AS LÁGRIMAS DE
CUNHAÚ
Rev. Francisco Leonardo Schalkwijk
Recentemente os jornais noticiaram a
beatificação dos mártires de Cunhaú, no Rio Grande
do Norte (1645), pelo papa João Paulo II. O massacre ocorreu durante as
primeiras semanas do levante português contra a ocupação
flamenga (1630-1654). Uma das notícias
afirmou que essas horrendas atrocidades foram cometidas por ordem do governo
holandês no Recife e tiveram a cooperação de um pastor
“calvinista”. Sem diminuir a monstruosidade do trágico
acontecimento, convém lembrar pelo menos três fatos do contexto
histórico daqueles dias de guerra que marcaram o começo do fim da
ocupação holandesa do Nordeste.
1. Em primeiro lugar, cumpre observar que
não foi o governo holandês que ordenou a chacina. O que ocorreu foi
uma vingança por parte dos indígenas em reação
às notícias que corriam sobre as crueldades dos portugueses,
ajudados por uma tribo selvagem da Bahia. Desde o início da revolta
(13-06-1645), cada vez ficava mais claro que, onde quer que os portugueses
restabeleciam seu poder, uma morte terrível esperava seus
adversários, especialmente os índios. Conseqüentemente, os
“brasilianos” (como eram chamados os índios tupis)
refugiaram-se nas proximidades das fortificações holandesas,
consideradas inexpugnáveis. Outros decidiram evitar o desastre
aparentemente inevitável e pegaram em armas. Foi isto que aconteceu no
Rio Grande do Norte, em Cunhaú.
No Rio Grande, a população
indígena consistia em grande parte de índios antropófagos
(tapuias), sob a liderança do seu cacique Nhanduí. Para os
holandeses, os tapuias significavam um bando de aliados um tanto inconstantes,
pois eram um povo muito independente, que não aceitava ordens de
ninguém, mas decidia por si o que era melhor para sua tribo. Um tal de
Jacob Rabe, casado com uma índia e muito amigo da tribo, servia como
ligação entre eles e o governo holandês.
Entre os indígenas do extremo Nordeste
em geral existia um grande ódio contra os portugueses, sem dúvida
pela lembrança dos acontecimentos anteriores à chegada dos
holandeses, que eram considerados como os libertadores da opressão lusa.
E por várias vezes esses índios quiseram aproveitar-se da
situação de derrota dos lusos, para vingar-se deles. Assim, em
1637, depois de Maurício de Nassau conquistar o Ceará, os
índios procuraram matar todos os portugueses da região, que foram
protegidos pelos holandeses por meio das armas. A mesma coisa aconteceu no Rio
Grande do Norte, em 1645. Os tapuias sentiram que, com o início da
revolta contra os holandeses, havia chegado a hora da verdade: eram eles ou os
portugueses. No dia 15 de julho, começaram por Cunhaú, massacrando
as pessoas que estavam na capela e posteriormente, numa luta armada, os
restantes.
2. Em segundo lugar, de fato o nome de um
pastor protestante está ligado a esse
episódio. Porém, de modo exatamente contrário daquele que
se supõe, porquanto não foi ele quem orientou a chacina, antes foi
enviado pelo governo para refrear a selvageria dos silvícolas. Quando, no
dia 25 de julho, o governo holandês no Recife soube dos terríveis
acontecimentos do Rio Grande do Norte, despachou o Rev. Jodocus à
Stetten, pastor da Igreja Cristã Reformada e capelão do
exército, com o capitão Willem Lamberts e sua tropa armada
“para refrear os tapuias e trazê-los para (o Recife), a fim de
poupar o país e os moradores (portugueses)”. Os índios,
porém, ficaram enfurecidos com os holandeses, não entendendo como
estes podiam defender seus inimigos mortais, e até romperam a
frágil aliança com os batavos. Antes de regressar para o
sertão do Rio Grande, fizeram ainda outra incursão vingadora
contra os portugueses, desta vez na Paraíba.
3) Em terceiro lugar, é importante
lembrar o fim dos tapuias e de Jacob Rabe. Alguns meses depois do massacre, esse
funcionário da Companhia das Índias Ocidentais, que havia recebido
o mensageiro governamental, pastor Jodocus, de pistola em punho, foi morto por
ordem do próprio governador da capitania do Rio Grande do Norte, Joris
Garstman. O capitão Joris era casado com uma senhora portuguesa que havia
perdido muitos parentes em Cunhaú. Quanto aos tapuias, após a
expulsão dos holandeses e a restauração do domínio
português, aqueles que não quiseram submeter-se à
orientação político-religiosa de Lisboa foram massacrados,
como diz o Dr. Tarcísio Medeiros, na “mais sangrenta guerra de
extermínio que existiu neste Brasil”.
Esses três fatos complementares
não diminuem em nada o sofrimento dessas vidas inocentes esmagadas pelos
rolos compressores de uma luta armada. Porém, talvez possam eliminar em
parte o veneno da história, por nos permitirem entender melhor o contexto
daqueles dias cheios de angústia para ambos os lados. Escrever
história objetivamente é muito difícil, mais ainda quando
se trata de um caso controvertido como este, com muitos pormenores
desconhecidos. Mas afirmar, como foi feito por certos porta-vozes, que as
barbaridades de Cunhaú foram perpetradas a mando do próprio
governo holandês, e ainda por cima orientadas por um pastor
evangélico, simplesmente não corresponde à verdade.
Convém distinguir os fatos e a interpretação dos fatos. O
que não atenua, antes aumenta a nossa ansiosa expectativa do dia em que o
Senhor enxugará todas as lágrimas, inclusive as de Cunhaú
(Apocalipse 7:17).