadas para preencher esse
vácuo.39
Uma dessas novas instituições foi criada para socorrer
os pobres e recebeu o nome de "Hospital Geral." Ele veio a substituir uma rede
de sete hospitais e uma fundação pública chamada Pyssis
Omnium Animarum Purgatorii ou "Caixa para todas as almas no
purgatório." Todas estas instituições tinham sido fundadas
entre o final do século treze e meados do século quinze. Os
hospitais eram abrigos para órfãos, aleijados, idosos e outras
pessoas que não podiam cuidar de si próprias. A Caixa recolhia
fundos para ajudar os hospitais e prestava serviços complementares. Todas
estas instituições tinham um propósito secundário
– incentivar as orações pelos mortos que supostamente
estavam no "purgatório" – o que tornou inevitável o seu
colapso com o advento da Reforma.40
Para substituí-las, o governo municipal criou o Hospital Geral
em 1535. Ele estava localizado no centro da antiga Genebra, no que fora o
convento das Irmãs de Santa Clara, sendo sustentado por recursos
provenientes de diversas fontes. O que é mais importante, no que diz
respeito aos nossos propósitos, é que a
administração do hospital estava entregue a dois tipos de
oficiais: uma junta de procuradores e um hospitaleiro.41
Esse Hospital Geral, com seus procuradores e hospitaleiro, foi criado
um ano antes de Calvino chegar em Genebra. Assim sendo, ao chegar ele encontrou
as obrigações caritativas da comunidade sendo desempenhadas por
dois tipos bastante diferentes de oficiais: um grupo de procuradores que
recolhiam esmolas e administravam as questões referentes aos pobres e um
hospitaleiro e seus auxiliares que efetivamente cuidavam dos pobres e dos
enfermos.42
Estes fatos levam Kingdon a concluir que essa
instituição influenciou o pensamento de Calvino acerca do
diaconato. Ele observa que, nas suas discussões a respeito da forma
adequada para o diaconato, Calvino às vezes utilizou os termos
"procuradores" e "hospitaleiros" para designar os dois tipos de diáconos
que ele cria serem exigidos pelas Escrituras.43
Neste ponto nos voltamos para a outra fonte das idéias de
Calvino acerca do diaconato: as Ordenanças Eclesiásticas de
1541, que ele escreveu como uma constituição para a Igreja
Reformada de Genebra, por ocasião do seu retorno definitivo para aquela
cidade. Esse código inicia a sua seção sobre "a quarta
ordem do governo eclesiástico, a saber, os diáconos," com uma
declaração do conceito de um duplo diaconato tão clara e
distintiva quanto aquela das Institutas. Em seguida, o documento passa a
fornecer os títulos de "procurador" e "hospitaleiro" para os dois tipos
de diáconos e descreve com algum detalhe os deveres de cada um.
Kingdon não se surpreende muito em ver que as
Ordenanças utilizam termos genebrinos para os dois tipos de
diáconos. Afinal, o propósito das mesmas era fornecer uma
estrutura para a igreja reformada local.44 O que o deixa surpreso
é encontrar os mesmos termos em alguns dos comentários
bíblicos de Calvino. Nos seus sermões sobre I Timóteo,
epístola que no entender de Calvino continha textos comprobatórios
essenciais para as suas noções acerca do diaconato, ele
também define os dois tipos de diáconos ordenados pela Escritura
como "hospitaleiros" e "procuradores" dos pobres.
B. Elsie McKee:
Elsie McKee prefere uma explicação teológica
para a origem das idéias peculiares de Calvino a respeito do
diaconato.45 Ela vê Calvino argumentando que a
obrigação de praticar a caridade é a segunda parte do
serviço que os regenerados devem a Deus, a primeira parte sendo as obras
de devoção prescritas pela primeira tábua da
lei.46 A relação entre as duas tábuas da lei, o
culto devido a Deus (pietas) e o amor devido ao próximo
(caritas), esclarece a relação que existe entre a
benevolência e a adoração. "A primeira tábua sempre
tem precedência sobre a segunda, o culto sobre a benevolência.
Todavia, a evidência mais clara da fé é o amor, não a
liturgia."47
Uma vez que o pastor pode ser visto como o ministro do culto da
igreja, o líder dos officia pietatis que expressam o primeiro
mandamento do amor a Deus, assim o diácono é o ministro da
benevolência, o principal líder dos officia caritatis que
atuam por causa do amor ao semelhante.
Como as obras de caridade são dirigidas por oficiais que
possuem o título de diáconos e a natureza desse ofício
é descrita no Novo Testamento, McKee volta-se para a minuciosa
história exegética de alguns dos textos-prova de Calvino. Os mais
importantes deles para a sua interpretação geral do diaconato
são Atos 6.1-6 e 1 Timóteo 3.8-13, e o mais relevante para a sua
teoria específica de um duplo diaconato é Romanos 12:8.
Atos 6.1-6 é a perícope tradicionalmente vista como a
principal fonte de informações sobre a instituição
original do ofício diaconal. Calvino argumentou fortemente que essa
passagem coloca sobre a igreja não somente uma obrigação
institucional de assistir os pobres, mas também o requisito de que esta
obrigação seja cumprida através da criação de
uma ordem eclesiástica – os diáconos. O diaconato reformado
é um ofício eclesiástico leigo encarregado da
benevolência como uma função necessária da igreja.
"Esse ofício permanente é o representante da Igreja como
Igreja na responsabilidade cristã comum em
relação aos pobres e afligidos."48
Além disso, existem algumas passagens do Novo Testamento que
efetivamente utilizam a palavra "diácono" e arrolam as
qualificações a ser esperadas da pessoa que ocupa tal
ofício. A mais extensa dessas passagens é 1 Timóteo 3.8-13.
Calvino relaciona esta perícope com Atos 6.1-6 (como a maioria dos
intérpretes protestantes) e insiste que o diaconato é um
ofício eclesiástico de instituição
apostólica, que a sua função é servir aos pobres e
não ao bispo, e que se trata de um ofício tanto permanente quanto
necessário para a verdadeira igreja. Calvino também dá
especial atenção às referências paulinas que
relacionam as mulheres, especialmente as viúvas, com a diaconia (Rom
16.1-2; l Tim 5.3-10). Ele usa de maneira especialmente cuidadosa a
descrição das viúvas em l Timóteo 5 e, em
particular, a sugestão de que a igreja deve utilizar somente
viúvas idosas com mais de sessenta anos (vv. 9-10).
O conceito de Calvino acerca de um duplo diaconato repousa sobre a
sua interpretação de Romanos 12.8. Ele acredita que esta passagem
(vv. 6-8) descreve os diferentes ofícios que Deus quis ver
instituídos na igreja, e que os trechos que descrevem o diaconato
são a segunda e a quarta cláusulas do v. 8 – aquele que
contribui com liberalidade é um diácono do tipo "procurador" e
aquele que exerce misericórdia com alegria é um diácono do
tipo "hospitaleiro."
McKee conclui que a doutrina de Calvino sobre o diaconato, como quase
todas as suas doutrinas, procede diretamente da sua leitura esclarecida das
Escrituras. Ao mesmo tempo, ela admite que considerações
práticas evidentemente também influenciaram a eclesiologia do
reformador. "Na tradição reformada, a pluralidade de dons e
necessidades dentro da igreja ocasionou a formulação da teoria de
um único ministério em diferentes modalidades."49 De
acordo com os princípios reformados, existem dois tipos de
diáconos por que as Escrituras e a experiência indicam que existem
duas tarefas primordiais: a administração, e o cuidado pessoal dos
necessitados.50
Kingdon reconhece a força dos argumentos de McKee mas
não fica plenamente convencido.51 Ele argumenta que houve uma
evolução significativa no conceito de Calvino sobre o diaconato
entre 1536 e 1539 (a primeira e a segunda edições das
Institutas) e especificamente que Calvino formulou naqueles anos o seu
conceito de um duplo diaconato. O que aconteceu entre 1536 e 1539 para dar-lhe
um novo conceito sobre o diaconato? A resposta de Kingdon é a mesma de
antes – ele acredita que por dois anos Calvino testemunhou o funcionamento
bem-sucedido de um duplo diaconato na cidade de Genebra. Ele então foi
às Escrituras em busca de um apoio para essa instituição,
encontrando-o em Romanos 12.8.
Kingdon admite a possibilidade de outras
explicações.52 Calvino pode ter derivado as suas
idéias de outros autores protestantes como Lefèvre
d’Etaples, Ecolampádio e Martin Bucer, ou de outros modelos
institucionais que ele pode ter conhecido em Basiléia e Estrasburgo.
Todavia, o fato permanece de que obviamente para Calvino os argumentos mais
persuasivos acerca do diaconato eram aqueles baseados em apelos
explícitos e precisos às Escrituras.
C. William Innes:
William Innes tem uma contribuição interessante nesta
questão. Ele declara: "Existem evidências indicando que as
idéias próprias [de Calvino] sobre assistência social foram
profundamente influenciadas pelo que ele viu implementado em
Genebra."53 Ao mesmo tempo, ele chama a atenção para o
fato de que os anos passados em Estrasburgo exerceram um influência
duradoura em muitos aspectos da teologia de Calvino: "A influência de
Bucer sobre o pensamento de Calvino não pode ser exagerada."54
Calvino não somente professava uma profunda admiração por
Bucer, mas concordou com esse reformador em todas as questões
teológicas importantes.
Conforme expressa nos seus escritos, a evolução do
pensamento de Calvino sobre o diaconato faz Innes chegar a duas
conclusões:55 antes de tudo, a dupla função para
os diáconos defendida por Calvino não resultou da sua
experiência em Genebra, mas da concepção de
ministério do seu mentor Martin Bucer, conforme exposto no manual de
assistência pastoral Von der wahren Seelsorge. Assim sendo, tanto
no seu comentário sobre Romanos 12.8 (1540) como na edição
de 1541 das Institutas (4:3:9), Calvino inequivocamente defende dois
ofícios distintos na assistência aos pobres: o primeiro para suprir
as suas necessidades materiais e o segundo para visitá-los e ministrar a
eles.
Em segundo lugar, após o seu retorno a Genebra, Calvino
tornou-se mais flexível e prático. Ele mostrou-se disposto a mudar
de opinião quanto à natureza exata do diaconato, uma
questão relativamente menor, a fim de evitar dificuldades
desnecessárias. Conseqüentemente, nas Ordenanças
Eclesiásticas de 1541 e nos seus sermões, Calvino adaptou o
diaconato de Genebra à situação existente no Hospital
Geral. Os sermões sobre 1 Timóteo, pregados no outono e inverno de
1554-1555, definem os diáconos exclusivamente como os dois tipos de
oficiais do hospital de Genebra. Calvino fala textualmente nos
"...diáconos, ou seja, os ‘hospitaleiros’ e os
‘procuradores’ dos pobres..."56
Dessa maneira, McKee pondera que "é correto e natural indagar
como a reforma do bem-estar social no século dezesseis (o contexto
histórico), bem como a doutrina da igreja (o contexto teológico),
contribuíram para moldar o ensino reformado sobre o
diaconato."57
V. A Assistência Social na Genebra de Calvino
A. O Hospital Geral:
Como Kingdon pondera acertadamente, o fato de o Hospital Geral
já existir quando Calvino chegou a Genebra não significa que ele
não fez nenhuma contribuição à reforma da
assistência social naquela cidade.58 Ao contrário, a
contribuição de Calvino foi de vital importância para o
êxito do programa assistencial porque ele sacramentou essa reforma e
persuadiu os genebrinos de que as suas novas instituções eram
criações santas que estavam em conformidade com a Palavra de
Deus.59 Assim, a sua contribuição não foi a de
um criador, mas a de um consolidador, dando àquelas
instituições vitalidade e estabilidade.
Como vimos anteriormente, a primeira contribuição
tangível de Calvino à reforma da assistência social foram as
Ordenanças Eclesiásticas que ele redigiu para Genebra em
1541. Ele obteve o direito de redigir este conjunto de leis – com efeito
uma constituição para a Igreja Reformada de Genebra –como
parte da negociação que o trouxe de volta à cidade. Nas
Ordenanças Calvino combinou os seus interesses religiosos com os
seus talentos jurídicos.
As Ordenanças dividiram o governo da igreja entre
quatro ofícios ministeriais: os pastores, que proclamam a Palavra de
Deus; os doutores ou mestres, que estudam e ensinam as Escrituras; os
presbíteros, que mantêm a disciplina cristã; e os
diáconos, que cuidam dos pobres. O conjunto dos pastores e doutores
constituía a Companhia dos Pastores de Genebra, também conhecida
como a Venerável Companhia. Os presbíteros e os pastores formavam
o Consistório, um tipo de tribunal eclesiástico, a
instituição mais controvertida da reforma em Genebra.60
Quanto aos diáconos, as Ordenanças declaram que
"sempre houve dois tipos de diáconos na igreja primitiva. Alguns foram
comissionados para receber, distribuir e preservar a propriedade dos pobres: as
esmolas diárias bem como haveres, rendas e pensões. Outros deviam
cuidar dos enfermos, pensar as suas feridas, e dispensar as rações
alimentares dos pobres." Os primeiros correspondiam aos procuradores do
hospital; os outros, ao hospitaleiro.
A junta de procuradores do hospital era uma das comissões que
governavam a cidade. Os seus membros eram eleitos a cada ano a partir de uma
lista preparada pelo Pequeno Conselho, o órgão dirigente do
governo republicano que agora controlava Genebra. Um procurador do hospital
podia ser reeleito para vários mandatos. Geralmente ele era um
comerciante próspero ou um profissional. Mais tarde tornou-se habitual
que o Conselho pedisse sugestões ao pastor da cidade ao elaborar a lista
anual de procuradores. Estes reuniam-se uma vez por semana, geralmente bem cedo
aos domingos, para analisar o funcionamento do Hospital Geral e tomar
decisões quanto a subsídios de assistência a famílias
carentes específicas.
O hospitaleiro era responsável pela
administração diária do Hospital Geral.61 Ele
morava no próprio hospital com a sua esposa e supervisionava um programa
de assistência aos muitos necessitados que ali também residiam, a
maioria órfãos e menores abandonados e alguns deficientes
físicos ou decrépitos. O hospitaleiro organizava equipes de
cozinheiros que faziam pão e vinho para os internos. Ele era auxiliado
por um professor para as crianças, um barbeiro-cirurgião e um
farmacêutico que ofereciam assistência médica, e serventes
encarregados de tarefas mais simples. A equipe devia produzir uma boa quantidade
extra de pão que era distribuído uma vez por semana a
famílias pobres que necessitavam de auxílio temporário. Em
sua reunião semanal os procuradores preparavam uma lista dessas
famílias. Geralmente o hospitaleiro era um comerciante, muitas vezes um
mercador idoso que desejava uma ocupação mais
sedentária.
Em Genebra, os procuradores e o hospitaleiro do Hospital Geral, que
correspondiam aos dois tipos de diáconos, ficavam sob a supervisão
dos pastores e presbíteros, representando a igreja, e um dos quatro
síndicos (os magistrados governantes), representando o governo secular.
Vários desses oficiais supervisores deviam visitar e inspecionar o
Hospital Geral a cada três meses.
As Ordenanças Eclesiásticas também deram
aos pastores um papel importante na escolha dos diáconos. O governo da
cidade considerava tanto a junta de procuradores do hospital quanto o
consistório de presbíteros como comissões permanentes da
municipalidade, sujeitas a eleição anual, aquela estando
encarregada de assistir os pobres e este de manter a moralidade.
As Ordenanças de Calvino determinavam que o Pequeno
Conselho devia consultar os pastores ao elaborar as suas listas anuais de
presbíteros e diáconos. Elas também sugeriam que os
mandatos desses cargos fôssem muitas vezes prorrogados, contanto que os
oficiais estivessem fazendo um bom trabalho. Essa era uma fonte de estabilidade
e continuidade para o trabalho de ambas as instituições.
Finalmente, as Ordenanças sugeriam os tipos de homens que deviam
ser considerados para esses cargos de acordo com o modelo encontrado em 1
Timóteo 3 e Tito 1.
Parece que por muito anos o governo da cidade deixou de consultar os
pastores na seleção dos diáconos.62 A consulta
tornou-se efetiva somente em 1562, quando a Companhia dos Pastores queixou-se de
que as Ordenanças não estavam sendo observadas nesse
particular. Todavia, existem evidências sugerindo que durante o
ministério de Calvino a sua influência na escolha dos
diáconos foi importante, mesmo quando indireta. Com o passar dos anos, os
homens escolhidos tendiam a estar cada vez mais próximos dele e do grupo
que apoiava as suas linhas de ação.
Innes observa que os procuradores eram partidários devotados
de Calvino.63 Por esta e outras razões, ele raramente
precisava intervir no funcionamento e administração do sistema do
hospital, particularmente nos anos posteriores da sua vida. No início da
década de 1560 surgiu uma espécie de ministério leigo
dedicado constituído por homens que participavam tanto do
Consistório quanto da junta do hospital, e eram leais aos
pastores.
B. O Fundo Francês:
O Hospital Geral foi concebido tão somente para aliviar a
pobreza entre os genebrinos. As leis locais pouco ou nada diziam a respeito dos
estrangeiros. Essa situação poderia tornar-se uma fonte de
sérias dificuldades por causa do enorme influxo de refugiados religiosos
na cidade. Muitos protestantes de outros países, principalmente da
França, mas também da Itália, Inglaterra e Espanha, estavam
indo para Genebra, forçados pela perseguição religiosa e
atraídos pela pregação de Calvino e pela comunidade modelo
que ele estava criando.64
Calcula-se que entre 1541 e 1560 a população da cidade
duplicou, e que a maior parte desse aumento resultou da imigração.
Esse influxo intenso de refugiados em Genebra acarretou sérios problemas
sociais. Os recém-chegados estavam competindo com os moradores locais por
espaço, alimento e trabalho. As condições sanitárias
eram precárias e as doenças contagiosas, endêmicas. Muitos
dos refugiados eram relativamente prósperos, mas alguns precisavam de
assistência.
A fim de fazer face a esses problemas causados pela
imigração, foi criada uma nova instituição, a
Bourse des pauvres étrangers français (Fundo para os
estrangeiros franceses pobres), mais conhecida como Bourse
française (Fundo francês).
Jeaninne Olson, uma professora de história no Rhode Island
College, escreveu uma importante obra sobre este tópico, com base em
extensas pesquisas nos arquivos de Genebra.65 Ela argumenta que o
Fundo Francês foi uma inovação entre as
instituições assistenciais da Europa, que dedicavam-se
primariamente ao atendimento de necessidades locais.66
O Fundo Francês pode já ter sido criado em 1545. Naquele
ano, David Busanton, um rico refugiado, deixou para as cidades de Estrasburgo e
Genebra dois consideráveis legados para o auxílio de refugiados
religiosos. Calvino comunicou alegremente o recebimento do legado ao seu amigo
Viret. Alguns estudiosos acreditam que foi isto que deu origem ao Fundo
Francês, mas nenhuma cópia do testamento de Busanton chegou
até nós. Em 1550 o Fundo obviamente já estava em
funcionamento, pois os seus livros contábeis daquele ano foram
preservados. Os diáconos que então administravam o Fundo tinham se
fixado em Genebra em 1549. Assim sendo, parece que o Fundo foi inicialmente
criado logo após 1545 e tornou- se plenamente organizado em 1549,
justamente quando começou o intenso fluxo migratório religioso da
França para Genebra.67
Na época em que têm início os registros
sobreviventes do Fundo, este era dirigido por três refugiados franceses
que eram denominados os seus diáconos. Todos os três eram homens de
posses consideráveis. O mais conhecido e atuante deles era Jean
Budé, o chefe de uma família muito ilustre (o seu pai Guillaume
Budé foi um dos grandes intelectuais do século dezesseis).
Budé tornou-se o primeiro diácono conhecido do Fundo
Francês, manteve os seus livros de registros por doze anos e continuou a
servir o Fundo de outras maneiras até a sua morte em 1587.
Essencialmente, o que o Fundo fazia era angariar dinheiro de
refugiados ricos e utilizá-lo para dar assistência a refugiados
pobres. Os diáconos mantinham listas desses contribuintes, que
incluíam figuras destacadas, entre elas o mais famoso refugiado de todos,
o próprio João Calvino. Calvino fazia regularmente generosas
contribuições ao Fundo Francês e também recomendava
pessoas a serem assistidas. Eventualmente os diáconos recrutaram
coletores para ajudá-los a arrecadar esses fundos e mais tarde
também auditores para examinarem as contas.
Os diáconos do Fundo gastavam os recursos com uma
impressionante variedade de projetos caritativos. Eles ajudavam os novos
refugiados a obterem moradia em casas particulares, hospedarias ou
pensões. Eles forneciam camas ou colchões, pequenas
doações em dinheiro ou cereais para os carentes, conjuntos de
ferramentas, ou matrículas para os aprendizes de ofícios. Os
diáconos contratavam amas de leite ou mães adotivas para os
bebês cujas mães refugiadas haviam morrido. Eles também
ofereciam serviços médicos através de um médico, um
barbeiro-cirurgião e um farmacêutico. Os diáconos compravam
tecidos e contratavam alfaiates e costureiras para fazerem roupas para os
pobres.68
Os diáconos do Fundo Francês também aplicavam
recursos em muitos outros projetos ministeriais. Eles contrataram copistas em
tempo integral para copiarem os sermões e palestras de Calvino. Eles
custearam a distribuição na França de um saltério ou
hinário recentemente traduzido e de outros livros religiosos. O Fundo
envolveu-se até mesmo com a obra missionária ao sustentar pastores
que estavam em Genebra aguardando sua nomeação para igrejas na
França, bem como as viúvas e filhos órfãos de
pastores que haviam morrido no exercício de suas
funções.69
Todas essas atividades eram até certo ponto supervisionadas e
incentivadas pelos pastores. Calvino bem pode ter participado da
criação do Fundo Francês. Ele certamente era um amigo
próximo dos seus primeiros diáconos; há registros de que
eles ocasionalmente reuniam-se em sua casa. Ele deu-lhes dinheiro do seu
salário regularmente, e não hesitou em recomendar a esses
diáconos indivíduos ou projetos específicos que julgava
merecedores de assistência.
Olson observa que "o Fundo Francês contém exemplos
concretos do pensamento de Calvino posto em ação, revelando que
ele não somente pregava a caridade mas também auxiliava
generosamente os pobres."70 O Fundo Francês em essência
honrou as idéias germinais do reformador acerca da caridade e do papel
dos diáconos. A visão de Calvino a respeito dos deveres dos
cristãos para com os necessitados e do papel dos diáconos na
igreja forneceu o arcabouço conceptual dentro do qual surgiu o Fundo
Francês.71
Olson também observa que o Fundo adaptava-se muito mais de
perto que o hospital de Genebra ao ideal de uma organização
dirigida por oficiais da igreja.72 A seção acerca dos
diáconos nas Ordenanças Eclesiásticas, formulada com
base no modelo do Hospital Geral, não combina com os diáconos do
Fundo Francês, onde não havia nenhuma divisão no
ofício diaconal. "O Fundo combinava tanto o trabalho administrativo (como
o dos procuradores do hospital) quanto os contatos pessoais (como o do
hospitaleiro) no único ofício de diácono."73
Dessa maneira, McKee argumenta que a cidade-estado de Genebra oferece
exemplos do diaconato reformado tanto na sua forma "oficial" quanto na forma
"não oficial."74 Ela sustenta que, na sua diversidade, os
modelos oficial e não oficial ilustram um elemento de adiaphora
("coisas indiferentes") no ofício de diácono. "Do ponto de vista
teológico, no entanto, ambos os diaconatos eram considerados
ofícios eclesiásticos, e juntos permanecem como um claro
testemunho da preocupação de Calvino com a atuação
da Igreja como Igreja na esfera social."75
No Hospital Geral, a influência de Calvino era indireta,
porém evidente. No caso das organizações voluntárias
de refugiados como o Fundo Francês, que estavam ligadas muito mais de
perto à igreja, a sua participação foi vigorosa e
acentuada. Esta diferença nas atividades beneficentes do reformador
não envolve necessariamente maior aprovação a uma das
instituições do que à outra. Ela apenas sugere um certo
grau de realismo (bem como de sentimento patriótico): uma das
organizações tinha maior necessidade prática de
auxílio.
VI. Conclusão
As instituições beneficentes criadas pela Reforma em
Genebra subsistiram por vários séculos e serviram para ilustrar
dois princípios essenciais acerca da administração da
caridade cristã: o papel essencial dos leigos e a necessidade de
flexibilidade e inovação.
O sistema de beneficência de Genebra foi notável porque,
entre outras razões, respondeu à ênfase teológica de
Calvino sobre a caridade como uma expressão necessária do amor a
Deus e ao próximo. O diaconato (bem como a entrega de ofertas para fins
caritativos no culto formal) era uma expressão desta
preocupação fundamental. Dentro desse contexto, a Igreja Reformada
achou necessário cuidar dos necessitados de uma maneira organizada,
principalmente através de instituições como o Hospital
Geral e o Fundo Francês.
Existe uma coerência fundamental entre as idéias de
João Calvino a respeito de dinheiro, pobreza e ética
cristã, por um lado, e as práticas beneficentes da Igreja
Reformada de Genebra, por outro lado. Calvino não somente escreveu e
pregou amplamente sobre o assunto, mas, juntamente com os outros pastores
locais, pressionou repetidamente as autoridades locais para que protegessem os
pobres e adotassem leis que favorecessem a beneficência.
A maior parte das noções de Calvino acerca do diaconato
e da beneficência não eram inteiramente novas. Ele foi obviamente
influenciado por outros reformadores e por situações concretas que
testemunhou ao seu redor. Essencialmente, Calvino e os demais reformadores criam
que o cristão é um mordomo das dádivas de Deus e que a boa
mordomia leva o crente a ter um espírito aberto e generoso para com os
menos afortunados.
Em conclusão, é estimulante ver o lugar de destaque
dado por Calvino às preocupações sociais tanto na sua
teologia de maneira geral como nas suas práticas ministeriais na cidade
de Genebra. Este é um precioso legado que necessita ser redescoberto e
resgatado por seus herdeiros contemporâneos, numa época em que
muitas igrejas evangélicas e reformadas têm se esquecido das suas
responsabilidades nessa área.
Ainda que à igreja de Cristo não caiba primordialmente
a tarefa de resolver os graves problemas sociais do nosso país, o
testemunho insistente das Escrituras e o exemplo eloqüente dos que nos
precederam na fé não nos permitem ficar inativos nessa
área, se realmente nos consideramos seguidores daquele que "andou por
toda parte, fazendo o bem" (Atos 10:38).