F. Solano Portela Neto
Em 31 de outubro de 1517 Martinho Lutero pregou as suas hoje famosas 95 Teses na porta da catedral de Wittenberg. Periodicamente as igrejas evangélicas relembram aqueles eventos que, na soberana providência de Deus, preservaram viva a sua igreja. Muitos, entretanto, questionam essas comemorações e alguns chegam até a contestar a lembrança da Reforma. "Por que considerar o que aconteceu há quase 500 anos?"
Seguramente muitos não estudam a Reforma por mero desconhecimento, por falta de informação, por não se aperceberem da sua importância na vida da igreja e da humanidade. Entretanto, muitos procuram um esquecimento voluntário daqueles eventos do século XVI. Martin Lloyd-Jones1 nos fala que entre aqueles que rejeitam a memória da Reforma temos, basicamente, dois tipos de argumentação: 1. "O passado não tem nada a nos ensinar." Segundo este ponto de vista, o progresso científico e o futuro é o que interessa. Firmadas em uma mentalidade evolucionista, estas pessoas partem para uma abordagem histórica de que "o presente é sempre melhor do que o passado" e assim nada enxergam na história que possa nos servir de lição, apoio, ou alerta. 2. A segunda forma de rejeição parte daqueles que vêem a Reforma como uma tragédia na história religiosa da humanidade. Estes afirmam que deveríamos estar estudando a unidade em vez de um movimento que trouxe a divisão e o cisma ao cristianismo. Dentro desta visão, perdemos tempo quando nos ocupamos de algo tão negativo.
Podemos dar graças, entretanto, pelo fato de que um segmento da igreja ainda acha importante estar relembrando e aplicando as questões levantadas pelos reformadores. Mas é o mesmo Martin Lloyd-Jones que alerta para um perigo que ainda existe dentro do interesse pelos acontecimentos que marcaram o século XVI. Na realidade, ele nos confronta com uma forma errada e uma forma certa de relembrar o passado, do ponto de vista religioso.
A forma errada, seria estudar o passado por motivos meramente históricos. Esse estudo seria semelhante à abordagem que um antiquário dedica a um objeto. Por exemplo, quando ele examina uma cadeira, ele não está interessado em saber se ela é confortável, se dá para sentar-se bem nela, se ela cumpre adequadamente a função de cadeira. Basicamente a preocupação se resume à sua idade, ao seu estado de conservação e, principalmente, a quem pertenceu. Isto determinará o valor daquele objeto para o antiquário e, conseqüentemente, o seu estudo é motivado por essa visão.
Em Mateus 23.29-35 teríamos um exemplo dessa abordagem errada do passado. O trecho diz:
Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! ...porque edificais os sepulcros dos profetas, adornais os túmulos dos justos, e dizeis: Se tivéssemos vivido nos dias de nossos pais, não teríamos sido seus cúmplices no sangue dos profetas. Assim, contra vós mesmos testificais que sois filhos dos que mataram os profetas. Enchei vós, pois, a medida de vossos pais. Serpentes, raça de víboras! como escapareis da condenação do inferno? Por isso eis que eu vos envio profetas, sábios e escribas. A uns matareis e crucificareis; a outros açoitareis nas vossas sinagogas e perseguireis de cidade em cidade; para que sobre vós recaia todo o sangue justo derramado sobre a terra, desde o sangue do justo Abel até ao sangue de Zacarias, filho de Baraquias, a quem matastes entre o santuário e o altar.
Jesus diz que aqueles homens pagavam tributo à memória dos profetas e líderes religiosos do passado. Eles prezavam tanto a história, que cuidavam dos sepulcros e os enfeitavam. Proclamavam a todos que os profetas eram homens bons e nobres e atacavam quem os havia rejeitado. Diziam eles: "se estivéssemos lá, se vivêssemos naquela época, não teríamos feito isso!" Mas Jesus não se impressiona e os chama de hipócritas! A argumentação de Jesus é a seguinte: Se vocês se dizem admiradores dos profetas, como é que estão contra aqueles que representam os profetas e proclamam a mesma mensagem que eles proclamaram? Ele prova a sinceridade deles pondo a descoberto a sua atitude no presente para com aqueles que agora pregam a mensagem de Deus e mostra que eles próprios seriam perseguidores e assassinos dos proclamadores da mensagem dos profetas.
Esse é também o nosso teste: uma coisa é olhar para trás e louvar homens famosos, mas isso pode ser pura hipocrisia se não aceitamos, no presente, aqueles que pregam a mensagem de Lutero e de Calvino. Somos mesmo admiradores da Reforma, daqueles grandes profetas de Deus?
Mas existe uma forma correta de relembrar o passado. Nós a deduzimos não apenas por exclusão e inferência do texto anterior, mas porque temos um trecho na Palavra de DeusHebreus 13.7-8, que diz: "Lembrai-vos dos vossos guias, os quais vos falaram a palavra de Deus, e, atentando para o êxito da sua carreira, imitai-lhes a fé. Jesus Cristo é o mesmo, ontem, e hoje, e eternamente."
A maneira correta de relembrar a Reforma é, portanto, verificar a mensagem, a Palavra de Deus, como foi proclamada, e isso não apenas por um interesse histórico de "antiquário," mas para que possamos imitar a fé demonstrada pelos reformadores. Devemos observar aqueles eventos e aqueles homens, para que possamos aprender deles e seguir o seu exemplo, discernindo a sua mensagem e aplicando-a aos nossos dias.
Muitos de nós que crescemos neste país de maioria católica podemos nos recordar de, numa ou outra ocasião, termos ouvido alguma posição distorcida sobre os fatos da Reforma do Século XVI, ou sobre os reformadores. Uma das versões comuns, na visão da Igreja Católica, era apresentar Lutero como um monge que queria casar e que por isso teria brigado com o papa. Outros diziam que Lutero foi alguém que ambicionava o poder político. Ainda outros falam que Lutero era apenas um místico rebelde, sem convicções reais e profundas. Até mesmo a descrição dele como doente da alma, psicopata, enganador e falso profeta permanece em vários escritos de historiadores famosos do período.2 Um famoso autor e historiador católico brasileiro chegou a escrever que "excomungado em Worms, em 1521, Lutero entregou-se ao ócio e à moleza."3
Em anos mais recentes, um novo de tipo de abordagem da Reforma tem surgido nos círculos católicos, que igualmente representa alguma forma de distorção. Por exemplo, nos 500 anos do nascimento de Lutero (1983) o Papa participou de algumas cerimônias comemorativas do evento, na Alemanha.4 Certamente não foi por convencimento das verdades ensinadas por Lutero, pois a igreja que representa nada mudou doutrinariamente após a sua participação. A visita do Papa evidencia, entretanto, uma comprovação de que a imagem de Lutero e os princípios que pregava estão sendo alvo de revisionismo histórico e de distorções. Diluindo-se a força das doutrinas pregadas pelos reformadores, possibilita-se uma aproximação com os fatos históricos descontextualizados.
Em 1967, nos 450 anos da Reforma, a revista TIME escreveu o seguinte:"O domingo da Reforma está se tornando um evento ecumênico que olha para o futuro, em vez de para o passado."5 Na mesma ocasião, um semanário jesuíta fez esta afirmação: "Lutero foi um profundo pensador espiritual que foi levado à revolta por papas mundanos e incompetentes."6 Podemos ver como essa colocação faz da Reforma uma revolta contra pessoas temporais e não contra um sistema de doutrinas de uma igreja apóstata, que persiste até hoje.
Refletindo o sentimento ecumênico que tem permeado a segunda metade do século XX, bispos das igrejas católica e luterana dos Estados Unidos fizeram uma declaração solidária, no aniversário da Reforma, dizendo o seguinte: " recomendamos um programa conjunto, entre os membros de nossas igrejas, de estudos, reflexão e oração."7 Podemos imaginar discípulos jesuítas consciente e sinceramente fazendo estudos, reflexão e oração em comemoração à Reforma do Século XVI? Certamente só se ignorarem os pontos fundamentais de doutrina levantados pelos reformadores.
Refletindo uma visão político-sociológica da Reforma, uma outra distorção permeou durante muito tempo o pensamento revisionista da história. Na época em que o comunismo ainda imperava na Europa oriental, porta-vozes do partido comunista da Alemanha relembraram Lutero como sendo "um precursor da revolução."8
Muitas das ações descritas acima, de comemoração conjunta da Reforma por católicos e protestantes, só ocorrem porque não se fala nas doutrinas cardeais levantadas pelo movimento do século XVI. Tristemente, temos observado que mesmo no campo chamado "evangélico" a situação é semelhante. Raras são as igrejas e denominações evangélicas que ensinam o que foi a Reforma do Século XVI e muito poucas as que comemoram o evento e aproveitam para relembrar e reaplicar os princípios nela levantados. Mais recentemente, observamos que tem sido removida a clara linha que separa as igrejas protestantes da católica quanto ao entendimento da fé cristã e da salvação. Esta ação, até alguns anos atrás praticada somente pela teologia liberal, que já havia declaradamente abandonado os princípios norteadores da Palavra de Deus, hoje está presente no campo protestante evangélico.
A falta de discernimento e conhecimento histórico, prático e teológico tem-se achado até mesmo dentro do campo ortodoxo e inclui teólogos reformados e tradicionais. Referimo-nos ao documento "Evangélicos e Católicos Juntos" (Evangelicals and Catholics Together), publicado em 1994 nos Estados Unidos, que tem sido uma fonte de controvérsia desde a sua divulgação.
A base e intenção do documento foi a realização de ações conjuntas de cunho moral-político por católicos e protestantes,9 mas ele evidencia uma grande falta de discernimento e sabedoria. Por exemplo, o documento encoraja a que as pessoas convertidas sejam respeitadas em sua decisão de filiar-se quer a uma igreja católica quer a uma protestante.10 Essas declarações foram emitidas como se a fé fosse a mesma, como se a doutrina fosse igual, como se a base dos ensinamentos fosse comum, como se as distinções inexistissem ou fossem extremamente secundárias.
A premissa básica do documento "Evangélicos e Católicos Juntos" é que a evangelização de católicos é algo indesejável e não recomendável, uma vez que a verdadeira fé e prática cristã devem já estar presentes na Igreja de Roma. Em sua essência, esse documento é a grande evidência do esquecimento da Reforma do Século XVI e do que ela representou e representa para a verdadeira igreja de Cristo.
Algum evangélico poderia argumentar, "mas isso é coisa de americano, não atinge o nosso país!" Ledo engano! A conhecida e prestigiada Revista Ultimato trouxe em suas páginas, no número de setembro de 1996, artigos e depoimentos, advindos do campo evangélico conservador, refletindo basicamente a mesma compreensão do documento "Evangélicos e Católicos Juntos," ou seja: as distinções com relação à Igreja de Roma seriam secundárias e não essenciais.
Tal situação reflete pelo menos uma crassa ignorância da doutrina católica romana. Por exemplo, os canônes 9 e 10 do Concílio de Trento, escritos no auge da Contra-Reforma mas nunca ab-rogados até os dias de hoje, dizem o seguinte:
Cânon 9: Se alguém disser que o pecador é justificado somente pela fé, querendo dizer que nada coopera com a fé para a obtenção da graça da justificação; e se alguém disser que as pessoas não são preparadas e predispostas pela ação de sua própria vontadeque seja maldito.
Cânon 11: Se alguém disser que os homens são justificados unicamente pela imputação da justiça de Cristo ou unicamente pela remissão dos seus pecados, excluindo a graça e amor que são derramados em seus corações pelo Espírito Santo, e que permanece neles; ou se alguém disser que a graça pela qual somos justificados reflete somente a vontade de Deusque seja maldito.11
Estas declarações, ou melhor, maldições, foram pronunciadas contra os protestantes. Elas atingem o cerne da doutrina da justificação somente pela fé. São afirmações contra a defesa inabalável da soberania de Deus na salvação, proclamada pela Reforma do Século XVI, e continuam fazendo parte dos ensinamentos da Igreja Católica.
A visão distorcida do evangelho e da evangelização, no campo católico romano, não é algo que data apenas da era medieval. Veja-se esta declaração extraída da encíclica papal "O Evangelho da Vida," escrita e divulgada à Igreja em 1995: "O Evangelho é a proclamação de que Jesus possui um relacionamento singular com todas as pessoas. Isso faz com que vejamos em cada face humana a face de Cristo."12 Certamente teríamos que chamar esta visão do evangelho de universalismo e declará-la contrária à fé cristã histórica.
Perante esse emaranhado de opiniões tão diferenciadas, perante o testemunho e o registro implacável da história, perante a crise de identidade, de doutrina e de prática litúrgica que nossas igrejas atravessam, qual deve ser a nossa compreensão da Reforma?
Nosso apreço pela Reforma e suas doutrinas não deve levar-nos a uma visão utópica e idealista com relação aos seus personagens principais. Devemos reconhecer os seus feitos, mas também as suas limitações. É na compreensão da falibilidade humana que detectamos a mão soberana de Deus empreendendo os seus propósitos na história. Vejamos alguns pontos que valem a pena ser recordados:
As 95 Teses de Lutero13 realmente representaram um marco e um ponto de partida para a recuperação das sãs doutrinas. Entre as teses encontramos expressões de compreensão dos ensinamentos da Bíblia, como por exemplo na Tese 62 ("O verdadeiro tesouro da Igreja é o sacrossanto Evangelho da glória e da graça de Deus") e na Tese 94 ("Os cristãos devem ser exortados a seguir a Cristo, a sua cabeça, com diligência "). Entretanto, devemos reconhecer que elas estão longe de serem, em sua totalidade, expressões precisas da verdadeira fé cristã. Elas registram, na realidade, o início do pensamento de Lutero, que seria trabalhado e refinado por Deus ao longo de seus estudos e experiências posteriores. Vejamos os seguintes exemplos:
Além disso, verificamos que resquícios do romanismo se fizeram presentes na formulação da Igreja Luterana, principalmente na sua estrutura hierárquica e na compreensão quase católica dos elementos da Ceia do Senhor. Possivelmente também poderíamos dizer que na Reforma encontramos individualismo em excesso e falta de unidade entre irmãos de mesma persuasão teológica (principalmente nas interações dos luteranos com Zuínglio e Calvino). Mas, com todas essas limitações, os reformadores foram poderosamente utilizados por Deus na preservação das suas verdades.
Não podemos compreender a Reforma se acharmos que Lutero liderou uma revolta contra pessoas, contra padres corruptos, apenas. A ação de Lutero foi uma revolta contra uma estrutura errada e uma doutrina errada de uma igreja que distorcia a salvação. Não foi um movimento sociológico: ele não pretendia ensinar a salvação do homem pela reforma da sociedade, mas compreendia que a sociedade era reformada pelas ações do homem resgatado por Deus. Na realidade, a Reforma do Século XVI foi um grande reavivamento espiritual operado por Deus, que começou com uma experiência pessoal de conversão.
As 95 Teses representam coragem, despreendimento e uma preocupação legítima com o estado decadente da igreja e com a procura dos verdadeiros ensinamentos da Palavra. Mas é um erro acharmos que a Reforma marca o surgimento de várias doutrinas nunca dantes formuladas. A Palavra de Deus, cujas doutrinas estavam soterradas sob o entulho da tradição, é que foi resgatada. Uma das características comuns das seitas é a apresentação de supostas verdades que nunca haviam sido compreendidas, até a sua revelação a algum líder. Essas "verdades" passam a ser determinantes da interpretação das demais e ponto central dos ensinamentos empreendidos. A Reforma coloca-se em completa oposição a esta característica. Nenhum dos reformadores declarou ter "descoberto" qualquer verdade oculta, mas eles tão somente apresentaram em toda singeleza os ensinamentos das Escrituras. Seus comentários e controvérsias versaram sempre sobre a clara exposição da Palavra de Deus.
Mais uma vez, Martin Lloyd-Jones nos indica "que a maior lição que a Reforma Protestante tem a nos ensinar é justamente que o segredo do sucesso, na esfera da Igreja e das coisas do Espírito, é olhar para trás."15 Lutero e Calvino, diz ele, "foram descobrindo que estiveram redescobrindo o que Agostinho já tinha descoberto e que eles tinham esquecido."16
As mensagens proclamadas pela Reforma continuam sendo pertinentes aos nossos dias. Da mesma forma como as Escrituras são sempre atuais e representam a vontade de Deus ao homem, em todas as ocasiões, a Reforma, com suas mensagens extraídas e baseadas nessas Escrituras, transborda em atualidade para a cena contemporânea da igreja evangélica. Vejamos apenas alguns pontos pregados pelos Reformadores e a sua aplicação presente:
A venda das indulgências mostra como o conceito do pecado estava distorcido na época da Reforma do Século XVI. A igreja medieval e, principalmente, as ações de Tetzel, fugiram totalmente à visão bíblica de que pecado é uma transgressão da Lei de Deus e qualquer falta de conformidade com seus padrões de justiça e santidade. A essência do pecado foi banalizada ao ponto de se acreditar que o seu resgate podia se efetivar pelo dinheiro. É fácil vermos as implicações que a falta de um conceito bíblico de pecado tem para outras doutrinas chaves da fé cristã. Por exemplo: se o resgate é em função da soma de dinheiro paga, como fica a expiação de Cristo, qual a necessidade dela? Ao se insurgir contra as indulgências Lutero estava, na realidade, reapresentando a mensagem da Palavra de Deus sobre o homem, seu estado, suas responsabilidades perante o Deus Santo e Criador, e sua necessidade de redenção.
Hoje esses conceitos estão cada vez mais ausentes da doutrina da igreja contemporânea. A mensagem da Reforma continua necessária aos nossos dias. Estamos nos acostumando a ouvir que todas as ações são legítimas; que pecado é uma conceito relativo e ultrapassado; que o que importa é a felicidade pessoal e não a observância de princípios. Mesmo nos meios evangélicos existe grande falta de discernimento há uma preocupação muito maior em encontrar justificativas, explicações e racionalizações do que com a convicção de pecado e o arrependimento.
A Igreja Católica havia distorcido o conceito da salvação, pregando abertamente que a justificação se processava por intermédio das boas obras de cada fiel. Lendo a Palavra, Lutero verificou quão distanciada esta pregação estava das verdades bíblicas a salvação era uma graça concedida mediante a fé. Todo o trabalho vem de Deus. As boas obras não fornecem a base para a salvação, mas são evidências e sub-produtos de uma salvação que procede da infinita misericórdia de Deus para com o homem pecador que ele arranca da perdição do pecado.
Hoje estamos novamente perdendo essa compreensão a mensagem da Reforma é necessária. A justificação pela fé continua sendo esquecida e procura-se a justificação pelas obras. Muitas vezes prega-se e procura-se a justificação perante Deus através do envolvimento em ações de cunho social.
A justificação pela fé está sendo, ultimamente, considerada até um ponto secundário, mesmo no campo evangélico, partindo-se para trabalhos de ampla cooperação, como base de fé e de unidade, como vimos no pensamento expresso pelo documento já referido: Evangélicos e Católicos Juntos.
Na ocasião da Reforma, a tradição da igreja já havia se incorporado aos padrões determinantes de comportamento e doutrina e, na realidade, já havia superado as prescrições das Escrituras. A Bíblia era conservada distante e afastada da compreensão dos devotos. Era considerada um livro só para os entendidos, obscuro e até perigoso para as massas. Os reformadores redescobriram e levantaram bem alto o único padrão de fé e prática: a Palavra de Deus, e por este padrão aferiram tanto as autoridades como as práticas religiosas em vigor.
Hoje o mundo está sem um padrão. Mas não é somente o mundo: a própria igreja evangélica está voltando a enterrar o seu padrão em meio a um entulho místico pseudo-espiritual a mensagem da Reforma continua necessária.
Sabemos que nas pessoas sem Deus imperam o subjetivismo e o existencialismo. A única regra de prática existente parece ser: "Comamos e bebamos porque amanhã morreremos." Verificamos que nas seitas existe uma multiplicidade de padrões. Livros e escritos são apresentados como se a sua autoridade fosse igual ou até superior à da Bíblia. A cena comum é a apresentação de novas revelações, geralmente de natureza escatológica e com características fluidas, contraditórias e totalmente duvidosas.
No meio eclesiástico liberal, já nos acostumamos a identificar o ataque constante à veracidade das Escrituras. Já vamos com mais de dois séculos de contestação sistemática da Palavra de Deus, como se a fé cristã verdadeira fosse capaz de subsistir sem o seu alicerce principal.
Mas é no campo evangélico que somos perturbados com os últimos ataques à Bíblia como regra inerrante de fé e prática. Ultimamente muitos chamados intelectuais têm questionado a doutrina que coloca a Bíblia como um livro inspirado, livre de erro. Podemos tomar como exemplo o caso do Fuller Theological Seminary. Esta famosa instituição evangélica foi fundada em 1947 sobre princípios corretos. Logo após o seu início, formulou-se uma declaração de fé que especificava: " os livros do Velho Testamento e do Novo Testamento , nos originais, são inspirados plenariamente e livres de erro, no todo e em suas partes " Entretanto, em 1968, o filho do fundador, Daniel Fuller, que havia estudado sob Karl Barth, começou a questionar a inerrância da Bíblia, fazendo distinção entre trechos "revelativos" e trechos "não revelativos" das Escrituras. Foi seguido nessa posição pelo presidente, David Hubbard, e por vários outros professores, todos considerados evangélicos.17 Logicamente não há critério coerente ou legítimo para fazer essa distinção. Subtrai-se da igreja o seu padrão, derruba-se um dos pilares da Reforma, e a igreja é retroagida a uma condição medieval de dependência dos especialistas que nos dirão quais as partes em que devemos crer realmente e quais as que devemos descartar como mera invenção humana.
No campo evangélico neopentecostal, a suficiência da Palavra de Deus é desconsiderada e substituída pelas supostas "novas revelações," que passam a ser determinantes das doutrinas e práticas do povo de Deus.
Em seu Capítulo I, Seção II, a Confissão de Fé de Westminster apresenta a mensagem inequívoca da Reforma do Século XVI, cada vez mais válida para os nossos dias. Ali a Bíblia é descrita como sendo a "regra de fé e de prática."
O sacerdócio individual do crente foi uma outra doutrina resgatada. Ela apresenta a pessoa de Cristo como único mediador entre Deus e os homens, concedendo a cada salvo "acesso direto ao trono" por intermédio do sacrifício de Cristo na cruz e pela operação do Espírito Santo no "homem interior."18 O ensinamento bíblico, transmitido pela Reforma, eliminava os vários intermediários que haviam surgido ao longo dos séculos entre o Deus que salva e o pecador redimido. Na ocasião, esse era um ensinamento totalmente estranho à Igreja de Roma, que sempre se apresentou como tendo a palavra final de autoridade e interpretação das Escrituras.
Lutero rebelou-se contra o véu de obscuridade que a Igreja lançava sobre as verdades espirituais e levou os fiéis de volta ao trono da graça. Isso proporcionou uma abertura providencial no conhecimento teológico e religioso. Lutero sabia disso, mas também sabia que o acesso a Deus deveria estar fundamentado nas verdades da Bíblia, tanto assim que um de seus primeiros esforços, após a quebra com a Igreja Romana, foi a tradução da Palavra de Deus para a língua falada em seu país: o alemão.
O ensinamento do sacerdócio individual do crente foi o grande responsável pelo estudo aprofundado das Escrituras e pela disseminação da fé reformada. Levados a proceder como os bereanos,19 os crentes verificaram que não dependiam do clero para o entendimento e aplicação dos preceitos de Deus e passaram a penetrar com determinação nas doutrinas cristãs.
A mensagem da Reforma continua sendo necessária hoje. A igreja contemporânea está multiplicando-se em quantidade de adeptos, mas é uma multiplicação estranha porque é acompanhada de uma preguiça mental quanto ao estudo. Parece que fomos todos tomados de anorexia espiritual, pois nos contentamos com muito pouco, nos achamos mestres sem estudar, nos concentramos na periferia e não no cerne das doutrinas, e ficamos felizes com o recebimento só do "leite" e não da "carne."
A mensagem da Reforma é necessária para que não venhamos a testemunhar a consolidação de toda uma geração de "cristãos analfabetos." Em vez de procurarmos coisas "enlatadas" e de deixar que apenas formas de entretenimento povoem nossas mentes e corações, devemos lembrar-nos constantemente da importância de "guardar a palavra no coração."
Precisamos nos aperceber de que o conteúdo da Palavra de Deus é verdade proposicional objetiva. Mas essa objetividade tem que ser acompanhada do nosso estudo e da nossa capacidade de compreensão, sob a iluminação do Espírito Santo, e da aplicação coerente dos ensinamentos dessa Palavra em nossas vidas.
Na ocasião da Reforma, as expressões de religiosidade tinham se tornado totalmente centralizadas no homem. Isso ocorreu principalmente pela grande influência de Tomás de Aquino na sistematização do pensamento católico romano. Abraçando as idéias de Pelágio, Aquino enfatizou fortemente o livre arbítrio do ser humano, desconsiderando a gravidade da escravidão ao pecado que o torna incapaz de escolher o bem, a não ser que a ele seja direcionado por Deus. Lutero reconheceu que a salvação se constituía em algo mais que uma mera convicção intelectual. Era, na realidade, um milagre da parte de Deus e por isso ele tanto pregou como escreveu sobre "a prisão do arbítrio." Costumamos atribuir a cristalização das doutrinas relacionadas com a soberania de Deus a João Calvino apenas, mas o ensinamento bíblico de Lutero traz, com não menor veemência, uma teologia teocêntrica na qual Deus reina soberanamente em todos os sentidos.
Hoje, a mensagem continua a ser necessária, pois o homem, e não Deus, permanece no centro das atenções. Mesmo dentro dos círculos evangélicos, nossa evangelização é efetivada tendo a felicidade do homem como alvo principal, e não a glória de Deus. Até a nossa liturgia é desenvolvida em torno de algo que nos faça "sentir bem," e não com o objetivo maior da glorificação a Deus. Nesse aspecto, deveríamos estar atentos à mensagem de Amós, que nos ensina (Am 4.4-5) que Deus não se impressiona com uma liturgia que não é direcionada a ele.20 Nesse trecho vemos que a adoração realizada em Betel21 e Gilgal22 tinha várias características dos cultos contemporâneos:
1. Os locais eram suntuosos e famosos (Betel possuía belas fontes no topo da montanha).
2. A periodicidade dos cultos e possivelmente a freqüência era exemplar (reuniam-se diariamente).
3. As contribuições eram generosas, superando até os padrões de Deus (de três em três dias traziam as ofertas).
4. O louvor era abundante (sacrifícios de louvor eram ofertados; Am 5.23 e 6.5 também fala do estrépito dos cânticos e da transbordante música instrumental).
5. Havia bastante publicidade (as ofertas eram divulgadas e apregoadas).
6. Havia alegria e deleite geral nos trabalhos ("disso gostais," diz o profeta).
O resultado de toda essa adoração centralizada no homem foi a mão pesada de Deus em julgamento sobre aquela sociedade insensível (com aquele culto, as pessoas, dizia o profeta, "multiplicavam as suas transgressões"). Realmente, à semelhança da Reforma, precisamos resgatar a pregação da soberania de Deus e demonstrar essa doutrina na prática de nossas vidas e na de nossas igrejas.
Devemos reconhecer a Reforma como um movimento operado por homens falíveis, mas poderosamente utilizados pelo Espírito Santo de Deus para resgatar suas verdades e preservar a sua igreja. Não devemos endeusar os reformadores nem a Reforma, mas não podemos deixá-la esquecida e nem deixar de proclamar a sua mensagem, que reflete o ensinamento da Palavra de Deus aos dias de hoje. A natureza humana continua a mesma, submersa em pecado. Os problemas e situações tendem a repetir-se, até no seio da igreja. O Deus da Reforma fala ao mundo hoje, com a mesma mensagem eterna. Devemos, em oração e temor, ter a coragem de proclamá-la à nossa igreja.
__________________________
1 D. M. Lloyd-Jones, Rememorando a Reforma (São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1994) 2-5.
2 O Rev. Sabatini Lalli compila várias dessas distorções em seu livro Lutero: Cinco Séculos Depois (São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1983) 4-5.
3 Plínio Corrêa de Oliveira, Folha de São Paulo (10.01.1984), 2. O autor cita uma carta de Lutero a Melanchton para provar o seu ponto, na qual Lutero reclama da sua preguiça. Provavelmente as colocações expressam o profundo sentimento de incapacidade perante as grandes tarefas que confrontam os cristãos verdadeiros e responsáveis. O autor parece desconhecer que enquanto Lutero se entregava "ao ócio e à moleza," como diz, ele entre outras coisas traduziu a Bíblia em sua totalidade.
4 Jornal de BrasíliaCaderno Internacional (10.11.1983), 11, e Isto É (09.11.1983), 37.
5 Time (24.03.1967), citado por Dr. Allen A. MacRae em Luther and the Reformation (New York: American Council of Christian Churches, 1967) 2.
6 MacRae, Luther and the Reformation, 2.
7 Ibid.
8 Time (24.03.1967), citado em The Christian News (N. Haven: Lutheran News, 1983); (27.06.1983), 18.
9 Reconhecemos que algumas dessas ações possuem validade moral, como, por exemplo, levantar a voz conjunta da sociedade contra o crime do aborto, contra a promiscuidade defendida pelos meios de comunicação, etc.
10 O cristão que " experimentou a conversão " deve ser " continuamente respeitado... em sua decisão acerca de compromisso e participação comunitária " Também, " os que são convertidos devem receber plena liberdade e respeito para analisar e decidir em que comunidade irão viver a sua nova vida em Cristo."
11 Transcritos no Western Reformed Seminary Journal 2/2 (verão 1995) 15.
12 Encíclica Evangelium Vitae, pt. 81.
13 O texto completo das 95 teses em inglês pode ser obtido através da Internet, no seguinte endereço: http://www.bibleclass.com/lib/95.htm.
14 Termo utilizado na igreja desde Orígenes (Escola de Alexandria), atacado por Nestório no quinto século, mas aprovado e acolhido pelos Concílios de Éfeso (431) e Calcedônia (451). Posteriormente, a Igreja Católica veio a distorcer o significado de "Mãe de Deus" em vez de representar uma defesa da divindade de Cristo, o termo passou a expressar uma situação privilegiada de Maria em poder e essência, como objeto próprio de adoração e fonte de poder.
15 Lloyd-Jones, Rememorando a Reforma, 8.
16 Ibid.
17 Harold Lindsell, The Battle for the Bible (Grand Rapids: Zondervan, 1976) 106-121. Exemplos de outros autores famosos (considerados evangélicos) que questionam a inerrância: Paul K. Jewett e George Eldon Ladd.
18 Ef 2.18 e 3.16.
19 At 17.11.
20 Várias mensagens expositivas sobre os alertas de Amós, e a sua aplicabilidade aos nossos dias, têm sido proferidas pelo Rev. Dr. Augustus Nicodemus Lopes (1995-1997), das quais alguns destes pontos foram extraídos.
21 Betel (casa de Deus): cidade em Samaria, lugar de adoração dos cananeus (El, Baal). Contrasta com o templo dos judeus, chamado de Beth Yaweh, a casa de Jeová.
22 Gilgal: existem várias na Bíblia (pelo menos seis). Esta deve ser a de Js 4.19, Jz 2.1 e 3.19, que ficava perto de Jericó, chegando a abrigar a arca do concerto (Js 18.1). Outros acham que seria a de 2 Rs 2.1-4. Saul utilizou a primeira como base de operações contra os amalequitas. Os 12.11 indica que virou local de sacrifícios. Etimologicamente, pode ter seu significado ligado a um "círculo de pedras."