Os Reformadores e a Lei
–Semelhanças e Diferenças
Alderi Souza de Matos
Introdução.
Um elemento que certamente influenciou o pensamento tanto de Lutero quanto
de Calvino acerca da lei foram as suas diferentes experiências de vida e
de fé. Martinho Lutero (1483-1546) era um monge agostiniano
há doze anos quando iniciou a obra da reforma. Até então
ele praticara uma espiritualidade ascética, rigorosa, legalista, na
tentativa de agradar a Deus e ser aceito por ele. Deus era visto como um ser
justiceiro, implacável e irado. A compreensão da verdade
bíblica da justificação somente pela fé teve um
efeito libertador. Isso talvez explique a atitude um tanto negativa de Lutero em
relação à lei.
João Calvino (1509-1564), por outro lado, era um humanista, e
não um sacerdote. Ele não teve nenhuma crise espiritual profunda
ou experiência dramática de conversão. Na realidade, a
única coisa que ele disse certa vez sobre a sua experiência
é que ela havia sido uma "conversão repentina." Por outro lado,
durante três anos ele estudou Direito em Orléans e Bourges
(1528-31). Mas certamente a razão principal do seu interesse pela lei foi
a sua profunda consciência da realidade da soberania de Deus, e da sua
santa vontade.
1. Lutero e a Lei.
A dialética entre lei e evangelho é ponto focal da
teologia de Lutero, sem a qual não podemos entender suas idéias
acerca de temas como justificação, predestinação e
ética. O principal contraste que Lutero vê dentro da Escritura
não é entre os dois testamentos, mas entre lei e evangelho. Embora
exista mais lei que evangelho no Antigo Testamento e mais evangelho do que lei
no Novo Testamento, não se pode simplesmente identificar o Antigo
Testamento com a lei, nem o Novo com o evangelho. Ao contrário, o
evangelho também está presente no Antigo Testamento, assim como a
lei ainda pode ser ouvida no Novo Testamento. Na realidade, a diferença
que existe entre lei e evangelho está relacionada com duas
funções que a Palavra de Deus exerce no coração do
crente, e assim a mesma Palavra pode ser lei ou evangelho, dependendo da maneira
como fala ao crente.
A lei é a vontade de Deus, que se manifesta na lei natural,
conhecida por todos; nas instituições civis – tais como o
estado e a família – que expressam essa lei natural; e na
declaração positiva da vontade de Deus na sua
revelação. A lei tem duas funções básicas:
(a) como lei civil, ela refreia os ímpios e proporciona a ordem
necessária tanto para a vida social quanto para a
proclamação do evangelho; (b) com lei "teológica,"
ele desvenda ao ser humano a enormidade do seu pecado.
É nessa função teológica que a lei é
relevante para o entendimento da teologia de Lutero. A lei é a vontade de
Deus, mas quando essa lei é contrastada com a realidade humana ele se
torna uma palavra de condenação e suscita a ira de Deus. Em si
mesma, a lei é boa e agradável; todavia, depois da queda a
humanidade ficou incapaz de satisfazer a vontade de Deus, e assim a lei se
tornou para nós uma palavra de julgamento e ira. "Assim, a lei revela um
duplo mal, um interno e o outro externo. O primeiro, que nós causamos a
nós mesmos, é o pecado e a corrupção da natureza; o
segundo, que Deus causa, é a ira, a morte e a maldição"
(Contra Latomus, 3 – LW 32:224).
Colocando de outra maneira, a lei é o "não" divino
pronunciado contra nós e contra toda realização humana.
Embora a sua origem seja divina, ela pode ser usada tanto por Deus, conduzindo
as pessoas ao evangelho, como pelo diabo, conduzindo-as ao desespero e
ódio contra Deus. Isso se aplica não somente ao Antigo Testamento,
mas também ao Novo e até mesmo às palavras de Cristo. Isso
porque, se as pessoas não receberem o evangelho, as palavras de Cristo
permanecem como uma exigência ainda mais rigorosa à torturada
consciência humana. Em si mesma, a lei deixa os seres humanos numa
situação de desespero e, portanto, torna-os joguetes do diabo. "Em
meio à aflição e aos conflitos da consciência, o
diabo costuma amedrontar-nos com a Lei e dirigir contra nós a
consciência do pecado, nosso passado ímpio, a ira e o juízo
de Deus, o inferno e a morte eterna, a fim de que dessa maneira possa levar-nos
ao desespero, sujeitar-nos a si mesmo e arrancar-nos de Cristo"
(Preleções sobre Gálatas, 1535 – LW
26:10).
No entanto, a lei é também o meio pelo qual Deus nos conduz a
Cristo, pois quando ouvimos o "não" de Deus contra nós e contra os
nossos esforços, estamos prontos para ouvir o seu amoroso "sim,"
que é o evangelho. O evangelho não é uma nova
lei, algo que simplesmente esclareça as exigências de Deus quanto a
nós; não é um novo meio pelo qual podemos aplacar a ira de
Deus. É o "sim" imerecido que em Cristo Deus pronunciou sobre nós.
O evangelho liberta-nos da lei, não por capacitar-nos para cumprir a lei,
mas ao declará-la cumprida por nós. "O evangelho não
proclama nada mais que a salvação pela graça, dada ao homem
sem quaisquer obras e méritos" (Sermão, 19-10-1522 –
LW 51:112).
E todavia, mesmo dentro do evangelho e após termos ouvido e aceito a
palavra de graça da parte de Deus, a lei não é
inteiramente posta de lado. Embora justificados, somos ainda pecadores e a
palavra de Deus ainda nos mostra a nossa condição. A
diferença é que agora não precisamos nos desesperar, pois
sabemos que, a despeito da nossa miséria, Deus nos aceita. Assim, podemos
verdadeiramente nos arrepender dos nossos pecados sem tentar ocultá-los,
quer negando-os ou confiando em nossa própria natureza.
Isso nos leva ao conceito de Lutero sobre a justificação
– a imputação da justiça de Cristo. Se a
justificação não depende da nossa própria
justiça, mas da atribuição da justiça de Deus a
nós, o cristão é ao mesmo tempo justo e pecador ("simul
justus et peccator"). A justificação não significa que
somos tornados perfeitos ou que deixamos de pecar (Rm 7). Na sua vida terrena, o
cristão irá continuar a ser um pecador, mas um pecador justificado
e assim libertado da maldição da lei.
Isso não quer dizer que a justificação nada represente
para a vida concreta do cristão. Ao contrário, a
justificação é também a obra pela qual Deus,
além de declarar-nos justos, também nos faz viver de acordo com
esse decreto, conduzindo-nos à justiça. Portanto, "um homem que
é justificado ainda não é um homem justo, mas está
no próprio processo de mover-se em direção à
justiça" (Disputa Acerca da Justificação – LW
34:152). Assim é a vida cristã: uma peregrinação da
justiça para a justiça; da imputação inicial de
justiça por Deus até o tempo em que seremos de fato tornados
justos por Deus. Nessa peregrinação, as obras desempenham um papel
importante, como um sinal de que a fé verdadeira de fato foi recebida.
"Devemos confirmar a nossa posse da fé e do perdão dos pecados
mostrando as nossas obras" (O Sermão da Montanha, Mt 6.14-15
– LW 21:149-50).
É nesse ponto que a lei – especialmente o Decálogo e os
mandamentos do Novo Testamento – desempenham um novo papel na vida do
crente. A sua função civil, que é necessária para a
ordem da sociedade, ainda permanece. A sua função
"teológica", que é mostrar o nosso pecado, ainda é
necessária, pois o indivíduo justificado ainda é um
pecador. Mas agora o cristão se relaciona de maneira diferente com esse
aspecto da lei. "Porém, agora eu descubro que a Lei é preciosa e
boa, que ela me foi dada para a vida, e agora ela é agradável para
mim. Antes ela me dizia o que fazer; agora estou começando a moldar-me
aos seus apelos, de modo que agora eu louvo, engrandeço e sirvo a Deus.
Isso eu faço por meio de Cristo, porque nele creio. O Espírito
Santo entra em meu coração e gera em mim um espírito que se
compraz nas suas palavras e obras, mesmo quando ele me repreende e me sujeita
à cruz e à tentação" (Sermões sobre o
Evangelho de João – LW 22:144).
Assim, agora a lei tem uma função diferente, pois ela ao
mesmo tempo repreende os pecadores que os cristãos ainda são e
mostra-lhes o caminho a seguir no seu desejo de fazer o que é
agradável a Deus. A razão que levou Lutero a insistir nesse uso da
lei foi a afirmação feita por alguns entusiastas de que,
como tinham o Espírito, eles não mais estavam sujeitos aos
preceitos da lei. Lutero percebeu as conseqüências caóticas
que resultariam de tal asserção e por isso a corrigiu dizendo que,
embora o cristão não mais esteja sujeito à
maldição da lei, a lei ainda é uma expressão boa e
adequada da vontade de Deus. Isso diz respeito às leis morais expressas
em ambos os testamentos, as quais se harmonizam com a lei natural e o
princípio do amor, que é supremo no Novo Testamento.
2. Zuínglio e a Lei.
Como resultado de seu enfoque diferente da teologia, o entendimento de
Ulrico Zuínglio (1484-1531) acerca da lei e do evangelho não
é o mesmo que o de Lutero. A sua resposta à questão da
maneira pela qual a lei foi abolida, e do modo pelo qual ela ainda é
válida, é muito mais simples que a de Lutero, carecendo da
profundidade das idéias do reformador alemão. Zuínglio
começa fazendo uma distinção entre três tipos de
leis: a lei eterna de Deus, conforme expressa nos mandamentos morais; as
leis cerimoniais e as leis civis. As duas últimas não se
relacionam com essa questão, pois referem-se à pessoa exterior,
mas a questão de pecado e justiça tem a ver com a pessoa interior.
Portanto, somente as leis morais do Antigo Testamento devem ser consideradas e
elas de modo algum foram abolidas.
As leis civis dizem respeito a situações humanas
particulares. As leis cerimoniais foram dadas para a época
anterior a Cristo. Mas a lei moral expressa a eterna vontade de Deus e,
portanto, não pode ser abolida. O que aconteceu no Novo Testamento
é que a lei moral foi sintetizada no mandamento do amor. O evangelho e a
lei são essencialmente a mesma coisa. Portanto, aqueles que servem a
Cristo estão presos à lei do amor, que é a mesma que a lei
moral do Antigo Testamento e a lei natural escrita em todos os
corações. Assim, o primeiro ponto no qual Zuínglio
difere de Lutero nessa questão é a sua afirmação de
que a lei permanece e de que o evangelho de modo algum a contradiz.
O segundo ponto de divergência entre os dois reformadores com
referência à lei tem a ver com a sua avaliação da
mesma. Zuínglio não passou pela experiência de sentir-se
condenado pela lei, que foi tão decisiva para Lutero. Portanto, ele
não pode aceitar a afirmação de Lutero de que a lei
é terrível e que a sua função é pronunciar
sobre nós a palavra de juízo de Deus. É clara a
referência a Lutero quando Zuínglio afirma: "Em nossa época
algumas pessoas de grande importância, como elas imaginam, têm
falado sem a necessária circunspecção acerca da lei dizendo
que a mesma serve somente para aterrorizar, condenar e entregar ao tormento. Na
realidade, a lei não faz nada disso, mas, ao contrário, apresenta
a vontade e a natureza da Divindade" (Sermão, 20-08-1530 –
Lat. Zwingli 2:166).
Disso resulta o entendimento de Zuínglio acerca do evangelho,
que é semelhante em muitos aspectos e diferente em muitos aspectos do de
Lutero. Como Lutero, Zuínglio crê que o evangelho são as
boas novas de que os pecados são remidos em nome de Cristo. Como o
reformador alemão, ele afirma que esse perdão somente pode ser
recebido quando a pessoa está consciente da sua própria
miséria – embora ele atribua essa função ao
Espírito antes que à lei. Ele afirma: "Seria ridículo se
Aquele diante de quem está presente tudo o que jamais haverá,
tivesse determinado libertar o homem a um tão grande preço e no
entanto tivesse decidido permitir-lhe, imediatamente após a sua
libertação, chafurdar nos seus velhos pecados. Portanto, ele
proclama, desde o início, que a nossa vida e o nosso caráter devem
ser transformados" (Sobre a Verdadeira e a Falsa Religião –
Lat. Zwingli 3:119).
Portanto, em última análise, lei e evangelho são
praticamente a mesma coisa. Isso resulta logicamente do entendimento de
Zuínglio acerca da providência e da predestinação
divinas. A vontade de Deus é sempre a mesma e foi revelada na lei. Assim,
a função do evangelho é libertar-nos das
conseqüências de nossa transgressão da lei e capacitar-nos a
obedecê-la.
3. Calvino e a Lei.
Quando Calvino fala em "lei", ele geralmente dá a esse termo um
sentido diferente daquele dado por Lutero. Para ele, a lei não significa
o correlativo do evangelho, mas a revelação de Deus ao antigo
Israel, tanto nos "livros de Moisés" como em todo o Antigo Testamento.
Assim, a relação existente entre lei e evangelho, antes que
dialética, torna-se praticamente contínua. Existem
diferenças entre os dois testamentos, mas o seu conteúdo é
essencialmente o mesmo: Jesus Cristo. Isso é de importância
fundamental, pois o conhecimento da vontade de Deus seria inútil sem a
graça de Cristo.
A lei cerimonial tinha em Cristo o seu conteúdo e fim, pois sem ele
todas as cerimônias são vazias. A única razão pela
qual os sacrifícios dos sacerdotes antigos eram aceitáveis a Deus
era a prometida redenção em Jesus Cristo. Em si mesmos, dada a
nossa corrupção, quaisquer sacrifícios que
pudéssemos oferecer a Deus seriam inaceitáveis. Mas é na
lei moral que se pode ver mais claramente a continuidade que existe entre
o antigo e o novo. De fato, a lei moral tem um tríplice
propósito.
O primeiro propósito da lei – e aqui Calvino concorda
com Lutero – é mostrar-se o nosso pecado, miséria e
depravação (usus theologicus). Rm 3.20; 5.20. Quando vemos
na lei o que Deus requer de nós, ficamos face a face com as nossas
próprias deficiências. Isso não nos capacita a fazer a
vontade de Deus, mas nos força a deixar de confiar em nós mesmos e
a buscar o socorro e a graça de Deus (Institutas 2.7.6-9). A lei
é um espelho que mostra aos homens a sua verdadeira aparência aos
olhos de Deus, para que "despidos e vazios eles possam correr para a sua
misericórdia, repousar inteiramente nela, ocultar-se nela e apegar-se
somente a ela para obter a justiça e os méritos disponíveis
em Cristo para todos os que anelam e buscam essa misericórdia com
verdadeira fé. Nos preceitos da lei, Deus é galardoador somente da
perfeita justiça, e disso todos nós carecemos. Por outro lado, ele
é o Juiz severo de todos os pecados. Mas em Cristo a sua face brilha
plena de graça e suavidade mesmo para com pecadores miseráveis e
indignos" (Institutas 2.7.8).
O segundo propósito da lei é refrear os ímpios
(usus civilis; Institutas 2.7.10-11). 1 Tm 1.9-10. Embora isso
não leve à regeneração, é todavia
necessário para a ordem social. Como muitas pessoas obedecem à lei
movidas pelo temor, as ameaças que ela contém servem para
fortalecer essa função. Sob essa rubrica, a lei também
serve àqueles que, embora predestinados para a salvação,
ainda não se converteram. Ao forçá-los a atentar para a
vontade de Deus, ela os prepara para a graça à qual eles foram
predestinados. Assim, muitos que chegaram a conhecer a graça de Deus
testificam que antes da sua conversão sentiram-se compelidos a obedecer a
lei movidos pelo temor.
Finalmente, o terceiro uso da lei – tertium usus legis –
é revelar a vontade de Deus àqueles que crêem
(Institutas 2.7.12). Sl 19.7-8; 119.105. Essa é uma ênfase
que haveria de tornar-se típica da tradição reformada e que
lhe daria grande parte da sua austeridade em matéria de ética. O
próprio Calvino, com base nesse terceiro uso da lei, dedica uma extensa
seção das Institutas à exposição da
lei moral (Livro II, Cap. VIII). A sua afirmação básica
é que Cristo aboliu a maldição da lei, mas não a sua
validade. O erro do antinomianismo está em afirmar que, uma vez que Deus
aboliu em Cristo a maldição da lei, os cristãos não
mais estão obrigados pela lei. Na verdade, a lei não pode ser
abolida, pois ela expressa a vontade de Deus, que nunca muda. O que foi abolido,
além da maldição da lei moral, foi a lei cerimonial. A
razão para isso é clara: o propósito das antigas
cerimônias foi apontar para Cristo e isso não é mais
necessário um vez que a realidade plena já foi revelada.
O "terceiro uso da lei" significa que os cristãos devem estudar a
lei de modo cuidadoso, não somente como uma palavra de
condenação que continuamente os impele para a graça de
Deus, mas também como o fundamento para determinarem como devem ser as
suas ações. Nesse estudo e interpretação da lei,
três princípios fundamentais devem ser conservados em mente: (1)
Deus é espírito e por isso os seus mandamentos dizem respeito
tanto às ações externas quanto aos sentimentos
íntimos do coração. Isso é verdade quanto a toda a
lei e, portanto, o que Cristo faz no Sermão da Montanha é
simplesmente explicitar o que já estava implícito, e não
promulgar uma nova lei. A lei de Cristo não é outra senão a
lei de Moisés (Institutas 2.8.6-7). (2) Todo preceito é ao
mesmo tempo positivo e negativo, pois toda proibição implica em
uma ordem e vice-versa (Institutas 2.8.8-10). Assim, nada é
deixado de fora da lei de Deus. (3) O fato de que o Decálogo foi escrito
em duas tábuas mostra que a devoção e a justiça
devem caminhar de mãos dadas (Institutas 2.8.11). A primeira
tábua trata dos deveres para com Deus; a segunda diz respeito às
relações com o próximo. Assim, o fundamento da
justiça é o serviço a Deus e este é
impossível sem um relacionamento justo com as outras pessoas.
Portanto, existe uma continuidade fundamental entre o Antigo Testamento e o
Novo (Institutas 2.10; 3.17). Essencialmente, essa continuidade tem a ver
com o fato de que a vontade de Deus revelada no Antigo Testamento permanece
eternamente a mesma, com o fato adicional de que o âmago do Antigo
Testamento foi a promessa de Cristo, do qual o Novo Testamento fala como um fato
consumado. Não obstante, existem algumas diferenças significativas
entre os dois testamentos. Essas diferenças são cinco
(Institutas 2.11): (a) O Novo Testamento fala claramente da vida futura,
ao passo que o Antigo somente a promete por meio de sinais terrenos. (b) O
Antigo Testamento apresenta apenas a sombra daquilo que está
substancialmente presente no Novo, a saber, Cristo. (c) O Antigo Testamento foi
temporário, enquanto que o Novo é eterno. (d) A essência do
Antigo Testamento é lei e, portanto, servidão, ao passo que a
essência do Novo é o evangelho da liberdade. Cumpre observar,
todavia, que tudo o que é prometido no Antigo Testamento não
é lei, mas evangelho. (e) O Antigo Testamento foi dirigido a um
único povo, enquanto que a mensagem do Novo é universal.
Porém, apesar dessas diferenças, a ênfase básica da
reflexão de Calvino sobre lei e evangelho é de continuidade, e a
diferença entre ambos é uma diferença entre promessa e
cumprimento. Nisso, Calvino diferiu substancialmente de Lutero. E foi isso em
parte que permitiu ao calvinismo articular programas éticos mais
detalhados do que o fizeram os luteranos.
4. As Confissões Reformadas e a Lei.
A ênfase de Calvino ao terceiro uso da lei fez com que os documentos
confessionais reformados dessem grande destaque a esse ensino, especialmente
através da exposição detalhada do Decálogo.
Já no Livro II das Institutas, ao tratar da lei
(capítulos 6-11), Calvino faz uma exposição detalhada dos
Dez Mandamentos (8.11-50); o mesmo no seu primeiro catecismo,
Instrução na Fé (1537).
A 2ª pergunta e resposta do Catecismo de Heidelberg (1563) diz
o seguinte: "Quantas coisas deves conhecer para que possas viver e morrer na
bem-aventurança desse consolo? Três. Primeiro, a enormidade do meu
pecado e miséria. Segundo, como sou liberto de todos os meus pecados e
suas terríveis conseqüências. Terceiro, que gratidão
devo a Deus por tal redenção." Isso antecipa as três
partes em que se divide o Catecismo: (1) O Pecado e a Culpa do Homem – A
Lei de Deus (pp. 3-11): os dois primeiros usos da lei. (2) A
Redenção e Liberdade do Homem – A Graça de Deus em
Jesus Cristo (pp. 12-85): o evangelho. (3) A Gratidão e Obediência
do Homem – A Nova Vida Através do Espírito Santo (pp.
86-129): a lei moral, especialmente o Decálogo (pp. 92-115).
A Confissão de Fé de Westminster (1643-1646)) dedica
um capítulo à "Lei de Deus", na parte que trata da vida
cristã. Esse capítulo aborda em sete parágrafos os
três usos da lei e os seus diferentes aspectos (cerimonial, civil e
moral). Já o Catecismo Maior dá um destaque muito mais
enfático à lei. A sua terceira parte (pp. 91-196) aborda o dever
do homem em relação a Deus. Nessa seção, mais da
metade das perguntas tratam da lei e do Decálogo (pp. 91-148). O mesmo se
pode dizer do Breve Catecismo (pp. 39-84, de um total de 107
perguntas).
5. Antinomismo e Legalismo.
Calvino e Lutero foram unânimes no seu entendimento dos primeiros
dois usos da lei (elênctico, de élenchos = repreensão
[ver 2 Tm 3.16], e civil ou político). Todavia, Lutero não ensinou
formalmente um terceiro uso da lei. Os dois reformadores concordaram em suas
noções sobre a graça, a justificação e a
liberdade cristã, bem como em sua oposição contra qualquer
forma de justiça pelas obras, por um lado, ou de antinomianismo, por
outro lado. A diferença básica entre Lutero e Calvino no tocante
à lei é que, para Lutero, a lei geralmente representa algo
negativo e hostil; daí o fato de mencioná-la ao lado do pecado, da
morte e do diabo. Calvino via a lei primariamente como uma expressão
positiva da vontade de Deus, por meio da qual Deus restaura a sua imagem na
humanidade e a ordem na criação decaída. Lutero estava
consciente do terceiro uso da lei, mas ele não diz que a lei é
principalmente um guia e um incentivo para os fiéis. Ele estava pronto a
dizer, especialmente no início da década de 1520, que o crente de
fato não precisava da lei. Isso explica em parte o fato de que o
luteranismo tem tido de resguardar-se contra tentações
antinomianas, ao passo que os círculos reformados têm revelado
maior tendência de cair no legalismo.
Historicamente, tantos os luteranos como os reformados têm tido
dificuldade de manter o correto equilíbrio entre lei e evangelho, o que
tem levado ao antinomismo, de um lado, e ao legalismo e moralismo, do outro. O
antinomismo acentua de tal modo o fato de o cristão estar livre da
condenação da lei a ponto de subestimar a necessidade da
confissão diária dos pecados e da busca sincera da
santificação. Os católicos romanos com efeito acusaram a
Reforma de antinomismo ao afirmarem que a doutrina da justificação
pela fé conduziria à frouxidão moral. Já na
década de 1530, Lutero expressou a sua preocupação pelo
fato de um dos seus seguidores, João Agrícola (c.
1494-1566), ter se tornado antinomista. Lutero o criticou por não
acentuar adequadamente a responsabilidade moral dos cristãos.
O perigo maior enfrentado pela Reforma foi o do moralismo e legalismo. Os
moralistas ou neonomistas acentuam de tal modo a responsabilidade cristã
que a obediência torna-se mais que o fruto ou evidência da
fé; antes, ela passa a ser vista como um elemento constitutivo da
fé justificadora. O legalismo inevitavelmente ataca a certeza e a alegria
cristãs e tende a criar uma piedade egocêntrica, excessivamente
introspectiva.
Era Calvino um legalista? Nos seus escritos, em geral não. Como
vimos, ele estabeleceu normas para a interpretação da lei.
Primeiro, a lei visa não somente a probidade externa, mas a
justiça interior e espiritual (Institutas 2.8.6). Segundo, os
mandamentos e proibições sempre implicam mais do que as palavras
expressam, isto é, a mera obediência formal à lei não
é suficiente (Institutas 2.8.8). Deve-se buscar a
intenção do legislador; o melhor intérprete da lei é
Cristo (Institutas 2.8.7). Terceiro, a dupla divisão da lei em
deveres de piedade e deveres de caridade mostra que o temor a Deus é o
fundamento da justiça (Institutas 2.8.11). Na sua teologia, a
forte insistência de Calvino na justificação somente pela
fé contrasta com o espírito legalista. Além disso, ele
recusou-se a fazer da disciplina uma prova decisiva da existência da
igreja. Outro ponto significativo é o fato de ele ter colocado a
exposição da lei no Livro II das Institutas (soteriologia),
e não no Livro III, como parte da seção sobre o
arrependimento e a vida cristã. Na discussão da vida cristã
ele apela mais à vida e exemplo de Jesus e ao conjunto da teologia
cristã como a fonte e o guia dessa vida.
Por outro lado, as Ordenanças Eclesiásticas (1541)
criaram um consistório para regular a conduta da comunidade cristã
e abriram as portas para o legalismo. Os oficiais de Genebra não
hesitaram em forçar as pessoas a irem à igreja. Eles também
investigavam e regulavam muitos detalhes da vida diária. Calvino tinha um
desejo profundo de que a igreja abrangesse toda a comunidade. Pelo menos no que
diz respeito a Genebra, ele nunca abandonou o ideal medieval do corpus
christianum, mas buscou fazer da comunidade de Genebra o verdadeiro corpo de
Cristo. Porém, essa preocupação em obter a comunidade ideal
pode ter levado o reformador a apelar para métodos legalísticos.
O desafio que se coloca diante de nós é duplo: dar um
testemunho persuasivo da autoridade pessoal do Deus vivo sobre cada vida humana,
mas ao mesmo tempo não substituir o reino pessoal de Deus por regras
meticulosamente formuladas.
Bibliografia
- Justo L. González, A History of Christian Thought, III:53-55
(Lutero), 78-79 (Zuínglio), 146-49 (Calvino).
- T.H.L. Parker, Calvin: An Introduction to his Thought (Louisville:
Westminster/John Knox, 1995).
- John H. Leith, John Calvin’s Doctrine of the Christian Life
(Louisville: Westminster/John Knox, 1989), 45-54.
- W.R.G, "Law and Gospel," em S. B. Ferguson, D.F. Wright e J.I. Packer, eds.,
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- I. John Hesselink, "Law," em Donald K. McKim, ed., Encyclopedia of the
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- Mauro F. Meister, "Lei e Graça: Uma Visão Reformada," Fides
Reformata IV:2 (Jul-Dez 1999), 45-58.
- Timothy George, Theology of the Reformers (Nashville: Broadman,
1988).
- Um livro que aborda várias dessas questões é A Lei
Moral, de Ernest Kevan, que está sendo lançado pela Editora Os
Puritanos. Por exemplo, o cap. 12 trata da importante relação
entre a lei e o evangelho.