Resenha de
O Código da
Bíblia
Mauro Meister
Michel Dronsnin, O Código da Bíblia, Trad. Merle
Scoss (São Paulo: Editora Cultrix, 1997) 265 pp. Original em inglês
The Bible Code (1997).
Já há muito tempo fala-se de um código oculto no texto
hebraico do Antigo Testamento. Vários cristãos me apresentaram
recortes de jornais (aqui no Brasil e na África do Sul) ou comentaram
sobre matérias em programas de televisão falando de um
código secreto na Bíblia. Essas primeiras menções
são fruto da pesquisa de um rabino tcheco de nome Weissmandel que
encontrou palavras escritas em intervalos de letras equidistantes no texto do
Antigo Testamento. Essa tentativa de encontrar mensagens ocultas em intervalos
de letras dentro do texto é o material apresentado por Drosnin em O
Código da Bíblia. Pela sua popularidade cabe uma resenha da
referida obra na tentativa de esclarecer nossos leitores sobre a natureza desse
suposto código. Só na revista Veja Drosnin e seu livro
são mencionados pelo menos duas vezes nos últimos dois anos
(Veja 11/06/97 e 25/02/98).
Deve-se reconhecer, em primeiro lugar, a engenhosidade de Drosnin, ou
melhor, do proponente da teoria, o matemático Eliyahu Rips, que publicou
juntamente com Doron Witztum e Yoav Rosenberg, um artigo intitulado
"Seqüências Alfabéticas Eqüidistantes no Livro de
Gênesis" em Statistical Science, volume 9, nº 3 (p. 429-438),
agosto de 1994 [publicado como um apêndice no livro de Drosnin (a partir
da p. 232, sem numeração daí em diante)]. A proposta de
Rips consiste na eliminação dos espaços entre as palavras
do texto hebraico e a busca de palavras ou nomes que possam ser encontrados em
intervalos regulares. A análise de Rips foi feita no artigo usando os
nomes de 32 celebridades, retirados da Encyclopedia of Great Men in
Israel. Cada nome testado foi encontrado no meio do texto, e também,
próximo a cada nome, o ano de seu nascimento ou morte. Segundo Drosnin,
"nos anos que se seguiram à publicação do ensaio
Rips-Witztum (agosto de 1994), ninguém apresentou qualquer
refutação ao boletim matemático" (p. 186). Tanto os autores
do artigo original quanto Drosnin afirmam que diversos estudiosos de
várias universidades atestam a confiabiblidade dos dados
estatísticos da pesquisa. O mesmo teste aplicado a outros livros
traduzidos para a língua hebraica não trazem o mesmo resultado,
afirmam os pesquisadores.
Segundo Drosnin, a relevância desse estudo está no fato de que
essas relações entre nomes e datas não podem ser fruto da
coincidência e acaso, mas que há um código secreto
encriptado na Bíblia que estava aguardando a era do computador para ser
revelado. Aliás, ele chega a afirmar que : "Sempre imaginamos a
Bíblia como um livro. Sabemos agora que o livro foi somente a sua
primeira encarnação. A Bíblia é também um
programa de computador" (p. 44).
Esses estudos levaram Drosnin, um jornalista que repetidamente se diz
cético e não religioso, a pesquisar e encontrar diversas mensagens
"escondidas" dentro do texto do Antigo Testamento. Ele diz: "A única
coisa que posso afirmar com certeza é que existe um código na
Bíblia e este, em alguns casos dramáticos, previu acontecimentos
que ocorreriam exatamente como previstos... Tentei lidar com esta
história do mesmo modo como lidaria com qualquer outra história:
como um repórter investigador. Passei cinco anos investigando os fatos...
Nada foi aceito pela fé" (p. 11).
Sua "conversão" cética se deu quando diz que encontrou o nome
Yitzhak Rabin, o primeiro ministro de Israel na época (1994), e que a
"única vez em que este nome completo aparece no Antigo Testamento" ele se
cruza com a expressão "assassino que assassinará" (p. 15). Esta
previsão se confirmou em 4 de novembro de 1995. A partir daí todo
tipo de "testes" foram executados pelo próprio Drosnin com outros eventos
passados e possibilidades futuras (Clinton/presidente, Hitler/nazista,
Sadam/Hussein/inimigo/míssil, holocausto atômico, homem na lua/nave
espacial, Shoemaker-Levy/baterá em Júpiter, etc. com várias
datas associadas aos mesmos). Segundo o autor, o código do futuro esta
lá, porém como descobri-lo ainda é uma tarefa a ser
realizada, na base de tentativas e erros, uma vez que se encontra escondido.
Como Drosnin faz sua "pesquisa"? Ele explica num estudo de caso, o
assassinato de Rabin. Drosnin diz que "o computador dividiu a Bíblia
inteira – todo o fluxo de 304.805 letras – em 64 fileiras de 4772
letras (p.27). No meio dessa grade, "um instantâneo do centro daquela
matriz", (p. 27) está o nome "Yitzhak Rabin" ["Bíblia inteira",
leia-se Pentateuco]. Em princípio muito interessante. Observa-se, no
entanto, que multiplicando 64 x 4772 não se obtém o resultado de
304.805 letras e sim 305.408, uma diferença de 603 letras. Observando a
tabela apresentada por Drosnin nas páginas 14, 15, 16, 26, 27, 28, e
outras, encontra-se um número de * (asteriscos) e – (traços)
sem qualquer explicação. Retirando-se os mesmos a "mensagem"
encriptada desaparece totalmente. Isto sem contar que, como na
descrição do autor, a forma com que as ditas mensagens aparecem
é como um "caça palavras", aparecendo invertidas (no hebraico ou
na ordem ocidental), em diagonais, etc. Um verdadeiro entretenimento!
E porque estas mesmas "mensagens" não são encontradas em
outros textos? Um fator que explicaria a maior facilidade de se encontrar estas
mensagens no meio do texto bíblico e não na literatura moderna em
hebraico, é que o texto bíblico, principalmente as narrativas, por
causa da forma verbal normalmente conhecida como waw consecutivo,
acrescenta uma série de matres lectionis (mães da leitura)
ao texto codificado. Estas facilitam imensamente encontrar estes
"códigos". Originalmente, os hebreus não usavam vogais no seu
texto. As vogais só foram acrescidas ao texto hebraico por volta do
4º século A.D., isto sem mexer no texto consonantal. As matres
lectionis são parte do texto consonantal original e eram usadas para
facilitar a leitura do texto sem vogais. O caso é que uma dessas
matres lectionis é exatamente a letra waw, que aparece
milhares de vezes no texto hebraico da Bíblia, e que não é
tão freqüente no hebraico moderno porque esta modalidade verbal
não mais existe. O waw pode ter o som de "u", "o" e "v" (incluindo
as variações para o w ocidental). Uma vez que o texto
moderno de hebraico não apresenta o waw consecutivo,
perde-se a possibilidade de se ler aleatoriamente estes três sons ("o",
"u" e "v") algumas milhares de vezes no texto, diminuindo assim a possibilidade
de se encontrar os tais "códigos".
Quanto às alegações de datas encontradas nos
códigos próximos a nomes e eventos, estas são completamente
refutáveis. Os números em hebraico são representados por
letras. Cada letra tem um valor numérico, e por conseguinte, cada palavra
tem um valor numérico. Encontrar números específicos fica
mais fácil ainda se o leitor (no caso o computador) tem a liberdade de
separar estas letras como quiser, e ainda com a possibilidade de "pular"
caracteres em intervalos constantes. Um computador encontraria listas e listas
de números no texto hebraico independentemente de quaisquer
fatores.
George Hammond, resenhista do livro no Westminster Theological
Journal (v. 59, nº 2, 329-331) aponta para uma outra falha que eu ainda
não havia percebido. Drosnin oscila entre palavras no hebraico e palavras
em inglês, para encontrar seus códigos, dependendo da
conveniência. Na página 182 ele encontra a expressão
"código da Bíblia" (tsafon tanakh) sendo "código" a
palavra como é usada no hebraico moderno. Já na página 176,
na expressão "o código salvará" a palavra "código"
é code (em inglês) escrito com caracteres hebraicos. O mesmo
se repete para meses, às vezes em hebraico, às vezes em
inglês (p. 156, July em caracteres hebraicos, p. 159, av em
hebraico). Algumas vezes aparecem simples transliterações de
palavras em inglês. Se fosse usada qualquer outra língua ocidental,
certamente teríamos códigos em todos os idiomas! Drosnin poderia
até dizer que existe um código para cada
nação!
A tentativa de Drosnin tem recebido os mais diversos títulos na
imprensa popular. Um deles é de ‘puro charlatanismo’, uma
forma de se aproveitar da credulidade do povo. Não sem razão. As
conseqüências teológicas da proposta de Drosnin são de
fato catastróficas. Ele não só nega todo o método de
interpretação das Escrituras como entendido e consolidado pela
igreja desde a Reforma Protestante, como nega completamente a mensagem "aberta"
do texto bíblico. Mas nem toda essa "descoberta fantástica" levou
Drosnin a crer em Deus. Ele afirma: "Temos realmente a primeira prova
científica de que existe uma inteligência fora da nossa
própria inteligência, ou pelo menos existia na época em que
a Bíblia foi escrita" (p. 49). Creio que a proposta de Drosnin,
não só prova que existe uma inteligência "fora", mas que
muitas vezes falta uma inteligência "dentro".
A leitura do livro é maçante e repetitiva. No entanto, esteja
preparado para responder a muitas questões que ainda estão por vir
daqueles que, porventura, comprarem o livro em alguma livraria de saguão
de aeroporto, como eu fiz.
Mauro Fernando Meister