O Sábado no Antigo Testamento:
Tempo para o Senhor, Tempo de Alegria Nele (II)
Gerard Van Groningen*
No presente artigo,
damos prosseguimento à reflexão sobre o Sábado no Antigo Testamento iniciada no
número anterior de Fides Reformata.
Na primeira parte, vimos os seguintes pontos: o autor da carta aos Hebreus faz
importantes afirmações sobre o repouso sabático oferecido por Deus ao seu povo
(caps. 3-4). Esse repouso tem seu fundamento no próprio descanso usufruído por
Deus ao término da sua criação, foi experimentado pelos primeiros seres humanos
entre a criação e a queda e foi tipificado pela entrada dos israelitas na terra
prometida. Jesus Cristo torna a realidade desse descanso acessível ao ser
humano, mas o pleno descanso de Deus somente será desfrutado na consumação de
todas as coisas. Embora toda a Escritura fale do descanso sabático de Deus, no
presente estudo nos concentramos nos ensinos do Antigo Testamento acerca do
assunto.
Em seguida, fizemos
algumas considerações preliminares sobre o tema, destacando a unidade da
mensagem bíblica, a necessidade de um conceito adequado de revelação e a
importância de uma abordagem condizente com o caráter dessa revelação. No ponto
seguinte, foram definidos alguns termos básicos como “sábado”, “repouso” e “sete,”
discutindo-se a seguir a relação entre as festas judaicas e o sábado, a origem
do sábado e o seu desenvolvimento histórico. O último tópico procurou mostrar a
conexão existente entre a criação e o sábado, demonstrando que o repouso
sabático é uma instituição permanente que visa propiciar ao ser humano uma
ocasião especial e alegre de culto e comunhão com o seu Criador.
Em continuação,
observemos ainda alguns pontos fundamentais para a nossa compreensão do sábado.
V. O Sábado e a Lei Moral
A lei freqüentemente
é mencionada como a razão básica para a guarda do sábado cristão na era do Novo
Testamento. Esse fato tem causado muitos conflitos e divisões. A culpa dessa
situação não deve ser colocada na lei como tal. Antes, as dificuldades resultam
de uma interpretação errônea da lei, de isolar-se essa lei dos pactos da
criação e da graça, limitando-a exclusivamente ao pacto sinaítico (mosaico),
e/ou de considerar-se a lei como absoluta em sua apresentação literal no Antigo
Testamento.
Todos nós sabemos
que, em sua essência, a lei de Deus é mais abrangente do que está descrito no
Decálogo (“dez palavras”). Todavia, Jesus diz que a lei pode ser resumida em
menos de dez expressões. Ele usou somente uma palavra: amor. Esse amor deve ser expresso de maneira adequada. Deus
auxiliou graciosamente o ser humano pecador. Essa graça foi demonstrada de modo
particular à nação teocrática de Israel. Algumas normas básicas para a vida de
amor foram formuladas explicitamente, ou seja, no Decálogo. Isso não significa
que essas normas tornaram-se a lei de
Deus quando foram formuladas. De modo nenhum, pois a vontade de Deus já era
conhecida antes disso. Somos informados que Abraão obedeceu a Deus pela guarda
de seus mandados, preceitos, estatutos e leis (Gn 26.5). A desobediência à autoridade,
o assassinato, o roubo e o adultério são mencionados como razões básicas para a
necessidade do sangue. Tem havido tentativas de encontrar-se afirmações
explícitas no Gênesis em que cada um dos Dez Mandamentos seja mencionado direta
ou indiretamente. Essa busca não é frutífera, não mais que a busca da origem
dos sacrifícios.
O propósito da
promulgação da lei moral no Sinai não foi legalizar, regular de maneira
estrita, amarrar e confinar a vida da nação teocrática. A sua própria essência,
o amor, que Moisés acentuou repetidamente no livro do Deuteronômio, é uma prova
concreta desse fato. A lei foi o gracioso auxílio de Deus ao ser humano. Israel
teve o grande privilégio de contar com a assistência específica de Deus.
Resgatada do Egito, tomada por Deus como sua noiva espiritual (Êx 19.3-6), a
ser usada para a salvação de pessoas de todas as nações, a nação de Israel
tinha grande necessidade de normas explicitamente reveladas sobre como
relacionar-se com seu noivo santo e perfeito. Israel havia estado na
escravidão, sob pesado jugo de trabalho opressor, e não tivera a liberdade de
regular a sua própria vida. Israel havia testemunhado o desprezo dos egípcios
para com Deus na forma do culto à lua e ao rio Nilo. Havia testemunhado
trágicos abusos de autoridade, a morte gratuita de seus filhos (por exemplo,
recém-nascidos e escravos espancados) e o adultério. Sem dúvida, a
sensibilidade de Israel havia se embotado. A consciência moral tanto dos
adultos quanto dos jovens fora maculada, distorcida e deformada pelo contexto
em que haviam vivido.
Assim, quando
repentina e miraculosamente foi redimido da escravidão, quando repentinamente
tornou-se um povo livre, não mais sujeito aos açoites dos capatazes e aos
guardas que o vigiavam a cada momento, Israel precisou muito de um auxílio
gracioso. Como povo de Deus, Israel tinha de servir a Deus como seu parceiro.
Assim sendo, Deus concedeu alguns elementos básicos e essenciais da sua vontade
para regular e guiar a vida de Israel. Esses elementos da sua vontade não eram
regras temporárias. Eles eram e são a expressão da vontade eterna de Deus para
o ser humano. É importante repetir que foi um privilégio para Israel receber a
expressão da vontade de Deus. Foi um verdadeiro privilégio espiritual
amoldar-se à vontade de Deus. Todavia, não devemos esquecer que o privilégio
trouxe consigo responsabilidades e obrigações. Isso Israel também precisava
aprender.
A forma em que a
lei foi dada reflete a situação histórica de Israel e também a sua situação
moral. Um povo que havia estado debaixo da tirania, e agora via-se repentinamente livre, tinha de aprender a viver como um
povo privilegiado. Daí a ênfase nas obrigações e responsabilidades. A forma
negativa da maior parte dos mandamentos também se explica em parte pelas
circunstâncias históricas, assim como pelas inclinações pecaminosas de toda a
humanidade.
Os mandamentos foram dirigidos especificamente a
Israel. Mas isso não limita a lei moral a Israel, como alegam alguns. Israel
tinha um papel vicário; devia viver diante de Deus, porém como um transmissor
de sua vontade e salvação a pessoas de todas as nações. A vontade de Deus é
para todos os seres humanos. A lei moral, quer os homens a conheçam ou não,
mesmo que tenham desenvolvido costumes contrários a ela (por exemplo, os caçadores
de cabeças), não diminui a universalidade da lei.
Os mandamentos
também foram formulados em termos da história de Israel. Considerem-se alguns
exemplos. O segundo mandamento fala em imagens de coisas que estão acima da
terra, na terra e debaixo da terra. Muitos estudiosos insistem que isso reflete
uma cosmovisão antiga e primitiva. É possível. Um fato que podemos aceitar com
naturalidade é que, se o segundo mandamento tivesse de ser promulgado nesta era
de aviões supersônicos, naves espaciais e armas nucleares, certamente seriam
empregados diferentes termos e referenciais. Considere-se o quinto mandamento.
Nele encontramos referências à terra de Canaã que o Senhor iria dar em
possessão a Israel. No décimo mandamento, as referências a cobiçar esposa e
casa certamente são relevantes para os nossos dias. Porém, para quantos milhões
de habitantes de cidades, assim como modernos fazendeiros que possuem frotas de
tratores e caminhões, a referência ao boi e ao jumento, animais de carga e de
viagem, tem qualquer relevância específica? Sim, na essência, na intenção, a
realidade da lei não é alterada. A vontade de Deus permanece a mesma para todos
os aspectos da sua criação.
Permitam-me fazer
referência a um incidente ocorrido durante a minha adolescência, na década de
1930. Nosso vizinho, descendente de franceses e muito incrédulo, tinha quatro
cavalos jovens, fortes e bonitos para preparar sua fazenda de 40 hectares para
o plantio da primavera. Meu pai também tinha 40 hectares para preparar a cada
primavera, mas somente dispunha de um precário conjunto de quatro cavalos mais
velhos. Certo dia de primavera, depois que nossa fazenda estava toda plantada,
conversamos com nosso vizinho francês, que ainda precisava de mais dois ou três
dias de trabalho para terminar o seu plantio. Num tom queixoso, ele disse ao
meu pai: “Você, holandês, sempre termina o plantio antes de mim. Eu tenho
cavalos mais jovens e fortes e trabalho sete dias por semana. Explique-me por
que você termina primeiro.” Meu pai sorriu e disse: “Nós trabalhamos cinco dias
e meio por semana. Sábado à tarde limpamos e escovamos os cavalos velhos e no
domingo os deixamos descansar. Eles sempre estão revigorados na segunda-feira.
Os seus cavalos nunca estão descansados e revigorados.”
Esta foi uma
introdução um tanto extensa ao quarto mandamento, que é a nossa principal
preocupação. Sem dúvida, o contexto geral da lei explica certos elementos desse
mandamento que têm causado dificuldades para muitas pessoas. As referências do
mandamento a servos e servas, bois e jumentos podem não ser particularmente
relevantes na vida moderna, não mais que no décimo mandamento. Mas a ênfase, a
mensagem relativa à vontade de Deus, não é diferente!
Os dois principais
problemas que o quarto mandamento nos apresenta hoje são a referência enfática
ao sétimo dia e a forte proibição de
todo trabalho. Quanto ao problema do sétimo
dia, é importante lembrar os tempos do Antigo Testamento aos quais já nos
referimos.1 O ciclo do tempo era visto em termos de seis dias de trabalho e um
dia de culto, seguindo o padrão de regulamentação do tempo estabelecido por
Deus na criação. A obra recriadora de Deus ainda não havia chegado àquele
estágio em que o padrão de regulamentação deveria ser a ressurreição e o
Pentecoste, os grandes eventos que assinalaram antecipadamente a perfeição da
obra recriadora. Israel ainda tinha que aguardar o túmulo vazio e os céus
abertos no Pentecoste. Ao atravessar o ciclo do tempo, Israel tinha somente o
modelo criador original para seguir.
O fato importante é
que a ênfase tanto de Êxodo 20.8 quanto de Deuteronômio 5.122 está posta no dia de Sábado, e não no sétimo.
O sábado deve ser lembrado e adequadamente observado segundo a vontade de Deus.
O dia santo, dia de Deus, deve ser uma pausa na seqüência das atividades
diárias. Como povo escravo, Israel não tivera a oportunidade de fazer isso. No
deserto, provavelmente era muito difícil fazê-lo, em todos os sentidos.
Todavia, Deus insistiu em que Israel utilizasse esse privilégio e que o fizesse
de acordo com a época pactual em que vivia e servia a Deus. A ordenança e o
tema da criação estavam presentes de modo predominante. Assim, o fato de que o
sétimo dia é mencionado como o dia do sábado não torna necessariamente o sétimo dia em um dia a ser observado
por todas as pessoas de todas as épocas. Todavia, as referências à criação e ao
ciclo estabelecido certamente mostram que o mínimo que se pode dizer é que Deus
acentuou que um sétimo do tempo do homem é tempo de Deus. É um tempo para o
culto, tempo para as pessoas terem comunhão com o seu Deus. Essa adesão ao
padrão de tempo estabelecido por Deus estava no âmago da vida religiosa do ser
humano. Deus exigiu que a humanidade
expressasse de maneira específica o seu amor pelo Deus criador/redentor. O amor
requer tempo para ser expresso adequadamente.
A ênfase positiva
do quarto mandamento é que o ser humano deve lembrar e observar esse padrão
definido estabelecido por Deus e usar o tempo para as finalidades que Deus
mesmo determinou. O fato de que a ênfase não deve ser colocada no sétimo dia como tal é mostrado de modo
especialmente claro no Novo Testamento, onde lemos de pessoas que observavam o
ciclo e seguiam o padrão, guardando um dia em sete para terem comunhão com
Deus. Todavia, elas o faziam no dia que assinalou os eventos do triunfo da obra
recriadora de Deus.
Ainda precisamos
mencionar o forte aspecto negativo deste mandamento. Há uma ênfase muito clara
no fato de que o ser humano não devia realizar nenhum trabalho físico ou
ocupar-se de suas atividades diárias. Ele devia afastar-se tanto do controle
direto do seu trabalho quanto da participação no mesmo. Ele devia repousar dos
seus labores e liberar-se dos mesmos. Estes não deviam embaraçá-lo, envolvê-lo,
ser um fardo e um problema. Diz-se antropomorficamente que Deus descansou (nu’ach). O termo em si não significa
ociosidade, inatividade completa. Significa parar de fazer alguma coisa, ficar
livre da mesma. Humanamente falando, isso pode ser dito de Deus em relação à
sua obra criadora.
Até que ponto o
homem devia repousar dos seus labores? Ele não devia tornar-se indolente, ficar
sem fazer absolutamente nada. Antes, devia ficar livre da rotina do seu
trabalho diário em todos os seus diferentes aspectos. Além disso, quaisquer
aspectos da vida diária ligados ao sábado deviam, se possível, ser tratados nos
seis dias de trabalho. O Senhor foi enfático nesse ponto, no início da história
do povo teocrático. Antes de o quarto mandamento ser promulgado formalmente, o
Senhor instruiu o seu povo libertado a observar o padrão de tempo
regulamentado. Ele os ajudou de modo muito específico. Ele reteve o maná no
sábado (Êx 16). Israel não devia ocupar-se indevidamente com o problema do
alimento quando tinha o privilégio de afastar-se do labor diário e ocupar-se de
seus exercícios espirituais. Assim, o Senhor instruiu graciosamente o seu povo
da maneira mais prática possível.
Em Números
15.32-36, lemos de um homem que saiu a apanhar lenha no sábado. Os líderes
sabiam que o homem havia transgredido a vontade de Deus quanto ao sábado. Ele havia
tido seis dias para apanhar lenha. Eles não sabiam o que fazer nesse caso. O
homem tinha que morrer? (Ver Êx 31.14). O Senhor revelou a Moisés e a seus
auxiliares que esse ato aparentemente sem importância — apanhar lenha —, foi
todavia um desafio premeditado e calculado da vontade expressa de Deus. No
mesmo capítulo, lemos sobre pecados praticados involuntariamente. Quanto a
estes, podia-se oferecer sacrifícios e receber o perdão. Porém, para pecados
graves, isto é, calculados, premeditados e planejados, não havia sacrifícios. O
pecador tinha de fazer um sacrifício oferecendo a sua própria vida. Esse pecado
deliberado é exemplificado pelo homem que apanhou lenha no dia de sábado.
Convém destacar
aqui que, em todos os casos de pecado premeditado contra um dos Dez
Mandamentos, sobre os quais lemos no Antigo Testamento, não se exigia que as
pessoas dessem a sua vida. Davi planejou friamente e cuidadosamente o
assassinato de Urias após ter conscientemente chamado Bate-Seba e cometido
adultério com ela. No Salmo 51, Davi confessa o seu pecado de assassinato. Nos
versículos 17 a 19, ele admite não ter sacrifícios que possam agradar a Deus.
Mas ele não perde a sua vida física. Porém, mesmo assim ele faz um sacrifício
verdadeiro, seu espírito quebrantado e coração contrito. Certamente esse foi um
sacrifício aceitável. Assim, vemos a graça do Novo Testamento atuando
claramente no Antigo Testamento. Vemos que na época do Antigo Testamento não
havia um legalismo rígido. A essência da lei era o mais importante. Predominava
a ênfase espiritual da lei. Todavia, o homem que apanhou lenha no dia de
sábado, que foi aprisionado mas não parece ter demonstrado arrependimento, que
viveu e deliberadamente pecou nos estágios iniciais da vida teocrática da
nação, tinha de perder a sua vida por transgredir a lei. Ele recusou-se a
experimentar os privilégios espirituais que era obrigado a aceitar.
Quando consultamos
o Antigo Testamento, podemos compilar uma interessante lista de deveres
praticados e de atividades proibidas. A propósito, não lemos sobre limitações
definidas impostas a todos os tipos de viagens e ao socorro dos enfermos. Além
dos incidentes do maná e da lenha, encontramos as seguintes proibições:
trabalhar no dia de sábado na época da aradura e da colheita (Êx 34.21);
acender fogo nas moradias (Êx 35.3); viajar ou cuidar dos próprios interesses
no santo dia de Deus; seguir os próprios caminhos, fazer a própria vontade e
falar palavras vãs (Is 58.13); transportar cargas a negócio ou para o sustento
diário no sábado; introduzir cargas pelas portas de Jerusalém; tirar cargas da
própria casa (Jr 17.21-22); e fazer quaisquer transações comerciais (Am 8.5).
Em Neemias 13.15-22, lemos sobre as exortações gerais de Neemias no sentido de
não permitir que os estrangeiros façam vinho, transportem produtos agrícolas e
os vendam na cidade de Jerusalém.
As atividades ou
deveres realizados no dia de sábado eram muito variados (o fato de serem
mencionados não significa que eram permitidos, mas também não há o registro de
objeções): (a) Sacrifícios eram trazidos no sábado, o que envolvia transportar,
abater, acender o fogo (Nm 28.9-10; Ez 46.1-4). (b) Os pães da proposição eram
trocados. Isto é particularmente interessante em vista da proibição de
recolhimento do maná. (c) Os guardas do palácio estavam em serviço e eram
mudados regularmente (2 Rs 11.5-8). (d) As pessoas viajavam para ouvir a
Palavra da parte dos profetas (2 Rs 4.23) e viajavam ao templo para o culto (2
Rs 11.5-8; Ez 45.6ss).
O estudo cuidadoso
da aplicação do quarto mandamento torna claro a todos que não havia uma
aplicação rígida e legalista da lei. Ao mesmo tempo, o desprezo do mandamento
ou, mais especificamente, do sábado, não era ignorado. Ezequiel lembra a Israel
que a sua contínua transgressão do sábado no deserto foi um ato de profanação
(Ez 20.13). Esse pecado é colocado em uma categoria especial em distinção a
outras ordenanças. No capítulo 22.8, lemos sobre a queixa de Deus contra Israel
no exílio: vocês desprezaram as minhas coisas santas e profanaram os meus sábados.
Ezequiel afirma categoricamente que ao profanar o sábado de Deus Israel
profanou a Deus entre as nações (22.26). Assim, a queixa de Deus contra Israel
não foi pelo fato de que o povo transgrediu ocasionalmente um preceito, de que
ele não observou rigidamente um detalhado sistema legal, mas pelo fato de que
Israel recusou-se considerar como o Senhor havia se envolvido no ciclo do tempo
de maneira que o seu povo pudesse ter comunhão com ele. Deus havia separado
aquele tempo, santificando-o para o culto. Mas Israel transformou-o em um tempo
comum, usou esse tempo para o seu proveito e prazer pessoal. Assim, Deus foi
profanado.
Isaías é específico
ao mostrar como Israel, ao observar a forma exterior do mandamento, todavia não
satisfez o seu requisito espiritual. Ouçam como Deus rejeitou a guarda do
sábado por parte de Israel, os seus sacrifícios e o seu culto: “Quando vindes
para comparecer perante mim, quem vos requereu o só pisardes os meus átrios?
Não continueis a trazer ofertas vãs... as festas da lua nova, os sábados...;
não posso suportar iniqüidade associada ao ajuntamento solene... a minha alma
as aborrece; já me são pesadas; estou cansado de as sofrer” (Is 1.12-14). As
mãos de Israel estavam cheias de sangue. A opressão dos pobres e a exploração dos
órfãos e das viúvas anulavam todos os atos externos e formais de observância do
sábado, dos sacrifícios e das assembléias de culto. O que as pessoas haviam
feito do sábado foi inteiramente rejeitado, sim, até mesmo o próprio sábado,
por causa daqueles que se recusavam a honrar, amar e servir ao Senhor do sábado
com amor verdadeiro e consagração espiritual.
Vemos que Deus
sempre exigiu uma atitude profundamente espiritual em relação ao sábado, o
tempo para o culto e a comunhão alegre. Essa era a ênfase da lei. Para ajudar
Israel a alcançar a bênção desse grande privilégio, Deus insistiu que as
pessoas o imitassem quanto ao ciclo do tempo e a distribuição do trabalho.
Assim, os seres humanos realizariam o ideal de Deus. A glorificação do trabalho
semanal por parte de Deus não seria vantajosa para a ênfase espiritual da
vontade divina. Sim, o trabalho diário consagrado e santificado seria durante
seis dias uma barreira entre o Criador e a sua criatura, quando fosse hora de
comunhão espiritual pessoal e íntima. O ser humano devia desvencilhar-se tanto
quanto possível daquilo que impedia uma comunhão verdadeiramente espiritual, um
momento de culto realmente alegre.
Existe outro fator
que devemos abordar rapidamente nesta seção sobre a lei e o sábado. Em Êxodo
20, há uma referência à criação ao se estabelecer o privilégio e a obrigação do
culto. Recordemos que vimos como foi suprida a comunhão espiritual entre Deus e
o ser humano. Isso propiciou o contexto salvífico depois que o pecado maculou a
criação. Ao apresentar a lei a Israel, Deus colocou-a no contexto da libertação
do Egito com sua escravidão, servidão e morte. Depois, toda a lei foi colocada
em um contexto de redenção. O êxodo de Israel do Egito é o grande tipo do êxodo
da humanidade para longe do pecado. A gratidão por essa libertação, tanto da
parte de Israel quanto da humanidade em geral, deve motivar reverência pela
vontade de Deus e obediência à mesma.
Em Deuteronômio 5
vemos reiterada essa referência à libertação, não somente no prólogo, mas
substituindo a referência à criação no quarto mandamento. É verdade que essa
referência deuteronômica contém um elemento humanitário e social, mas a ênfase,
que muitos estudiosos ignoram, está em “o Senhor, teu Deus, te tirou dali com
mão poderosa e braço estendido; pelo que o Senhor, teu Deus, te ordenou que
guardasses o dia de sábado” (5.15b). Você percebe a mudança que ocorreu aqui? A
ênfase transferiu-se para a obra recriadora de Deus, parte da qual foi a
libertação de Israel do Egito. O sábado de Israel deve tornar-se uma
comemoração de sua libertação divina do cativeiro egípcio. Assim sendo, a
guarda do sábado por Israel recebe uma nova perspectiva que irá tornar-se a
ênfase do Novo Testamento.
Isso nos leva à
terceira razão dada no Antigo Testamento para o sábado de Deus. Por uma questão
de brevidade, utilizaremos a expressão encontrada em Êxodo 31 e Ezequiel 20 — o
sinal da aliança.
VI. O Sinal da Aliança
Normalmente, quando
lemos sobre os sinais da aliança, pensamos nos sacramentos. O sábado nunca foi
um sacramento. Todavia, ele está relacionado mais intimamente com a aliança do
que qualquer outro dos elementos enfatizados no Decálogo. Além disso, em
Hebreus 3 e 4 o sábado está relacionado com a grande obra redentora de Deus,
especialmente com o alvo e o resultado dessa obra, o repouso sabático de Deus.
Não podemos abordar
aqui a idéia, a intenção, as partes e as condições da aliança, nem as
distinções entre as alianças do Antigo e do Novo Testamento.3 Entendemos a aliança como sendo o ato
divino e abrangente do Deus Soberano pelo qual ele estabeleceu unilateralmente
um vínculo de amor e vida com o portador da sua imagem e com o ser humano
pecador após a queda, no qual salvação, vida eterna e bênçãos gloriosas são
prometidas e seladas para o ser humano que está no caminho da fé e da
obediência. Esse pacto eterno e gracioso teve uma administração especificamente
temporária no Antigo Testamento, que já se encerrou. No entanto, essa
administração inicial encerrou-se quando os seus propósitos se cumpriram no
desenvolvimento da aliança eterna.
Lemos em Êxodo
31.16-17 que o sábado deve ser uma aliança perpétua, por todas as gerações,
entre Deus e Israel. Quando se afirma que ele é um sinal4 perpétuo entre Deus e Israel, as pessoas
têm entendido isso como uma referência à administração mosaica da aliança.
Ezequiel, ao recapitular a história de Israel, lembrou aos exilados da
Babilônia que Deus havia poupado a Israel no deserto quando este profanou os
seus sábados e o coração do povo voltou-se para os ídolos (20.16-17). O profeta
continuou a narrativa referindo-se aos apelos de Deus no sentido de que Israel
não se corrompesse, mas andasse nos seus estatutos, guardasse os seus juízos e
santificasse os seus sábados, para que servissem de sinal entre ele e Israel,
“para que saibais que eu sou o Senhor, vosso Deus” (20.18-20).
Sem dúvida, vemos
uma referência ao relacionamento específico entre Deus e o Israel do Antigo
Testamento. A guarda dos sábados era de suprema importância para a manutenção
de relacionamentos espirituais adequados. Porém, o relacionamento aludido em
ambos os exemplos é mais profundo e mais abrangente do que entendemos que o
relacionamento nacional ou mesmo o teocrático-governamental deveria ser. O
elemento predominante é o relacionamento espiritual profundamente duradouro,
que é a essência da aliança eterna e é fundamental para a administração
sinaítica da aliança. Esse é o único sentido possível da expressão enfática “eu
sou o Senhor, vosso Deus” (20.20).
Vemos a mesma idéia
expressa em Êxodo 31. Faz-se referência à guarda apropriada do sábado depois
que Deus deu a Moisés instruções detalhadas acerca do tabernáculo, do
sacerdócio e de outros elementos relacionados ao culto de Israel. Moisés devia
dizer ao povo: “Certamente, guardareis os meus sábados; pois é sinal entre mim
e vós nas vossas gerações; para que saibais que eu sou o Senhor, que vos
santifica” (31.13). Essa santificação tem a conotação espiritual de libertação,
purificação e preservação do pecado. Esse não é simplesmente um conceito do
pacto mosaico, e sim um elemento integral da aliança eterna.
Quando consideramos
diferentes pontos discutidos em seções anteriores, como, por exemplo, a viva
comunhão que devia ser desfrutada no sábado abençoado e santificado (Gn 2.3), e
os aspectos recreativos que repetidamente vêm à tona no estabelecimento das
leis relativas ao sábado, compreendemos que está inteiramente de acordo com a
analogia da fé apresentada nas Escrituras ver o sábado como um sinal, uma
evidência e uma prova da vinda de Deus ao ser humano para libertá-lo do seu
pecado e para restabelecer a comunhão entre Deus e o homem. Também vale lembrar
que é no sábado que esse companheirismo e essa viva comunhão entre Deus e o ser
humano devem ser usufruídos de modo especial.
No
contexto pactual da ordenança da criação que é o sábado e na inclusão do sábado
na lei, vemos o significado profundo e duradouro do sábado, o dia do Senhor
Deus, o dia estabelecido por ele para uma viva comunhão com o ser humano. Nesse
contexto, tornam-se claras as palavras de Jeremias 17.19-27. Em uma leitura
casual, Jeremias parece sugerir uma justiça derivada de obras, mais
especificamente a salvação pela guarda do sábado. O profeta fala em termos
comuns à sua situação histórica, mas isso não esconde a ameaça de destruição
espiritual em meio à convulsão e à ruína nacional e social. Ele afirma que a
salvação — física, nacional, social e espiritual — depende de se santificar “o
dia de sábado, como ordenei a vossos pais” (v. 22), “se, deveras, me
ouvirdes... e santificardes o dia de sábado” (v. 24), então haverá a garantia
de vida, prosperidade e libertação. “Mas, se não me ouvirdes, e por isso não
santificardes o dia de sábado, e carregardes alguma carga... então, acenderei
fogo nas suas portas” (v. 27) e virá plena destruição.
Nesse texto,
Jeremias simplesmente toma uma parte em lugar do todo. Ele não descreve cada
etapa que o povo da aliança deve cumprir para alcançar as promessas da aliança
eterna revelada a Adão, Noé, Abraão e patriarcas posteriores. Todavia, um dos
mandamentos da lei moral é utilizado para indicar todo o modo de vida da
aliança. Por que Deus usa o sábado dessa maneira, através de Jeremias? Porque o
sábado está relacionado de modo muito profundo com o vínculo pactual vivo que
existe entre Deus e o seu povo. Esperamos ter tornado isso claro anteriormente.
Neste momento, basta acentuar enfaticamente que a melhor maneira pela qual
Jeremias poderia apresentar a vida positiva
e redimida de fé e obediência seria pela alusão à guarda do dia no qual a doce
comunhão com Deus devia ser repetidamente experimentada e usufruída.
Concluindo esta
seção, vemos como certos fatores específicos como o sábado são utilizados para
apresentar os fatos eternos e assegurados da vida espiritual. Ninguém pode
negar que o sábado, em sua forma veterotestamentária, desempenhou um papel
primordial na aliança mosaica. Assim foi por causa da sua inclusão em todo o
drama do relacionamento do ser humano com Deus, antes da queda e no contexto da
aliança eterna. De fato, assim foi porque o sábado pode, melhor do que qualquer
outra coisa, falar tão bem a um Israel imaturo e pecador acerca do repouso
duradouro de Deus, o alvo e o resultado da eterna aliança, o refúgio para todos
os pecadores aflitos e cansados.5
Assim sendo, como
um sinal da aliança, o significado redentor que Deus atribuiu ao sábado
torna-se mais claro. O sábado continuou a ser uma ordenança da criação, uma
parte integral do padrão de tempo regulado, estabelecido para a comunhão entre
Deus e o ser humano. O sábado continuou a ser um aspecto integral da lei moral,
mas assim foi por causa do seu significado para a redenção eterna do ser humano
caído que foi soberanamente escolhido para entrar no eterno repouso sabático de
Deus.
VII. O Sábado, Um Dia Para o Culto
Temos acentuado o
significado redentor do dia de sábado. Nesse contexto, podemos ver facilmente
por que o sábado era um dia de culto. Todavia, não devemos esquecer que o
sábado foi destinado para o culto desde o próprio início da história. Ele era o
tempo de comunhão alegre e feliz. O pecado destruiu essa comunhão, mas Deus
manteve o seu dia para o contentamento de sua obra criada e como um alvo
colocado diante do ser humano decaído. Assim, o homem pode continuar a
desfrutar do sábado. Ele falava da recriação, assim como da criação. Ele falava
da vida, a vida de amor com Deus. Ele falava de alegria eterna e bendita paz.
Nas seções que
tratam da criação, da lei e do sinal da aliança, apresentamos o contexto básico
do sábado como dia de culto. Foi mostrado claramente que esse era o seu primeiro
grande propósito, o descanso do trabalho sendo um meio para esse fim. O uso do
sábado como um modo de provar a Israel encaixa-se nesse contexto. Resta-nos
observar como as Escrituras do Antigo Testamento apresentam o propósito de
adoração na instituição do sábado.
Em primeiro lugar,
podemos considerar o fato de que os sacrifícios deviam ser trazidos no sábado.
Quando estudamos Números 8 e Levítico 1–6, vemos que esses sacrifícios não
foram enfatizados de maneira especial como símbolos e “meios” de confissão de
pecados, mas foram concebidos para expressar consagração a Deus, bem como
gratidão e alegria no Senhor. É verdade que os israelitas foram exortados a
afligir as suas almas em um sábado solene (Lv 16.29,31), mas isso devia ser
feito no Dia da Expiação. Israel foi exortado a confessar o seu pecado. A
oferta pelo pecado e a oferta pela transgressão podiam ser trazidas em qualquer
dia. Mas no sábado predominavam os sacrifícios de consagração, gratidão e
comunhão alegre.
Lemos que Salomão
prescreveu esses sacrifícios de gratidão e louvor quando o templo foi concluído
e dedicado para o culto a Deus (1 Cr 23.31; 2 Cr 2.4). Vemos que a idéia de
culto também estava presente quando Israel reunia-se no templo no sábado, na
época dos reis (2 Rs 11.16).
Na história da
mulher rica de Suném cujo filho morreu, observamos que o sábado era um dia no
qual Israel buscava o profeta para ouvir a palavra do Senhor (2 Rs 4.23).
Novamente, esse é um contexto geral de festividade e culto, pois o sábado está
relacionado com a festa da lua nova, que certamente era um evento alegre e
prazeroso, uma ocasião para banquetes e comunhão (1 Sm 20.18-29). De fato, é
importante mencionar que a maior parte das referências ao sábado no Antigo
Testamento ocorrem no contexto do culto, da comunhão de Deus com o ser humano e
da resposta deste a Deus.
Esse dia de culto
devia ser um dia de alegria e celebração. Os comentaristas e mestres judeus têm
dado muita ênfase a esse fato. Em seu livro bastante informativo acerca do
judaísmo, H. Wouk fez uma descrição muito detalhada do propósito alegre e do
caráter festivo do sábado do Antigo Testamento. Joy Davidman, uma autora
cristã-judia,6 discute o quarto mandamento sob o título “Dia de Regozijo.” Essa
era a nota dominante que Deus pretendia para o dia de sábado. Ele devia ser um
dia festivo. Devia ser um antegozo alegre e agradável da gloriosa festa do céu.
Isaías exalta esse caráter festivo do sábado do Senhor dizendo que os
estrangeiros que se chegam ao Senhor, o eunuco, todos os que guardam o sábado,
não profanando o nome de Deus, e abraçam a sua aliança (observe-se a conexão
entre sábado, nome e aliança), entrarão no santo monte de Deus e se alegrarão na casa de oração... a casa de
oração para todos os povos (Is 56.1-12). Os elementos redentores da aliança
eterna são apresentados de modo claro e direto. Todos os povos haverão de
participar da alegria dessa redenção ao guardarem a aliança e o sábado do
Senhor.
O elemento de
alegria no contexto festivo é indicado por Oséias até mesmo no meio de sua advertência
de destruição iminente, quando ele diz, como porta-voz de Deus: “Farei cessar
todo o seu gozo, as suas festas de lua nova, os seus sábados” (Os 2.11). É
evidente que todas as festas, aí incluídos os sábados, eram dias de regozijo.
Ezequiel descreve a
gloriosa consumação e o eterno repouso de Deus ao falar palavras de consolo,
ânimo, paz e alegria aos exilados da Babilônia que choravam a queda da sua
cidade natal, Jerusalém (ver Ez 33.21-22 e Ez 47 – 48). Os capítulos 44 – 46
falam das festas preparadas pelos sacerdotes para serem celebradas nos dias de
festas e nos sábados. De fato, Isaías admoesta o povo a tornar o sábado uma
ocasião alegre e festiva; ele o conclama a tornar o sábado um dia mui
prazeroso, mas na comunhão com o Senhor (Is 58.13).
O salmista entendeu
a verdadeira intenção e o espírito do sábado do Senhor. O Salmo 92 é
especificamente identificado como um “Cântico para o dia de sábado.” O cântico
começa com uma nota de louvor: “Bom é render graças ao Senhor e cantar louvores
ao teu nome, ó Altíssimo” (v. 1). O salmista canta como é bom declarar o amor e
a fidelidade de Deus. Enquanto o salmista considera o Deus criador e
restaurador (redentor, fiel, amoroso), ele canta no sábado: “Pois me alegraste,
Senhor, com os teus feitos; exultarei nas obras das tuas mãos” (v. 4).
Certamente é notável que neste salmo para o sábado, neste cântico de alegria e
contentamento, tanto a obra criadora quanto a obra restauradora de Deus sejam
exaltadas. Isso é feito no contexto de uma comunhão viva entre Deus e o pecador
redimido. Outros salmos, embora não sejam identificados especificamente como
salmos sabáticos, claramente indicam que são salmos de culto, salmos para o
sábado. Vejam-se os salmos que encontramos no contexto do Salmo 92, por
exemplo, os de nº 89, 90, 91, 93, 95 e 100.
Duas
coisas precisam ser colocadas no seu contexto apropriado aqui. A proibição do
trabalho visava fortalecer essa alegria no Senhor. As pessoas não podiam
celebrar diante do Senhor enquanto estivessem ocupadas com o trabalho diário,
que também o glorifica. Como acontece com as crianças nos nossos dias, Israel
tinha de aprender como poderia alegrar-se no Senhor da melhor maneira possível.
A ordem de repousar do trabalho era um chamado à alegria e ao contentamento.
Todavia, é bom lembrar que o chamado para o repouso não significava que se
devia negligenciar os animais e o próximo, ou mesmo o próprio corpo. Antes,
esse chamado visava aprimorar o bem-estar físico de todos, assim como o seu
bem-estar espiritual. Nós não vamos entrar na discussão do bem-estar físico
como uma bênção adicional derivada da guarda de um sábado alegre e festivo. O
que afirmamos é que essa bênção está disponível para aqueles que
verdadeiramente guardam o sábado do Senhor. Nesse contexto, pode ser útil
mencionar a distinção que os autores judeus fazem quanto ao trabalho no dia de
sábado. O trabalho criador e produtivo deve ser evitado, mas as obras de
manutenção e restauração (até certo ponto) nunca são proibidas pelo Senhor.
Isto certamente pode ser um guia útil para os cristãos na sociedade
contemporânea, que tanto carecem da alegria e contentamento da comunhão com
Deus.
O segundo fator que
devemos colocar numa perspectiva adequada são os aparentes apelos e exigências,
particularmente de alguns profetas (por exemplo, Jeremias 17 e Neemias 9.14;
10.31-33; 13.15-22), no sentido de tornar o sábado um dia de restrições. Esses
apelos e ordens devem ser vistos no contexto de suas circunstâncias históricas.
Israel estava fingindo guardar o sábado ou simplesmente o estava ignorando.
Isso exigiu advertências severas e algumas proibições estritas, que, em
circunstâncias normais, poderiam ser consideradas como em desarmonia com o
verdadeiro caráter e intenção do sábado. Assim, como lemos diversas vezes, o
sábado também tornou-se um meio para testar Israel.
Essas sérias
advertências possibilitaram que os líderes do povo judeu após a época de
Malaquias, Esdras e Neemias tornassem cada vez mais estritas as regras
referentes ao sábado. À medida que as regras tornaram-se mais rigorosas, a
alegria diminuiu. À medida que as leis aumentaram, o verdadeiro descanso
tornou-se impossível. Assim, certas circunstâncias trágicas da história de
Israel resultaram em um trágico desdobramento na história do sábado.7 Quando Jesus entrou em cena, a verdadeira
intenção e o caráter alegre da festa da criação e da redenção estavam
suprimidos de modo tão pleno que ele desafiou abertamente os líderes de Israel
com respeito à atitude dos mesmos quanto ao sábado. Jesus viveu e agiu segundo
o verdadeiro espírito veterotestamentário do sábado. Ele afirmou o seu senhorio
sobre o mesmo. Ele declarou que o sábado foi feito por causa do homem, sim,
para o supremo bem do ser humano, para que este pudesse usufruir da comunhão e
do repouso de Deus. Assim, quando Jesus viu o povo oprimido por leis humanas,
ele bradou das profundezas do seu coração cheio de simpatia: “Vinde a mim... e
eu vos aliviarei” (Mt 11.28). Desse modo, Jesus não estava ab-rogando o sábado,
mas colocando-o novamente na perspectiva adequada. Da mesma maneira devem ser
interpretados os escritos de Paulo aos gálatas (cap. 4) e aos colossenses (cap.
2).
VIII. O Sábado é Somente uma Instituição
do
antigo Testamento?
R. de Vaux escreve:
“Jesus reivindicou que ‘o Filho do homem é senhor também do sábado’ (Mc 2.28);
portanto, ele podia abolir o sábado, e de fato o fez, pois a Nova Aliança que
ele trouxe ab-rogou a Antiga Aliança, da qual o sábado era um sinal.”8
Certamente,
existem muitos estudiosos que concordam com esse autor quando ele afirma: “O domingo
cristão não é em nenhum sentido uma continuação do sábado judeu.” A mudança do
dia, do sétimo para o primeiro, é a única evidência que ele apresenta. Enquanto
isso, de Vaux ignora o aspecto criacional e o seu significado, e não faz
qualquer referência à lei moral e à sua contínua autoridade. Além disso, ele
traça uma forte distinção entre a Velha Aliança mosaica e a Nova Aliança. A
cruz de Cristo é vista como algo que divide, não que une. Ele não vê a continuidade do pacto básico,
eterno, da graça e da redenção, que se constitui no fundamento e fornece os
elementos básicos de cada aliança. De Vaux
não faz justiça ao verdadeiro caráter e ao espírito de alegria e prazer do
sábado do Antigo Testamento como um dia de culto. Na seção de onde foram
tiradas as citações acima, de Vaux trata, em grande parte, do que o povo judeu,
especialmente os teólogos (escribas, fariseus e rabis), haviam feito do sábado,
e certamente concordamos que todos os acréscimos, aplicações e transformações
humanas do sábado foram anulados por nosso Senhor Jesus Cristo.
Na realidade,
Jesus, se não em palavras, pelo menos em atos, tornou inúteis para a era do
Novo Testamento as formas do sábado calcadas na Velha Aliança. Como dissemos,
alguns elementos foram removidos. Os sacrifícios prescritos para o sábado foram
ab-rogados. Não mais havia a necessidade de derramar o sangue de cordeiros. O
sangue do Cordeiro havia sido derramado. Muitas das proibições restritivas
foram despidas da sua autoridade mosaica. Assim, muitas coisas ditas acerca do
sábado, as prescrições para o sábado que eram sombras e símbolos, foram
deixadas sem efeito por Cristo. Porém, como o senhor do sábado, ele declarou
que o mesmo foi feito por causa do homem. Ele próprio participou fielmente do
culto no sábado; ele participou da comunhão dos santos. Pela pregação do
evangelho, ele introduziu os elementos positivos de consolo, esperança, paz e
alegria (ver Lc 4.14ss). Os cristãos do Novo Testamento, ao acharem esse
consolo, esperança, paz e alegria no evangelho do Senhor Jesus, responderam
espontaneamente buscando a comunhão do seu Senhor. Eles fizeram isso sem uma
ordem direta (se o silêncio significa isso). Eles consideraram um privilégio
buscar uma comunhão viva e íntima com o seu Senhor amoroso e redentor. E eles seguiram
naturalmente o ciclo de tempo estabelecido por Deus, aderindo ao padrão do
ordenamento divino do tempo. Eles não seguiram o padrão dos romanos. Ele não
adotaram o primeiro dia do ciclo de nove dias dos romanos como o seu dia de
alegre comunhão e culto. Não, eles aderiram ao padrão estabelecido por Deus. E
provaram que eram seguidores do Senhor Jesus ao guardarem um dia dos sete como
um santo dia de comunhão e culto, esse dia sendo o primeiro dos sete para
comemorar especificamente os grandes eventos da obra restauradora de Deus.
Em contraste com o
sábado, podemos apontar para os sacrifícios que foram ab-rogados pela morte de
Cristo e por injunções específicas na Epístola aos Hebreus. Não há uma
declaração específica quanto à origem dos sacrifícios e a lei moral não contém
nenhuma referência a eles. Eles não foram postos como um sinal da aliança. Eles
eram auxílios para o culto no período de sombras e símbolos. O relato bíblico
acerca do sábado é inteiramente diferente. É verdade que, numa era de sombras e
símbolos, alguns destes foram ligados ao sábado visando instruir, provar e
transformar o povo escolhido de Deus em um instrumento apto para o serviço.
De
Vaux prontamente declara: “No entanto, o domingo simboliza o cumprimento de
promessas prefiguradas pelo sábado.” Isso é verdade, mas muito mais devia ser
dito. De Vaux afirma que “as promessas de Deus são cumpridas na pessoa de
Cristo, e não em uma instituição.” Isso também é muito correto. Todavia, o erro
de de Vaux está em aceitar a idéia de que o sábado originou-se com os judeus e
para os judeus, e terminou com a administração mosaica da aliança. Além disso,
ele é confuso quanto à intenção e ao caráter concreto do sábado, como fica
evidente ao colocar o sábado e Jesus Cristo como alternativas.
Não podemos aceitar a conclusão de de Vaux com respeito ao sábado porque o vemos como uma instituição divina sustentada pela lei moral e como um sinal, uma prova daquele pacto de redenção através do qual temos eterna paz e alegria na comunhão e culto ao nosso Senhor, que nos promete entrada no seu sábado eterno.
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* Gerard Van Groningen tem mestrado em Velho
Testamento pelo Westminster Theological Seminary, em Filadélfia, e doutorado em
Velho Testamento pela Universidade de Melbourne, Austrália. Durante 30 anos
lecionou Velho Testamento em instituições teológicas ao redor do mundo.
Escreveu vários livros, dos quais dois estão traduzidos para o
português: Revelação Messiânica do Velho Testamento (Luz para o Caminho) e A
Família da Aliança (Editora Cultura Cristã).
1 Ver a primeira parte deste artigo em Fides Reformata 3/2 (Jul-Dez 1998), 156-59.
2 Não iremos discutir a questão de qual dos dois relatos é anterior. A nossa convicção é que o relato do Deuteronômio é posterior. Em Deuteronômio 5.12, o uso do termo guardar, bem como a referência à ordem do Senhor Deus, acentuam o fato de que os israelitas tinham a lei diante de si.
3 G. Vos, em Biblical Theology (Grand Rapids: Eerdmans, 1985), apresenta ótimas reflexões sobre esses pontos. Ver também O. Palmer Robertson, O Cristo dos Pactos (Campinas: Luz Para o Caminho, 1997); William J. Dumbrell, Covenant and Creation (Nova York: Thomas Nelson, 1984); G. Van Groningen, Revelação Messiânica no Velho Testamento (Campinas: Luz Para o Caminho, 1995) e From Creation to Consummation (Sioux Center: Dordt Press, 1997).
4 Recomendamos que os leitores consultem comentários confiáveis sobre as passagens aqui discutidas. Haverá diferentes opiniões e explicações sobre determinados pontos. Todavia, o que expomos neste ensaio está basicamente de acordo com a posição da maior parte dos comentaristas. Via de regra, os comentários são muito sucintos e não apresentam de modo completo a explanação e as implicações das passagens.
5 Kuyper, Tractaat van de Sabbat, 46ss, discute à sua própria maneira o sinal da Aliança. Ele tem muita coisa valiosa a oferecer-nos. Ver também Alfred Edersheim, Bible History, vol. I, 125.
6 Joy Davidman, Smoke on the Mountain (Filadélfia: Westminster, 1985).
7 Diversos autores tem apresentado a história do sábado e apontado o desdobramento ocorrido nos tempos neotestamentários.
8 de Vaux, Ancient Israel, 983.
English Abstract
This article continues the previous one with the same title, which appeared in last issue of Fides Reformata. Van Groningen starts by dealing with the relationship between the sabbath and the moral law. The main reason given for Christians to observe the sabbath in the New Testament, which is the moral Law, brings much conflict and tension because it results from a defective interpretation of the Law and a separation between the covenant of creation and grace from the Sinaitic covenant. Next, the author tackles the issue of the sabbath as a sign of the covenant and as the day for joyous fellowship with God and worship to him. Van Groningen concludes his article by addressing the question wether the sabbath is only an Old Testament institution. In this section, the author examines and refutes R. de Vaux’s concept that the Christian sabbath is in no way a continuation of the Jewish sabbath.