O Teólogo do Espírito Santo: Um Estudo sobre o Ensino de Calvino sobre a Palavra e o Espírito

Augustus Nicodemus Lopes
[Esse material está publicado em forma de livro pela Publicações Evangélicas Selecionadas e é reproduzido aqui com permissão]

Introdução

Meu tema neste artigo é "Calvino, o teólogo do Espírito Santo." Devo começar dizendo que este título não foi dado a Calvino pelos seus contemporâneos, mas sim pelos estudiosos modernos, reconhecendo a sua importância como teólogo e exegeta para esta área da Teologia que está em tanta relevância hoje.
O título pode confundir algumas pessoas. Podem pensar que o assunto sobre o qual Calvino mais escreveu, e ao qual mais se dedicou, foi o Espírito Santo. Na realidade, embora Calvino tenha escrito muita coisa sobre o Espírito Santo, nunca escreveu uma obra específica sobre o assunto, como, por exemplo, John Owen e Abraham Kuyper, cujos livros sobre o tema são fundamentais para a Igreja contemporânea.(1) Embora em suas Institutas de Religião Cristã João Calvino trate freqüentemente da pessoa e obra do Espírito Santo, não dedicou ao assunto um capítulo exclusivo.(2)
Alguns têm criticado Calvino por não haver dado atenção mais direta ao Espírito Santo em seus escritos, especialmente nas Institutas. A crítica é injusta. Existem razões suficientes para esta aparente falta de atenção.
Em primeiro lugar, a doutrina do Espírito Santo não era o foco do debate de Calvino com a Igreja Católica Romana da sua época, e nem da sua polêmica com os reformadores radicais, os Anabatistas e os "Entusiastas", conhecidos como a ala de esquerda da Reforma.(3) Calvino só tratou da obra do Espírito Santo na medida em que esse assunto se relacionava com os pontos críticos em debate, como a doutrina da salvação, da santificação, das Escrituras, e dos sacramentos.
Em segundo lugar, Calvino tinha a visão bíblica-neotestamentária de que o Espírito Santo geralmente agia nos bastidores, como o agente da Trindade. Embora sua ação fosse claramente perceptível, quem deveria sempre receber a proeminência eram o Pai e o Filho. Essa convicção reflete-se nas suas obras e em sua abordagem dos mais variados temas teológicos. Não existe praticamente nenhum assunto teológico em que Calvino não se refira, em seu tratamento, à obra do Espírito. Sua Pneumatologia é desenvolvida dentro das demais áreas da Teologia Sistemática, como Teontologia (estudo da Pessoa de Deus), Soteriologia e Eclesiologia.
Esta mesma abordagem se encontra refletida na Confissão de Fé de Westminster. É verdade que seus autores, os Puritanos, não escreveram um capítulo exclusivo sobre a pessoa e obra do Espírito. Mas, como sugeriu Dr. Benjamim B. Warfield, conhecido teólogo presbiteriano reformado, do início deste século, a razão é que preferiram escrever nove capítulos em vez de apenas um. A tentativa que foi feita em nossa época, pela Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos, para suprir esta alegada deficiência, produziu um capítulo a mais na Confissão de Fé que, segundo Warfield, nada mais é que um curto sumário destes nove capítulos originais.(4)
E por fim, não se pode exigir de Calvino (e nem dos autores da Confissão de Fé) uma abordagem do assunto que seja aguçada pelas questões relacionadas com o surgimento do movimento pentecostal, séculos após a sua morte. Mesmo assim, Calvino é surpreendentemente atual no que diz sobre o Espírito.
Por que, então, o título "teólogo do Espírito Santo?" Em primeiro lugar, Calvino foi o primeiro a sistematizar de forma clara o ensino bíblico sobre o Espírito Santo. Não é que ninguém, antes dele, não houvesse escrito sobre o assunto. Mas, é que poucos, antes e depois de Calvino, conseguiram ser tão claros, simples, e bíblicos.(5) Ouçamos o testemunho de Dr. Warfield:
A doutrina sobre a obra do Espírito Santo é uma dádiva de João Calvino à Igreja de Cristo. . . Nos amplos departamentos doutrinários sobre "A Graça Comum," "Regeneração," e "O Testemunho do Espírito" do livro terceiro das Institutas, Calvino foi o primeiro a desenvolver a doutrina da obra do Espírito Santo, e a dar a toda a doutrina do Espírito Santo uma formulação sistemática, fazendo dela uma possessão inalienável da Igreja de Deus.(6)
Em segundo lugar, Calvino integrou indissoluvelmente a doutrina do Espírito Santo aos demais temas e áreas da teologia, como regeneração, santificação, os meios de graça, e o conhecimento de Deus, entre outros. A Pneumatologia de Calvino, igualmente, abrangia e permeava todos os demais departamentos da Enciclopédia Teológica. Sua teologia é uma unidade orgânica, onde o Espírito aparece apropriadamente como o Soberano dinamizador.
Em terceiro lugar, Calvino resgatou alguns aspectos da doutrina do Espírito Santo que estavam soterrados debaixo da teologia medieval da Igreja Católica, como por exemplo, a relação entre a Palavra e o Espírito. Nosso alvo neste ensaio é analisar mais exatamente esta contribuição de Calvino para nosso conhecimento da obra do Espírito Santo, ou seja, a relação vital e orgânica entre o Espírito e a Palavra de Deus, as Escrituras.
O ensino de Calvino influenciou profundamente os estudos subsequentes dentro dos círculos Reformados. Sua ênfase na ação soberana do Espírito continua na tradição reformada entre os Puritanos ingleses, particularmente John Owen e Richard Sibbes, que nos deram os estudos bíblicos teológicos mais extensos e profundos que existem em qualquer língua sobre o ministério do Espírito Santo.

O Contexto Teológico de Calvino

Comecemos por lembrar-nos que a teologia de Calvino nasceu e desenvolveu-se em meio ao intenso conflito doutrinário que marcou a Reforma do século XVI. Sua doutrina do Espírito Santo foi moldada em meio à sua batalha em duas frentes. Em uma, ele enfrentava o cativeiro das Escrituras pela Igreja Católica, e na outra, o abandono das Escrituras pelos da Reforma radical.

A Igreja Católica e o cativeiro das Escrituras

Calvino e a Igreja Católica tinham algumas convicções em comum quanto à doutrina das Escrituras. Para eles, as Escrituras eram a Palavra de Deus, inspiradas pelo Espírito Santo, infalíveis, e autoritativas. Este ponto não estava sendo disputado por Calvino, nem pelos demais reformadores. O ponto de discórdia entre Calvino e os católicos era quanto ao ensino papista de que a autoridade da Escritura dependia do testemunho da Igreja. A Igreja Católica afirmava que o cânon das Escrituras, a sua preservação, a sua origem divina e sua autoridade, deviam ser aceitos pelos fiéis como verdadeiros porque a Igreja assim o afirmava. A autoridade das Escrituras, enfim, dependia do testemunho da Igreja. A Igreja, além disto, tinha a correta interpretação das Escrituras; a coleção dessas interpretações formava a tradição eclesiástica, que possui tanta autoridade quanto as próprias Escrituras. Assim, era vedado aos católicos leigos lerem e interpretarem as Escrituras. Eles dependiam da interpretação dada pela Igreja. Desta forma, a Palavra e a sua interpretação estavam cativas debaixo da autoridade eclesiástica.
Calvino levantou-se contra esse estado de coisas, que havia prevalecido durante a Idade Média. Ele considerava esse ensino como sendo uma afronta ao Espírito Santo, e um abuso de autoridade por parte da Igreja. Era a Igreja que estava fundada sobre as Escrituras, e não o contrário. A autoridade das Escrituras não dependia do testemunho da Igreja, e sim o contrário: a Igreja só possuía autoridade enquanto estivesse dentro da doutrina bíblica. Calvino apelava aqui para Ef 2.20, onde Paulo ensina que a Igreja está edificada sobre o fundamento dos apóstolos e profetas, que é o ensino das Escrituras.(7) A Igreja simplesmente reconhecia — não estabelecia e nem determinava a inspiração e a autoridade dos livros que compunham o cânon sagrado.(8)
Para Calvino, a maior de todas as provas da autoridade e inspiração das Escrituras era que o próprio Deus nos falava através delas. Calvino chamava a isto o testemunho interno do Espírito.(9) Para ele, o homem natural não poderia ser convencido da divindade das Escrituras por argumentos apresentados pela Igreja, por mais lógicos e racionais que eles parecessem (1 Co 2.14).(10) Era o Espírito quem persuadia o crente de que Deus estava falando nas Escrituras, inclinando-lhe o coração a aceitá-las, e dando-lhe plena certeza disto, gerando-lhe fé em seu coração. Nas suas Institutas e comentários Calvino aponta para alguns textos com este efeito, como por exemplo, 1 Jo 5.6-7, 2 Tm 1.14-15, 1 Co 2.10-16.(11)
Para Calvino, o que o Espírito havia revelado nas Escrituras era suficiente e final. Maomé, o Papa, e os "Entusiastas" estavam errados, ao reivindicar que o Espírito estaria ensinando novas verdades no presente. Para Calvino, as palavras do Senhor Jesus em Jo 14.25 deixavam claro que o ministério do Consolador consistiria, não em revelar novas verdades, que fossem além das que haviam sido ensinadas pelo Senhor Jesus e seus apóstolos, mas em iluminar as mentes e os corações dos crentes, para que compreendessem e cressem nas verdades, agora registradas na Escritura. Ele afirma: "O espírito que introduz qualquer doutrina ou novidade que vá além do Evangelho, é um espírito de mentira, e não o Espírito de Cristo."(12)
O efeito do ensino de Calvino foi libertador.(13) Através da ênfase no testemunho interno do Espírito Santo como a evidência máxima da divindade e da autoridade das Escrituras, ele libertou as Escrituras e a sua interpretação do cativeiro imposto pela Igreja Medieval, e as colocou de volta onde elas pertenciam de direito, nas mãos do Espírito Santo. Neste sentido, estava certa a avaliação de alguns católicos encarregados da contra-reforma no século XVII, de que uma das maiores diferenças que existiam entre Roma e Genebra se encontrava em suas doutrinas sobre a pessoa e a obra do Espírito Santo.

Os Reformadores Radicais e seu Desprezo pela Palavra

A outra fronte de batalha de Calvino era contra o ensino da Reforma radical, conhecida como a "ala esquerdista" da Reforma.(14) Havia diversos grupos dentro desta ala do movimento reformista. Havia, em primeiro lugar, como os Anabatistas, os "Fanáticos", os "Espiritualistas" e os Antitrinitarianos, que "embora diferentes em seus propósitos e em suas doutrinas, tinham em comum o desejo de ver uma Reforma muito mais radical do que a propagada por Lutero e Zwinglio."(15) A polêmica de Calvino contra os Anabatistas concentrou-se em questões como batismo infantil, predestinação, governo de Igreja, relação entre Igreja e Estado, e interpretação das Escrituras.(16)
Foi contra os excessos dos "Entusiastas" ou "Fanáticos" (como eram conhecidos) na área de novas revelações contemporâneas do Espírito, que Calvino se concentrou em alguns de seus escritos. Ele escreveu um tratado em 1545 entitulado Contre la secte phantastique et furieuse des Libertines qui se nomment spirituelz (Contra a seita fantástica e furiosa dos Libertinos, que se chamam de Espirituais), que ainda não foi traduzido para o português.(17) Freqüentemente em suas Institutas e comentários Calvino faz menções diretas ou sugestões implícitas sobre este movimento.
Os "Entusiastas" enfatizavam o ministério didático do Espírito, um ponto que havia sido resgatado pelos Reformadores; porém, estavam indo além deles, reivindicando serem ensinados diretamente pelo Espírito através de novas revelações, por meio de uma luz interior. Afirmavam que o Espírito não podia ficar restrito a palavras escritas, pois isto diminuiria sua soberania. Testar as manifestações espirituais seria desonrar o Espírito. Chegavam a ridicularizar os que se apegavam às Escrituras, pois a consideravam como uma forma inferior e temporária de revelação, e criticavam Calvino e os demais reformadores por se apegarem à letra que mata.
Os "Entusiastas," portanto, eram uma reação à escravidão das Escrituras por parte da Igreja que havia vigorado até a Reforma, mas uma reação que estava indo longe demais. Calvino, naturalmente, simpatizava-se com os "Entusiastas" em vários pontos. Para ambos, as Escrituras, como Palavra de Deus, não estavam cativas à interpretação da Igreja, mas deveriam ser livremente examinadas por todos. Calvino, porém, questionava seriamente a separação entre o Espírito e a Palavra, e considerava qualquer tendência neste sentido como "demência".(18) Ele também duvidava que "novas revelações" fossem uma obra do Espírito Santo, e chegava mesmo a suspeitar que os que reinvidicavam receber revelações novas, que excediam as Escrituras, estavam sendo guiados por outro espírito, que não o de Deus. Calvino cria na realidade e na atuação de espíritos mentirosos, e que Satanás estava continuamente iludindo as pessoas, procurando afastá-las da verdade, transfigurando-se em "anjo de luz" (2 Co 11.3,14). Para ele, "novas revelações", na verdade, eram invenções de espíritos mentirosos, não provinham do Espírito Santo, sendo o cumprimento de passagens como 1 Tm 4.1-2.(19)

O Ensino de Calvino sobre o Espírito e a Palavra

Calvino não se limitou a criticar os exageros dos "Entusiastas." Ele apresentou, de forma positiva e construtiva, o ensino bíblico sobre a direção divina para a Igreja vivendo após os tempos apostólicos. No livro I das suas Institutas, onde trata de "O Conhecimento de Deus como Criador", Calvino dá o seguinte título ao capítulo 9: Os fanáticos, abandonando as Escrituras e bandeando-se para revelação, derrubam todos os princípios da piedade. Nesse capítulo, o reformador aborda o ensino dos "Fanáticos", como eram conhecidos na época, a partir da inseparável relação entre o Espírito e a Palavra.(20)

O Espírito Fala pelas Escrituras

O ponto central de Calvino era que o Espírito fala pelas Escrituras. Não que o Espírito estivesse restrito à Pregação da Palavra e aos sacramentos, mas sim que Ele não pode ser dissociado de ambos. O Espírito havia sido dado à Igreja, não para trazer novas revelações, mas para nos instruir nas palavras de Cristo e dos profetas. De acordo com Calvino, o Espírito sela nossas mentes quando ouvimos e recebemos com fé a palavra da verdade, o Evangelho da salvação (Ef 1.13). Ele limita-se a guiar os crentes e a iluminar seus entendimentos naquilo que ouviu e recebeu do Pai e do Filho, e não de Si mesmo (Jo 16.13). Como o ensino divino se encontra nas Escrituras, a obra do Espírito consiste em iluminá-las, fazendo com que esse ensino seja entendido pelos fiéis.
Contra o desprezo pelas Escrituras da parte de muitos "Entusiastas," Calvino citava o exemplo do apóstolo Paulo, que mesmo tendo sido arrebatado ao terceiro céu, onde recebeu revelações extraordinárias (2 Co 12.2), ainda assim jamais desprezou as Escrituras, como se fossem uma forma inferior de revelação, mas as reconheceu como suficientes e eficazes, pela graça do Espírito, para edificar a Igreja em todas as coisas concernentes ao reino de Deus (2 Tm 3.15-17; cf. 1 Tm 4.13).(21)

O Espírito é reconhecido pela sua harmonia com as Escrituras

Outro ponto importante destacado por Calvino nas Institutas era que a atuação do Espírito Santo poderia ser reconhecida pela sua harmonia com as Escrituras, as quais haviam sido inspiradas pelo próprio Espírito.(22) Calvino desejava apresentar um critério pelo qual a Igreja pudesse discernir de forma segura, no âmbito da experiência religiosa, o que realmente procedia da parte do Espírito de Deus, ou de espíritos enganadores. Para ele, havia somente um critério seguro e infalível: o Espírito falando nas Escrituras. Assim, não haveria qualquer diminuição do poder e da glória do Espírito Santo ao concordar com elas, já que Ele as havia inspirado. Seria concordar consigo mesmo, e qual a desonra que poderia haver nisto? Testar as manifestações supostamente provenientes do Espírito, usando-se o crivo das Escrituras, era, na realidade, agradável a Ele, pois Ele mesmo havia determinado que a Igreja assim procedesse com as manifestações espirituais.(23) Para Calvino, não poderia haver qualquer contradição entre o ensino bíblico e a atuação do Espírito nos tempos pós-apostólicos; e é por esta razão que ele frequentemente se refere às Escrituras como "a imagem do Espírito."(24)

A Soberania do Espírito

Um último ponto ao qual desejo me referir é a insistência de Calvino sobre a soberania do Espírito Santo nesta relação íntima com a Palavra de Deus. Para ele, a Palavra é o instrumento pelo qual Deus dispensa a iluminação do Espírito aos crentes.(25) Assim, Cristo fala hoje através do ministro do Evangelho, quando o mesmo expõe fielmente a Palavra. O Espírito torna eficaz a Palavra exposta nos corações dos que a ouvem. Ao mesmo tempo, a relação Espírito-Palavra não é mágica, ou automática. A Palavra não é como um talismã, que sempre que invocado, libera seu poder mágico, ao bel-prazer do seu possuidor. A eficácia da Palavra, ao contrário, está totalmente na dependência da soberania do Espírito.(26) Para Calvino, a afirmação de Paulo de que somos ministros de uma nova aliança, do Espírito que vivifica (2 Co 3.6), não é uma garantia de que nossa pregação sempre será acompanhada pelo poder vivificador do Espírito. Pastores não retém o poder de dispensar a graça do Espírito a qualquer um que desejem, e quando o desejem. É por um ato soberano que o Espírito torna a Palavra pregada em Palavra eficaz.(27)
Assim, a eloquência, a habilidade, a erudição e o fervor do pregador de nada adiantam, se a graça e o poder do Espírito não estiverem presentes. E assim ocorre porque, o mérito sempre deve ser de Cristo, e não dos pregadores.

A Influência de Calvino na Confissão de Fé de Westminster

A Confissão de Fé de Westminster, adotada pela Igreja Presbiteriana do Brasil, foi elaborada no século XVII, quase um século após a morte de Calvino, por pastores e teólogos Puritanos, reunidos com este fim pelo Parlamento Inglês, na Assembléia de Westminster. O alvo dos eruditos ali reunidos durante vários anos era um só: formular de forma sistemática a doutrina bíblica, partindo dos princípios de interpretação herdados da Reforma. A Igreja Presbiteriana tem adotado essa Confissão como a expressão correta do ensino das Escrituras. Os seus autores foram profundamente influenciados por João Calvino. Esta influência se percebe claramente no ensino da Confissão sobre o Espírito Santo, e em especial, na relação do Espírito com a Palavra.
Assim, no seu capítulo sobre as Escrituras, a Confissão declara, nos melhores termos calvinistas, que a autoridade da Escritura não depende do testemunho do homem ou da Igreja, mas de Deus ( I, 4), que a nossa certeza da sua infalível verdade e autoridade divina provém do testemunho do Espírito Santo em nossos corações (I, 5), que à Escritura nada se acrescentará em tempo algum, nem por novas revelações do Espírito, nem por tradições de homens (I, 6). A Confissão reafirma, com Calvino, que é necessária a íntima revelação do Espírito de Deus para a compreensão salvadora das coisas reveladas na Palavra (I, 6), e que, finalmente, o Juiz Supremo pelo qual todas as controvérsias religiosas têm de ser examinadas é o Espírito Santo falando nas Escrituras (I, 8).

Relevância do Ensino de Calvino para Nós Hoje

A Época em que Vivemos

A influência do movimento neopentecostal, surgido na década de sessenta, tem-se feito sentir de forma profunda nas denominações evangélicas históricas, e também dentro da Igreja Presbiteriana do Brasil. Não podemos tratar o movimento como um bloco monolítico — existem, dentro dele, diversas correntes e ramificações, o que faz com que generalizações tornem-se injustas. Mas, onde aparece com toda a liberdade, o neopentecostalismo manifesta a crença em novas revelações através de profecia e línguas, visões e sonhos, todos atribuídos ao Espírito Santo, e em alguns casos, práticas estranhas ao Cristianismo histórico, que são atribuídas ao poder do Espírito Santo, como "cair" no Espírito, o "sopro" do Espírito, o "riso santo", característica principal do movimento conhecido como "a bênção de Toronto". Há pastores que pretendem ter controle sobre o Espírito Santo, que presumem concedê-lo pela imposição de mãos, lançá-lo sobre o povo, girando o paletó, soprando sobre eles, etc., como o conhecido carismático Benny Hinn. Estes super-pastores determinam até mesmo quando o Espírito vai curar ou agir, pois marcam com antecedência reuniões de cura e libertação, coisa que nem mesmo o Senhor Jesus e os apóstolos fizeram.
A Igreja Presbiteriana está aturdida, tomada de surpresa, por estes ensinos. Muitas de suas igrejas locais têm adotado, em maior ou menor medida, as doutrinas e práticas do neopentecostalismo. Podemos receber ajuda do ensino de Calvino, nesta hora?

Em que o Ensino de Calvino nos Ajuda Hoje?

Em primeiro lugar, o ensino de Calvino sobre o testemunho interno do Espírito vem lembrar à Igreja que, nestes tempos difíceis, ela deve buscar de Deus a íntima iluminação do Espírito para compreender e aplicar as Escrituras à sua vida e missão. Corremos o risco de pensar que Calvino, em sua luta contra os excessos dos "Entusiastas", caiu no extremo do academicismo frio. Balke nos relata o que de fato ocorreu: "Calvino, o teólogo do Espírito Santo, queria guardar-se contra o fanatismo, sem porém impedir a liberdade do Espírito."(28) Como Calvino, devemos nos guardar dos excessos de hoje, ao mesmo tempo em que, submetendo-nos à liberdade do Espírito, procuramos a sua iluminação. Mas, para isto, é necessário arrependimento e saneamento da vida das igrejas locais, dos conselhos, concílios, organizações e instituições eclesiásticas que compõem a IPB. É preciso nos voltarmos a Deus em oração, suplicando a iluminação do Espírito, como bem orienta a Carta Pastoral da Igreja Presbiteriana do Brasil sobre o Espírito Santo:
Ao mesmo tempo em que orienta a Igreja a guardar-se de uma interpretação das Escrituras que parte dos princípios hermenêuticos equivocados da experiência neopentecostal, a Igreja também adverte contra uma interpretação intelectualizada e árida das Escrituras, que se esquece da necessidade da iluminação do Espírito para sua compreensão e de que Deus promete ensinar àqueles que procuram andar em santidade e retidão (Sl 119.18, 33-34; Lc 24.44-45).(29)
Em segundo lugar, Calvino nos desafia a examinar todas as manifestações espirituais pelo crivo da Palavra de Deus, quanto à natureza, ao propósito, e ao modo destas manifestações. Essa prática está pressupondo corretamente o ensino bíblico de que o Espírito Santo não se contradiz. As Escrituras foram inspiradas por ele. Embora o Espírito aja de formas distintas em épocas distintas, jamais o faz em contradição ao que nos revelou na Palavra. Deveríamos estar abertos para o fato de que o Espírito tem enfatizado aspectos diferentes da Palavra em épocas diferentes — porém, jamais indo além dela ou contra ela.
Em terceiro lugar, o ensino de Calvino nos alerta contra os que pretendem ter total controle sobre o Espírito, que pretendem dispensar o batismo do Espírito pela imposição de mãos, que "ensinam" aos crentes imaturos e incautos a falar em línguas. Alerta-nos a rejeitar todo ensino, movimento, culto, liturgia, onde a Palavra de Deus não receba a devida proeminência. Se o Espírito fala pela Palavra, a Palavra deve ser o centro.
Muitos presbiterianos consideram-se calvinistas e reformados, mas quantos realmente percebem as implicações do ensino calvinista reformado sobre a obra do Espírito para as práticas neopentecostais que são aceitas em muitas das nossas igrejas? Calvino foi, de fato, um homem do Espírito Santo, que guiado por Ele, tornou-se o principal instrumento de Deus para a Reforma do século XVI, movimento que, na realidade, foi um dos maiores reavivamentos espirituais ocorridos na Igreja Cristã, após o período apostólico. Todos nós queremos um reavivamento espiritual, da mesma magnitude. Calvino, que viveu e ministrou em meio àquela tremenda manifestação de poder divino, não teve receio de ofender o Espírito por inquirir, de forma profunda e meticulosa, sobre a genuinidade dos fenômenos que sempre acompanham os grandes movimentos espirituais da História. Se por um lado não devemos ter medo do que o Espírito possa fazer, por outro, devemos temer a obra espúria dos espíritos enganadores, e do nosso próprio coração enganoso.
E por fim, vale a pena mencionarmos que "a era do Espírito Santo", como é conhecida em muitos meios neopentecostais, iniciou-se, não em 1906, com a reunião na rua Azuza, nos Estados Unidos, mas desde o dia de Pentecoste. As evidências bíblicas são numerosas. Em seu sermão no dia de Pentecoste, o apóstolo Pedro declarou que a descida do Espírito estava inaugurando os últimos dias (At 2.16-21). Os demais apóstolos ensinaram, semelhantemente, que os últimos dias, a dispensação anterior ao dia do julgamento final, já havia chegado ( 1 Co 7:29; 1 Jo 2.18). Enfatizo esse ponto pois alguns poderiam argumentar que estamos vivendo hoje na "era do Espírito", e que Calvino viveu antes dessa época. Os que assim acreditam, afirmam que hoje o Espírito está agindo de uma forma muito mais intensa, e mesmo, diferente, da época da Reforma, e que, portanto, o que Calvino experimentou e ensinou está, num certo sentido, ultrapassado. Entretanto, as Escrituras nos ensinam que a Igreja já está vivendo os últimos dias, a dispensação do Espírito, desde o período apostólico. Calvino viveu e ensinou em plena época do Espírito, tanto quanto nós hoje vivemos e labutamos. O ensino de Calvino, por ser bíblico, pode nos servir de balizamento, indicando-nos o estreito caminho do equilíbrio, entre uma vida de piedade e uma mente firmada nas antigas doutrinas da graça.

Notas

1 Jown Owen, The Holy Spirit: His Gifts and Power (Grand Rapids: Kruegel, 1960); Abraham Kuyper, The Work of the Holy Spirit (Grand Rapids: Eerdmans, 1946). Outros autores poderiam ser acrescentados, como o Puritano inglês Thomas Goodwin, e mais recentemente, Benjamim B. Warfield e George Smeaton.
2 Cf. João Calvino, As Institutas, ou Tratado da Religião Cristã, 4 vols., trad. Waldyr C. Luz (São Paulo: CEP e Luz para o Caminho, 1989). Calvino trata da divindade do Espírito em I.13.14-14, e da sua obra redentora (aplicando a salvação) no livro III, especialmente nos capítulos 1-2.
3 O termo "esquerda" tem sido empregado recentemente por alguns historiadores para se referir a esse grupo, sem qualquer conotação política.
4 Cf. a nota introdutória de B. Warfield em Kuyper, The Work of the Holy Spirit, xxvii.
5 Para uma lista das obras mais importantes sobre o Espírito Santo escritas após Calvino nos séculos XVII e XVIII, ver Kuyper, The Work of the Holy Spirit, lx-x.
6 Kuyper, The Work of the Holy Spirit, xxxiii-xxxiv.
7 Institutas, I.7.2; IV.2.1,9. Veja ainda Calvin’s Commentaries, vol. 21, trad. W. Pringle (Grand Rapids: Baker, 1981) 242-44.
8 Institutas, I.7.1. Veja também os capítulos 7-9 do livro I, onde Calvino desenvolve o tema da autoridade das Escrituras.
9 Institutas, III.1.1; I.7.5.
10 Institutas, I.8.13; I.7.4. Cf. Ronald S. Wallace, Calvin’s Doctrine of the Word and Sacrament (Grand Rapids: Eerdmans, 1957) 101-2.
11 Institutas, III.1.1; III.2.33-34; II.2.20; I.7.5. Veja ainda Calvin’s Commentaries, vol. 20, 116-17, e vol. 22, 257.
12 Calvin’s Commentaries, vol. 18, 101.
13 Devemos, com justiça, notar que Calvino deve muito dessa perspectiva ao ensino desbravador de M. Lutero, que já havia, antes dele, denunciado esse estado de coisas.
14 Veja acima nota .
15 William Balke, Calvin and the Anabaptist Radicals, trad. W. Heynem (Grand Rapids: Eerdmans, 1981) 2.
16 Para uma análise mais profunda do debate de Calvino com os Anabatistas consulte Balke, Calvin and the Anabaptist Radicals. Resumos sobre o movimento Anabatista durante a Reforma poderão ser encontrados nos livros clássicos em Português de História da Igreja, como Robert Nichols, W. Walker e Justo Gonzalez (vol. 6).
17 Esta obra se encontra publicada em Francês na coleção Corpus Reformatorum, ed. C.G. Bretschneider (Halle, 1834-1860), vol. 7, 145-248.
18 Institutas, I, 9, 1.
19 Institutas, I, 9, 2.
20 Para um estudo mais aprofundado, veja W. Kreck, "Wort und Geist bei Calvin", em Festchrift für Günther Dehn (Neukirchen, 1957) 168-173.
21 Institutas, I, 9, 1; cf. Wallace, Calvin’s Doctrine of the Word and Sacrament, 130.
22 Institutas, I, 9, 2.
23 Institutas, I, 9, 2. Passagens como 1 Co 12.1-3, 14.29 e 1 Jo 4.1, entre outras, estabelecem critérios doutrinários pelos quais pode-se julgar as profecias e os profetas.
24 Institutas, I, 9, 2-3.
25 Ibid.
26 Calvin’s Commentaires, vol. 22, 102-3.
27 Calvin’s Commentaires, vol. 20, 174; veja ainda Wallace, Calvin’s Doctrine of the Word and Sacrament, 89-90.
28 Balke, Calvin and the Anabaptist Radicals, 326.
29 "O Espírito Santo Hoje - Os Dons de Línguas e Profecia", em Cartas Pastorais (São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1995). O documento foi elaborado pela Comissão Permanente de Doutrina da IPB.