A Igreja na
Península Hispânica antes de Constantino
Boanerges Ribeiro
Não temos documentos dos inícios do cristianismo na
Península Ibérica, e não é necessário
determo-nos em lendas ou em hipóteses: as lendas somente devem ocupar-nos
na época em que surgem e crescem, pois documentam esse período. No
final do 2º século Irineu invoca a segurança
doutrinária da Igreja Hispânica; na mesma época, Tertuliano
afirma que Cristo tem seguidores em toda a Península.
I. O caso dos
LibelLatici
Em pouco mais de um século, portanto, o cristianismo se havia
propagado na Hispânia, e era doutrinariamente coeso. Mereceu
perseguições imperiais e há documentos de mártires;
mas, também, de apóstatas. Foi no tempo de Décio, no
século III (c. 254).
Podia-se evitar o martírio renegando a Cristo e sacrificando no
altar pagão; ou assinando o libelo de apostasia em público; ou
comprando esse libelo mediante suborno do magistrado. Aos portadores do libelo
deram os cristãos o apodo de libellatici, e seu
desprezo.
Aconteceu que dois bispos hispânicos, um de Astorga na Galiza e o
outro de Mérida na Lusitânia, fizeram-se
libellatici:
Mas indo mais longe Basilides (o de Astorga), estando enfermo blasfemou do
nome de Jesus Cristo. E Marcial (o de Mérida), para se mostrar
verdadeiramente reduzido à gentilidade, compareceu a muitos banquetes
gentílicos celebrados em honra dos deuses, e comia dos manjares em seus
altares.1
Marcial também sepultou defuntos seus em cemitério
pagão, com ritual pagão. Indignado, Eliano (ou Lélio),
diácono de Mérida, obteve a reunião ali de um
Concílio nacional, com bispos da Lusitânia e de outras partes da
Hispânia. Esse concílio excomungou e depôs os dois
bispos.
A crônica da Monarquia não é clara, mas parece
que houve em seguida reuniões regionais de bispos em Astorga e em
Mérida, que elegeram os sucessores dos depostos. As
eleições foram homologadas pelos fiéis, como era praxe
então.
Mais três concílios regionais encarregaram-se de justificar
perante a Igreja as medidas tomadas: um em Saragoça, um em Astorga e
outro em Mérida.
As "demonstrações e os sentimentos dos fiéis"
comoveram os dois depostos, que confessaram seu erro e solicitaram
readmissão à Igreja. Foram readmitidos à comunhão,
mas não receberam de volta o episcopado.
Basilides foi queixar-se ao bispo de Roma, Estêvão. É
claro que não lhe contou toda a verdade, somente a verdade e nada mais
que a verdade. Estêvão, que reivindicava privilégios para os
bispos, e supremacia para o de Roma, deu-lhe razão e apoio para voltar ao
episcopado perdido (aqui incluído Marcial).
Diz Menendez y Pelayo que "este é o primeiro apelo a Roma que
encontramos em nossa história eclesiástica."2 Pressionados pelos
dois com o apoio de Estêvão, os bispos hispânicos tornaram a
reunir-se. Mas em lugar de lhes devolver os cargos episcopais resolveram
consultar Cipriano de Cartago. Cipriano, após ouvir em conferência
trinta e seis bispos norte-africanos, respondeu que a deposição
dos dois era legítima e não deviam ser reintegrados. É a
Carta 68, único documento seu que temos sobre este caso, escrita em 254.
Está transcrita em Ramon Buldú, História de la Iglesia
de España, I, 290.
Ao que parece Basilides e Marcial continuaram despojados, e desaparecem da
cena. Estêvão foi martirizado em Roma em 257, Cipriano em Cartago,
em 258.
Do episódio verifica-se que, embora difundido na Península
nos inícios do século III, o cristianismo não
possuía peso social e político para desencorajar
perseguições. Já havia um delineamento de hierarquia
clerical com superioridade de bispos sobre presbíteros e destes sobre
diáconos; contudo, um diácono obtinha convocação de
concílio, e para disciplinar dois bispos. Reservavam-se aos colegiados
episcopais medidas disciplinares contra bispos. O novo bispo era eleito por um
colegiado episcopal da região, mas a eleição devia ser
ratificada pelos fiéis. Eleição e posse não sofriam
interveniência de Roma.
O recurso ao bispo de Roma e seu "provimento" não devolveram o
episcopado aos libellatici; mas os bispos peninsulares consideraram
necessário ouvir a palavra de um bispo prestigiado, Cipriano de Cartago.
Cipriano não opinou sozinho: ouviu seus colegas africanos. Mas não
teve constrangimento em discordar de Estêvão e considerar errado e
sem valor seu "provimento" do recurso (aliás, pouco depois Cipriano volta
a discordar abertamente de Estêvão, que negava a necessidade de
rebatizar hereges; Cipriano afirmava essa necessidade).
Já se alegou que a questão não era dogmática,
mas disciplinar. Está bem; mas é de notar a tranqüila
segurança com que o bispo de Cartago se opõe ao de Roma. Há
notar também que, havendo recebido comunicação de que
Estêvão bispo de Roma era favorável à
reintegração dos dois libellatici, contudo os bispos
hispânicos não os reintegraram, mas foram consultar
Cipriano.
A Igreja Hispânica do 3º século não está
subordinada ao bispo de Roma.
II. O Concílio de
Elvira
Após séculos de resistência, a Hispânia era
afinal romana. Leis, língua, deuses, técnicas e artes, economia, a
cultura enfim. A Península havia dado a Roma dois Sênecas; o Velho,
retórico de Córdova que apenas esteve em Roma incidentalmente; e o
Moço, filósofo e preceptor de Nero, que fez carreira na cidade;
Gálio, procônsul da Acaia quando ali chegou o apóstolo
Paulo, era neto do primeiro Sêneca, sobrinho do filósofo, e
também espanhol. Foram espanhóis Quintiliano, o retórico;
Luciano, o poeta; Trajano e Adriano, imperadores. O fato de tantos
espanhóis fazerem carreira "nacional" mostra como a Hispânia estava
assimilada a Roma.
A. A Instalação do Concílio de
Elvira
Por volta do ano 300, reuniu-se em Eliberis na Bética (Elvira, hoje
Granada, na Andaluzia) o concílio que tomou o nome dessa cidade. As atas
registram o dia do início e o nome e qualidade dos presentes; foi "a 15
de maio." Esquecem-se de assinalar o ano: foi entre 300 e 304, às
vésperas da grande perseguição de Diocleciano comandada na
Península por Daciano.
Essas atas com seus 81 cânones existentes são documento,
embora incompleto, do cristianismo ibérico antes do Edito de Milão
(313).3
Estiveram presentes 19 bispos e 24 presbíteros vindos de todas as
regiões da Península. Três bispos são da
Lusitânia: Ossônia, Mérida e Évora. Somente um bispo e
um presbítero são evidentemente da mesma procedência:
Hósio, bispo de Córdova e Juliano, presbítero,
também de Córdova. Hósio será personagem maior no
período constantiniano. Havia também diáconos presentes,
mas não votavam.
Não se mencionam bispos ausentes, mas havia: pesquisadores
localizaram ao menos 32 sedes episcopais na Hispânia, nessa época.
E como diáconos podiam (com limitações) reger
congregações, e regiam (Cânon 77º do Concílio),
a conclusão pode ser que o cristianismo hispânico crescia mais
velozmente que a hierarquia.
B. Idolatria e Cristianismo
O crescimento da Igreja era principalmente urbano, e as sedes episcopais
eram urbanas; não há nos Cânones indícios de
congregações rurais nem de "bispos camponeses"
(corepiscopoi). O provável é que na Hispânia, como na
Itália, aldeias e campos (pagi) conservavam-se mais apegados
à idolatria, o que terminou por dar a esse culto a
denominação de paganismo por Valentiniano em 365.
A tensão entre idolatria e cristianismo era séria; o
Concílio toma medidas severas para afastar os cristãos do culto
idólatra, mas evita fazer ou ensejar provocações
iconoclastas: não considera mártires da fé cristãos
mortos quando destruíam ídolos; ordena aos senhores
cristãos que impeçam seus servos idólatras de conservarem
ídolos nas residências senhoriais, mas admite alguma
tolerância para evitar reação revoltada dos servos: havia a
lembrança de violentas perseguições, e a possibilidade de
novos martírios (que logo surgiram).
C. O Concílio de Elvira e as Demais Autoridades
Eclesiásticas
O Concílio jamais remete questão alguma ao imperador ou ao
magistrado civil; é natural, pois a Igreja não tem vínculo
com o Estado; é Igreja pré-constantiniana. Também nada se
remete a bispo de igreja fora do Concílio reunido; nem se invoca
autoridade de bispo algum (falo do de Roma).
Em 81 Cânones somente duas vezes se recorre às Escrituras:
para fixar a data de Pentecostes (Cânon 43º) e para condenar
cristãos quebradores de ídolos (iconoclastas), um procedimento que
o Concílio alega não estar preceituado nos Evangelhos nem nos
Apóstolos.
O Concílio procede com autoridade própria; dá ordens,
prescreve sanções. Não se apoia explicitamente em outra
autoridade, exceto nos dois casos mencionados de recurso às
Escrituras.
D. O Clero
A distinção entre clero e laicato já se acentua; o
clero está claramente hierarquizado; bispo não se confunde com
presbítero, nem presbítero com diácono. A autoridade do
bispo antepõe-se à das outras ordens, e certos atos rituais
somente são íntegros com permissão ou interveniência
episcopal: "Se alguém, em virtude de grave lapso cometido, cair na
ruína da morte, não deverá solicitar perdão do
presbítero, mas do bispo" (32º); se, na ausência de bispo ou
presbítero, um diácono estiver regendo o povo, seus batismos devem
ser confirmados pelo bispo (77º).
O clero é mais protegido de ataques que os leigos, mas também
exige-se mais dele: quem acusa bispo, presbítero ou diácono e
não prova é excomungado para sempre (75º), mas se o acusado
sem provas for leigo, a excomunhão é de cinco anos (74º).
Bispo, presbítero ou diácono que viola a castidade é
excomungado perpetuamente; o leigo, porém, não será
excomungado se prometer emendar-se (47º). Não há celibato
clerical, mas o homem que se ordena clérigo deve, quando em
serviço, praticar continência conjugal (33º). Se a mulher de
um clérigo adultera e ele não se divorcia imediatamente, esse
clérigo nunca mais participará da comunhão "nem no fim da
vida" (65º); mas o leigo em caso análogo, se abandonar a mulher
sofrerá dez anos de excomunhão (70º). Em residência
clerical não pode habitar "mulher estranha", mas apenas parenta muito
próxima (27º).
Bispos e presbíteros nem sempre nadavam em ouro (se é que
jamais nadavam); viviam de ofertas dos fiéis. Alguns tinham que
dedicar-se ao comércio para sustentar-se, mas nunca à custa das
funções religiosas: é-lhes vedado comerciar fora de sua
província (18º), não podem dar dinheiro à usura
(deposição e excomunhão perpétua); mas o leigo
usurário, se prometer emendar-se, será perdoado (20º). Os
bispos não recebam ofertas de não-cristãos (28º), nem
de batizandos (48º), para não parecer que mercadejam o
sacramento.
E. As
Sanções Eclesiásticas
Toda proibição é acompanhada de sanções.
O Concílio quer seu clero austero, isento até de suspeitas, tanto
na vida financeira como na sexual. Curiosamente, ignoram-se as
instruções apostólicas, tanto sobre casamento de
bispos-presbíteros, como sobre o dever que têm os fiéis de
sustentar dignamente seus pastores.
É uma austeridade mensurável, com sanções
fatiadas em anos de excomunhão.
Desenha-se a corporação episcopal: o bispo não admita
à comunhão fiel excomungado por outro bispo sem prévia
licença do colega; não ordene fiel batizado por outro bispo, e
pouco conhecido. Estarei vislumbrando na Igreja Ibérica
pré-constantiniana uma santidade transapostólica, como já
vejo uma hierarquia não-apostólica?
De qualquer forma, casuística, datada, localizada, essa Igreja quer
seu clero aplicado aos deveres religiosos; não simoníaco; acima de
suspeitas e falatório, e solidário. Foi além (ou
aquém?) do ensino apostólico ao criar a hierarquia e a disciplina
casuística, com suas penalidades de "três anos", "um ano",
"até o fim da vida", "perpétua." Os padrões de
espiritualidade parecem caminhar para formas de comportamento graduável.
É o que se vê nos jejuns semanalmente obrigatórios
(23º), na freqüência à igreja pelos leigos, medida:
três injustificadas ausências dominicais consecutivas,
excomunhão temporária (21º); nenhuma
confraternização com judeus, nem mesmo para
refeições (49º, 50º).
Os bispos e presbíteros de Elvira tratam de isolar a Igreja da
cultura romano-hispânica que a envolvia. Principalmente da idolatria e da
dissolução sexual. São radicais, nos dois casos. Não
é necessário concluir que a idolatria estava avassalando a Igreja;
ou que a libidinagem campeasse solta tanto entre bispos, presbíteros e
diáconos como entre fiéis. Mas é justo admitir que ambas
eram vigorosas na sociedade hispano-romana, e que a interação
social inevitável as tornava perigosas e, se a Igreja não se
acautelasse, iminentes.
O Concílio toma providências para que jamais haja
justaposição de religião cristã com culto
idolátrico: retarda o batismo de catecúmeno gentílico (dois
anos de espera) e especialmente de sacerdotes idólatras convertidos
(três anos, 42º). Diversamente, aliás, do caso de meretriz
que, "passando depois a ter marido e convertendo-se à fé deve ser
admitida sem hesitação" (44º); o cristão convocado
para o duunvirato4 terá de aplicar-se uma original
auto-excomunhão: abster-se de freqüentar a Igreja no ano de sua
magistratura (56º): é que o duúnviro era obrigado pelas
funções a freqüentar jogos públicos consagrados aos
deuses. A cristãos proíbe-se emprestar vestido para ornar "pompas
profanas" (três anos de excomunhão, 57º); sacrificar ao
ídolo, dez anos de excomunhão; é proibido pintar imagens
nos templos "para que a alguns não pareça que se presta
adoração ou culto ao que está pintado nas paredes"
(36º); cristãos proprietários não recebam como
pagamento coisa ofertada a ídolos (cinco anos de excomunhão,
40º). Profissões vinculadas de algum modo ao culto de ídolos
são vedadas: cocheiro de circo, ou comediante, somente será
batizado após abandonar a profissão (62º). Como já
vimos, nem ofertas pode o bispo receber de não-cristãos. Às
mulheres cristãs é vedado casar com gentios (e também com
hereges ou judeus) (15º, 16º, 17º).
Antes de Constantino havia um abismo entre Igreja Cristã e idolatria
na Península Ibérica.
F. O Combate
à Promiscuidade Sexual
O Concílio combate energicamente a promiscuidade e a
incontinência sexual, em variadas modalidades: adultério,
fornicação, incesto, sodomia. Pelas numerosas
proibições casuísticas, sempre armadas de
excomunhões, pode-se concluir que na sociedade hispano-romana com
alarmante freqüência homens e/ou mulheres abandonavam a sociedade
conjugal para unir-se a outra pessoa e o faziam às vezes com
discreção, às vezes escandalosamente. A incontinência
aparecia também na igreja. Começava na adolescência;
desfazia votos de virgens consagradas; entrava em sedes episcopais e
presbitérios, bem como na vida de clérigos menores. Levava membros
da igreja a crimes hediondos: matar o filho adulterino para esconder o
adultério; mulheres (cristãs) enciumadas matavam servas a
pancadas; mulheres (cristãs) praticavam lenocínio. Os
cânones se multiplicam: 5º, 7º, 8º, 9º, 10º,
12º, 13º, 14º, 19º, 30º, 31º, 47º, 63º,
64º, 65º, 68º, 69º, 70º, 71º, 72º, 78º.
Também aqui, evite-se a oportunidade e a aparência do mal: "As
mulheres não devem escrever aos leigos em seu nome exclusivo, sem
mencionar os nomes dos maridos; e as que forem fiéis não devem
receber as cartas, embora pacíficas, que outrem lhes haja dirigido em seu
nome exclusivo" (81º). É proibido às "mulheres o velarem
à noite no cemitério; para evitar que muitas vezes, com o pretexto
da oração, cometam às escondidas graves faltas" (35º).
Já vimos que ao bispo ou a qualquer clérigo é proibido ter
em sua residência mulher estranha (27º).
Repito: não me parece correto concluir que a
dissolução sexual da sociedade romana decadente avassalava a
igreja, mas que a infiltrava, ameaçava e tinha de ser repelida. Era uma
igreja dinâmica, rodeada de uma sociedade de cultura atraente, dissoluta,
idólatra, permissiva, e anti-cristã. A Igreja não pretendia
ser assimilada pela sociedade ambiente, nem deixar-se invadir por seus
costumes.
G. Combate à
Feitiçaria
O Concílio acredita que feiticeiros têm poderes, e os vincula
à idolatria: "Se alguém, usando de sortilégios ou
feitiçaria, causar a morte de outrem, por isso que não pode
efetuar seu crime sem idolatria, não seja admitido à
comunhão nem no fim da vida" (6º).
Também admite que um cristão poderá ser presa de
espírito vagabundo: "Ao energúmeno, atormentado por
espírito vagabundo, nem se deve recitar o nome junto do altar ao
apresentar as oferendas, nem se lhe deve permitir que exerça pessoalmente
qualquer ministério na Igreja" (29º); pode-se batizar e ministrar a
comunhão ao energúmeno em perigo de vida que peça o
batismo, "mas não permitir que acendam as luzes publicamente" (37º).
Também, o Concílio acredita, ao que parece, que velas acesas
durante o dia excitam os espíritos dos santos: "Durante o dia não
devem estar acesas no cemitério velas de cera sob pena de
excomunhão", "porque se não devem inquietar os espíritos
dos santos". Já vimos que se faziam vigílias noturnas no
cemitério, às quais não deviam comparecer mulheres (os
cemitérios romanos eram palco de cenas pouco edificantes).
H. Os Catecúmenos
Já se considera o batismo ato salvador: se após cinco anos de
catecúmena uma mulher adoecer gravemente, seja batizada (11º); em
caso de enfermidade grave, e na ausência de clérigo, o leigo pode
batizar e "fazer cristão" (34º, 35º).
Transparecem inimizades e/ou oposições virulentas na vida de
igrejas: "Sejam anatematizados os que forem encontrados a colocar na Igreja
escritos difamatórios" (54º).
Os bispos de cada sede eram eleitos pelos outros bispos da
província, com presença e anuência do povo local. Este
costume da igreja pré-constantiniana está documentado e é
reconhecido também no Concílio de Nicéia, já
constantiniano (325 A.D.)
Conclusões
Vemos que cerca do ano 300 o cristianismo hispânico é
dinâmico e cresce; não é rico; superou as
perseguições das décadas anteriores e evita provocar os
pagãos. Não deseja conversões em massa de
catecúmenos mal instruídos e ainda apegados a práticas
idólatras. Exige de seu clero vida austera, e tende para o radicalismo.
Aparentemente não se demora em especulações
metafísico-teológicas, mas a aplicações
práticas e casuísticas, de uma ética
não-pagã. É coeso, está preparado tanto para a
grande perseguição de Diocleciano (próxima), como para a
paz de Constantino.
Não aparecem em Elvira doutores admiráveis, mas o
Concílio não julga necessário apoiar-se em autoridade
além da sua própria: nem Papa, nem doutores, e nem (é
claro) Imperador. As decisões, aparentemente, são
consensuais.
Quanto aos "leigos", o que transparece é que são estritamente
vigiados no cumprimento ao menos formal de seus deveres religiosos (lembre-se a
excomunhão temporária após três ausências
dominicais consecutivas à Igreja — não justificadas,
naturalmente). Já existem templos, mas ainda são despidos de
pinturas, as quais são proibidas. O casamento é apenas entre
cristãos e não com idólatras ou judeus, o que previne
conflitos conjugais religiosos, e também assegura os filhos para a
Igreja. A vigilância de muitos sobre todos, no subgrupo onde a conduta era
severamente regulamentada, ensejava acusações, inclusive
anônimas, de escritos difamatórios colocados nas igrejas.
Para esse cristianismo ibero-romano estavam presentes na igreja
tanto Deus como o diabo; é o que denotam os cânones relativos a
energúmenos. Os espíritos dos santos defuntos, aparentemente,
dormiam nos cemitérios especialmente durante o dia, quando podiam ser
inquietados pelas velas acesas dos fiéis.
Parece-me uma igreja determinada, dinâmica, em que os fiéis
zelam talvez demais pela vida e comportamento uns dos outros; e uma igreja um
tanto sombria.
O episódio dos libellatici, com sua intransigência com
quem usasse de subterfúgios para escapar ao martírio, havia
deixado patente a paixão e a intensidade do cristianismo ibérico.
Mal orientada, deu mais tarde no culto às relíquias supostas ou
reais dos mártires, que foi parte da virtualização do
cristianismo peninsular.
____________________
1 Frei Bernardo de Brito et al., Monarquia Lusitana, 6 vols. (Casa
da Moeda, Lisboa: Imprensa Nacional, 1973 e ss.), II:85 – facsímile
das edições de 1597, 1609 e ss.
2 Historia de Heterodoxos Españoles, 2 vols. (Madri: La
Editorial Católica, 1956), I:105.
3 Fortunato de Almeida, História da Igreja em Portugal,
transcreve o texto latino de Atas e Cânones e o traduz: vol. IV,
apêndice I.
4 Nota do Editor: O termo significa governo de duas pessoas. O
duúnviro era um dos dois governante