O Cemitério dos Protestantes de São Paulo:
Repouso dos Pioneiros Presbiterianos
(1ª Parte)
Alderi Souza de Matos
Além do seu significado sentimental e humano, os cemitérios
são uma valiosa fonte de informações históricas e um
vínculo importante com o passado, quer para indivíduos ou
instituições. O objetivo deste artigo é tecer algumas
considerações sobre a importância dos cemitérios para
a história do protestantismo brasileiro e, em especial, destacar a
relevância do Cemitério dos Protestantes de São Paulo para a
história da Igreja Presbiteriana do Brasil.
O Protestantismo Brasileiro e os Cemitérios
No período colonial foi escassa a presença de protestantes no
Brasil. Somente no início do século XIX, após a
transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro, o protestantismo
começou a inserir-se de modo mais amplo na sociedade brasileira. Essa
inserção teve duas fases bem definidas. Inicialmente, a partir de
1810, houve o surgimento do chamado "protestantismo de imigração",
ou seja, todos os protestantes existentes no Brasil eram estrangeiros que para
cá tinham vindo como imigrantes, especialmente ingleses (anglicanos) e
alemães (luteranos). Posteriormente, surgiu o "protestantismo de
missão", como resultado do trabalho de missões européias e
norte-americanas entre os brasileiros. Essa modalidade implantou-se
definitivamente a partir de 1855, com a chegada do Rev. Robert Reid Kalley,
seguido, em 1859, pelo Rev. Ashbel Green Simonton.
Em virtude do predomínio do catolicismo no país e do fato de
a Igreja Católica ser a religião oficial, os protestantes, tanto
estrangeiros como brasileiros, enfrentaram sérios entraves ao longo de
boa parte do século XIX. Suas casas de culto não podiam ter a
forma exterior de templos, os fiéis não podiam casar-se legalmente
ou registrar os seus filhos, as crianças evangélicas sofriam
discriminação nas escolas públicas e havia outras formas de
intolerância aberta ou disfarçada. Outra restrição
imposta aos protestantes dizia respeito aos cemitérios.
Durante o período colonial não havia cemitérios no
Brasil. As pessoas geralmente eram sepultadas sob o piso ou nas paredes das
igrejas e dos conventos. A partir de 1828, por razões de saúde
pública, começaram a surgir leis que determinavam a
criação de cemitérios municipais, que só
começaram a ser usados em 1850. A legislação também
contemplava a existência de cemitérios particulares, pertencentes
às irmandades. Todavia, mesmo os poucos cemitérios
públicos, pelo fato de serem consagrados pela igreja, eram vedados aos
protestantes. A solução seria a criação de
cemitérios específicos para os protestantes e outros
acatólicos.
Em 19 de fevereiro de 1810, Portugal firmou três tratados com a
Inglaterra. Um deles, o Tratado de Comércio e Navegação,
mediante o seu Artigo 12, concedeu liberdade de culto aos ingleses e
tolerância religiosa a outros acatólicos residentes no Brasil. O
artigo dizia a certa altura: "Permitir-se-á também enterrar em
lugares para isso designados os vassalos de Sua Majestade Britânica que
morrerem nos territórios de Sua Alteza Real o Príncipe Regente de
Portugal." Assim sendo, no ano seguinte foi criado o Cemitério dos
Ingleses, no bairro da Gamboa, no Rio de Janeiro, possivelmente o mais antigo
cemitério protestante do Brasil. Nesse cemitério foi sepultada em
1840 a Sra. Cynthia H. Russel, esposa do pioneiro metodista Daniel P. Kidder, e
em 1864, Helen Murdoch, a jovem esposa do Rev. Simonton.
Eventualmente, surgiram cemitérios semelhantes nas principais
cidades brasileiras, particularmente nas localidades litorâneas que tinham
grandes comunidades de imigrantes protestantes. Outros antigos cemitérios
de estrangeiros acatólicos são o Cemitério dos Ingleses do
Recife, os cemitérios luteranos de Nova Friburgo e Petrópolis, o
Cemitério de Ipanema, nas proximidades de Sorocaba, que foi restaurado
recentemente, e o cemitério dos imigrantes norte-americanos em Santa
Bárbara d’Oeste. Mais tarde, seriam criados cemitérios para
os protestantes brasileiros, como aconteceu em Rio Claro, Brotas e outras
localidades.
Em 1863, um decreto determinou que o registro de óbitos de
acatólicos seria feito pelo escrivão do Juízo de Paz, em
livro apropriado, e que em todos os cemitérios públicos haveria um
"lugar separado" para o seu sepultamento. Posteriormente, em 1879, Saldanha
Marinho apresentou um projeto de lei transferindo a administração
dos cemitérios públicos para a exclusiva competência das
câmaras municipais, sem intervenção de qualquer autoridade
eclesiástica.
Nas localidades onde não havia cemitérios acatólicos,
os protestantes continuaram a sofrer constrangimentos e
manifestações de intolerância. São muitos os casos
narrados pelos historiadores. Quando faleceu o Rev. José Manoel da
Conceição (24-12-1873), o bispo do Rio de Janeiro, D. Pedro de
Lacerda, ameaçou de excomunhão o capelão e o vigário
que permitiram o sepultamento em "terreno sagrado." Três anos depois,
antes de vencer o prazo legal de cinco anos, os restos foram exumados e o
cemitério foi "novamente benzido e reconciliado" (Vicente T. Lessa,
Padre José Manoel da Conceição, pp. 72-73).
Por vezes, os sepultamentos tinham de ser feitos no mar, perto das praias,
em cemitérios de escravos ou em propriedades particulares. Em alguns
lugares tentou-se até mesmo impedir a criação de tais
cemitérios. O historiador Vicente T. Lessa registra que a Câmara
Municipal de Ubatuba reservou uma área do cemitério público
para os protestantes, mas por três vezes certos elementos fanáticos
tentaram destruir a obra: na primeira queimaram o gradil, na segunda arrancaram
o portão e na terceira derrubaram o muro (Anais da 1ª Igreja
Presbiteriana de São Paulo, p. 271).
Com o advento da república, em teoria houve a plena
secularização dos cemitérios; no entanto, por várias
décadas, especialmente no interior do país, ainda continuaram a
ocorrer casos de intolerância nessa área, como
proibições ou tentativas de proibição de
sepultamentos.
O Cemitério Protestante de São Paulo
O primeiro cemitério a céu aberto na cidade de São
Paulo foi construído no fim do século XVIII, em terreno
pertencente à mitra diocesana, localizado no atual bairro da Liberdade.
No centro do terreno ficava a capela de Nossa Senhora dos Aflitos, inaugurada em
27 de junho de 1779. Assim sendo, o cemitério ficou conhecido como dos
Aflitos. Destinava-se ao enterro de indigentes, escravos e supliciados e
funcionou até a abertura do Cemitério da Consolação,
quando foram proibidos os sepultamentos em outros locais. O Cemitério dos
Aflitos seria demolido por volta de 1883, quando o terreno foi loteado e vendido
a particulares.
Quando a Câmara Municipal procurou dar cumprimento à lei de
1828, que determinara a criação dos cemitérios
públicos, teve dificuldades por falta de consenso com as autoridades
eclesiásticas. Em 1845 foi criado um cemitério contíguo ao
Convento da Luz, que também serviria para o sepultamento das religiosas e
de seus capelães, e seria administrado pelas mesmas. Em 1851, metade
desse terreno foi cedida para a abertura de um cemitério para os
estrangeiros católicos. Uma parte desse Cemitério dos
Alemães foi reservado para estrangeiros não-católicos,
ficando conhecida como Cemitério dos Protestantes.
Nesse mesmo ano, foi nomeada uma comissão especial para tratar da
criação de um cemitério público e geral, sendo
inicialmente escolhido o Campo Redondo (proximidades da atual Praça
Princesa Izabel) como local adequado para o mesmo. Em 1855, o engenheiro Carlos
Frederico Rath, que era o administrador do Cemitério dos Protestantes da
Luz, sugeriu o Alto da Consolação como o local mais apropriado
para o cemitério municipal.
Em 1856, com base em plantas apresentadas por Frederico Rath, as
autoridades decidiram criar o novo cemitério, determinaram que não
houvesse enterros em quaisquer outros lugares e resolveram que uma área
anexa ao cemitério municipal seria usada para o sepultamento de
acatólicos. Devido à crônica falta de recursos, o
Cemitério da Consolação somente foi consagrado em 30 de
junho de 1858. A parte reservada aos protestantes levou mais alguns anos para
ser preparada e os sepultamentos só tiveram início em 1862. Em
1868, foram feitas duas subscrições junto à comunidade
protestante (alemães, ingleses e outros) para a conclusão das
obras do Cemitério Protestante.
O Cemitério dos Protestantes e os Presbiterianos
Grande parte dos sepultados no Cemitério dos Protestantes é
composta de alemães e brasileiros, havendo também muitos ingleses,
norte-americanos e portugueses, bem como alguns suíços, suecos,
dinamarqueses, italianos, austríacos e pessoas de muitas outras
nacionalidades. No que diz respeito à religião, o maior grupo
é constituído pelos luteranos, havendo também anglicanos,
reformados e até mesmo alguns católicos e judeus.
Quanto aos presbiterianos, seu número é relativamente
pequeno, mas extremamente significativo por causa da importância das
pessoas ali sepultadas. Sem dúvida, os mortos mais ilustres são os
Revs. Ashbel Green Simonton e José Manoel da Conceição, mas
existem muitos outros pastores, tanto brasileiros como americanos, familiares de
missionários, pessoas ligadas ao Mackenzie e membros conhecidos das
igrejas presbiterianas de São Paulo. Fornecemos no quadro anexo os
nomes mais significativos, na ordem cronológica do seu falecimento.
O Cemitério dos Protestantes de São Paulo é um lugar
que precisa ser conhecido e reverenciado pelos presbiterianos do Brasil. Ali
podemos ter um contato direto com a nossa história e contemplar as
lápides singelas dos nossos heróis da fé, homens e mulheres
que deram as suas vidas pela evangelização do Brasil. Eles
plantaram igrejas, criaram instituições de ensino, promoveram a
literatura, amaram, serviram e, sim, como humanos que eram, também se
envolveram em lutas e controvérsias, muitas vezes dolorosas. No
próximo número do Brasil Presbiteriano, daremos algumas
informações biográficas sobre os principais vultos que ali
repousam aguardando a promessa da ressurreição em
Cristo.