Lutero Ainda Fala:
Um Ensaio em História da Interpretação Bíblica

Augustus Nicodemus Lopes

Uma das principais figuras da História da Interpretação Bíblica é Martinho Lutero, cujos princípios de interpretação deram o ímpeto necessário à Reforma Protestante do século dezesseis. A hermenêutica de Lutero redimiu as Escrituras do cativeiro da exegese medieval e do controle da Igreja Católica Romana. Qualquer estudioso familiarizado com as obras de Lutero, particularmente com os seus comentários, percebe que o método gramático-histórico moderno de interpretação está, muitas vezes, apenas aperfeiçoando a obra do grande reformador. O objetivo do presente artigo é avaliar a principal contribuição Lutero para a interpretação bíblica, ou seja, a busca da intenção do autor humano das Escrituras como sendo o sentido pretendido pelo Espírito Santo, e portanto, o único sentido verdadeiro do texto. Creio que uma nova apreciação deste princípio simples de interpretação bíblica poderá ajudar a igreja evangélica brasileira a sair das dificuldades doutrinárias em que se encontra no momento.

Crise Doutrinária , Interpretação Bíblica e Pregação

Recentemente um autor pentecostal publicou um livro com o título Evangélicos em Crise: Decadência Doutrinária na Igreja Brasileira.(1) Embora o tema do livro, na realidade, seja a crise teológica e doutrinária pela qual passa o movimento pentecostal brasileiro,(2) a crítica penetrante do autor atinge as denominações históricas tradicionais. É correto afirmar que estas também passam por uma crise teológica. Acredito que essa crise da Igreja atual seja uma crise hermenêutica em sua essência. Por "crise" eu me refiro à confusão e incerteza geradas nas igrejas evangélicas pelo ingresso em seu meio de várias e diferentes correntes teológicas e litúrgicas.

Cada uma dessas correntes reivindica ser a mais correta expressão do ensino da Bíblia.(3) Já que várias delas apregoam verdades e práticas radicalmente opostas umas às outras, não se pode esperar que todas estejam certas. E se todas usam passagens da Escritura para defender suas convicções, também não se pode esperar que a hermenêutica e a exegese de todas elas estejam corretas. No momento, no Brasil, a crise não é tanto relacionada com a natureza e a inspiração das Escrituras, mas com os princípios e métodos utilizados em sua interpretação.

Diretamente relacionada com a crise de interpretação bíblica está a crise dos púlpitos. Em consonância com a interpretação bíblica superficial e alegórica que predomina hoje, os púlpitos de bom número das igrejas evangélicas destilam uma espécie de sermão onde pouca ou nenhuma atenção se dá ao sentido original do texto bíblico. Na realidade, após lerem um texto, os pregadores costumam destacar uma frase, deixam o texto de lado, e improvisam em variações daquela frase, introduzindo sentidos que nem de longe estavam na mente do autor bíblico. Ouvi de um notável pregador evangélico o que talvez seja um bom exemplo daquilo a que me refiro. Após ler Gênesis 21.8, onde Moisés relata que "Isaque cresceu e foi desmamado", o referido ministro passou a fazer com grande eloqüência e senso de humor variações da frase "foi desmamado", aplicando-a como "desmamar do pecado", "desmamar do dinheiro", e "desmamar de líderes conhecidos", entre outras coisas. Não havia fim para as possibilidades! O que me preocupa com sermões assim é que se pode colocar qualquer idéia dentro do texto bíblico. Felizmente, nenhuma das idéias inseridas no texto pelo pastor acima mencionado era antibíblica. Entretanto, estou certo de que elas não representam o sentido original do texto inspirado, a intenção de Moisés ao narrar a história do desmamamento de Isaque. A porta estava aberta para a entrada de conceitos e idéias humanos. Sermões desse tipo são o resultado direto da espécie de hermenêutica e interpretação bíblica predominantes.

A Intenção do Autor Humano como o
Único Sentido Verdadeiro do Texto

É a minha convicção de que grande parte da confusão hermenêutica em que se encontra a Igreja hoje deve-se ao abandono deste princípio simples de exegese, de que cada passagem das Escrituras tem apenas um único sentido: aquele pretendido pelo autor humano sob a inspiração do Espírito Santo. Procuraremos ver como Lutero desenvolveu na prática as implicações desta regra.

Nossa pesquisa se concentrará no comentário em Gálatas que Lutero publicou em 1535.(4) Na realidade, esse foi o segundo comentário que ele publicou em Gálatas. O primeiro data de 1519(5), e segundo alguns estudiosos, era superior ao de 1535, pois se atém mais ao sentido original do texto bíblico.(6) De qualquer forma, "Gálatas, 1535" representa a hermenêutica mais madura do reformador. Nele encontramos um sumário do que Lutero pensava acerca da interpretação das Escrituras, numa passagem onde ele ataca os exegetas medievais e defensores do papado, com sua característica virulência:

O que eles [os sofistas] deveriam fazer é vir ao texto vazios, derivar suas idéias da Escritura Sagrada, e então prestar atenção cuidadosa às palavras, comparar o que precede com o que vem em seguida, e se esforçar para agarrar o sentido autêntico de uma passagem em particular, em vez de ler as suas próprias noções nas palavras e passagens da Escritura, que eles geralmente arrancam do seu contexto.

Obviamente, se perguntado, Lutero acrescentaria mais algumas coisas a este sumário. Suas palavras acima, porém, revelam claramente que, para o reformador, o alvo principal do intérprete bíblico é determinar o sentido original de uma passagem, e isto através de exegese cuidadosa. Em "Gálatas, 1535" Lutero concentra-se insistentemente em determinar a intenção de Paulo em cada passagem. Por exemplo, ele inicia sua análise de Gálatas 2 declarando qual o propósito de Paulo ao escrever aquela porção da carta, e parte para uma crítica a Jerônimo, o qual, segundo Lutero "...nem toca no ponto verdadeiro da passagem, pois não leva em conta a intenção ou propósito de Paulo."(7) Mais adiante, comentando Gálatas 1.3, Lutero volta a criticar Jerônimo, afirmando que o mesmo deixou passar inteiramente desapercebido o ponto principal do versículo, por ter falhado em captar a intenção de Paulo ali.(8)

O contexto

Lutero procura determinar a intenção original de Paulo em uma determinada passagem de diversas maneiras. Em primeiro lugar, ele procura ser sensível ao contexto imediato da passagem a ser interpretada. Para ele, o sentido das palavras deve ser encontrado, primeiramente, à luz do assunto em pauta na seção maior onde o texto está inserido. Assim, "carne" em Gálatas 3.3 não pode ser interpretado como paixões sexuais, como alguns exegetas medievais faziam, pois, segundo ele, "nesta passagem, Paulo não está discutindo concupiscência sexual ou outros desejos da carne ... ele está discutindo sobre perdão de pecados."(9) Comentando Gálatas 1.17 Lutero afirma que Jerônimo poderia ter facilmente resolvido a questão do que Paulo fez durante os três anos em que passou na Arábia, se prestasse cuidadosa atenção às próprias palavras de Paulo.(10)

Em segundo lugar, Lutero procura entender o que Paulo está dizendo em Gálatas à luz do restante do Corpus Paulinus. Não é de se estranhar, pois, que seu comentário esteja cheio de referências a outras cartas do apóstolo, principalmente as demais Hauptbriefe ("cartas principais": Romanos, 1 e 2 Coríntios). Por exemplo, ao explicar Gálatas 2.3, que trata da quase circuncisão de Tito, Lutero apela para 1 Coríntios 7.18, onde Paulo declara sua prática missionária de amoldar-se às necessidades dos que o ouvem.(11) Mais adiante, examinando o significado de Gálatas 3.19 ele acrescenta: "A passagem em 2 Coríntios 3.17-18 sobre a face velada de Moisés é pertinente aqui."(12) Comentando Gálatas 3.1, "Ó gálatas insensatos," Lutero explica que a aparente rudeza de Paulo se explica pelo fato de que o apóstolo está simplesmente praticando o que ele ensina em 2 Timóteo 4.2, "prega a palavra, insta, quer seja oportuno, quer não, corrige, repreende e exorta."(13)

Em terceiro lugar, Lutero está alerta para entender o sentido pretendido por Paulo em uma passagem à luz do contexto mais amplo das demais Escrituras. Ele cita passagens de vinte e três livros do Antigo Testamento, especialmente de Gênesis, Deuteronômio, Salmos e Isaías. Ele usa o Velho Testamento como uma fonte abundante de evidências, exemplos, e exortações. Para ele, a analogia scripturae ("analogia das Escrituras") justifica o aplicar-se a Cristo "todas as maldições coletivas da Lei de Moisés," como Paulo faz em Gálatas 3.13, aplicando a Cristo a maldição de Deuteronômio 21.23.(14) Lutero também cita passagens de quase todos os demais livros do Novo Testamento, especialmente os Evangelhos e Atos, à medida em que comenta Gálatas, verso por verso. Assim, ao analisar Gálatas 2.7-9, onde Paulo menciona que Deus lhe atribuiu e à Pedro diferentes ministérios, Lutero comprova as palavras de Paulo com exemplos destes diferentes ministérios (de Pedro aos judeus e de Paulo aos gentios) tirados de Atos, 1 Pedro e Colossenses.(15)

Para Lutero, o método eficaz de explicar passagens da Escritura que seus oponentes usavam para justificar salvação pelas obras (como Daniel 4.27) era consultar "a gramática teológica," que para ele significava o ensino total das Escrituras sobre salvação. Um bom exemplo é sua explicação para Daniel 4.27, onde o profeta diz ao rei para "por termo" (renunciar, encerrar, acabar) aos seus pecados pela prática da justiça e da misericórdia. Lutero comenta, partindo do ensino total das Escrituras sobre a salvação pela fé, que "a gramática teológica demonstra que a expressão ‘por termo’ nesta passagem não se refere à moralidade, mas à fé, e que fé está incluída na expressão ‘por termo.’(16)

O estado de espírito de Paulo

Além de atentar cuidadosamente para o contexto literário de uma passagem, Lutero tenta também entender o estado de espírito em que Paulo se encontrava ao escrevê-la. Para ele, saber isso era uma ferramenta importante na interpretação da passagem. Assim, ao comentar Gálatas 1.1, ele observa o zelo e a paixão apostólicos que iam na alma de Paulo, ao escrever essa carta com o intuito de defender a justificação pela fé.(17) Este estado de espirito, segundo Lutero, explica a profunda angústia mental do apóstolo refletida em 4.20-21,(18) e também por que em 2.6-9 Paulo "esqueceu-se da gramática grega e confundiu a estrutura da sentença."(19) Evidentemente devemos questionar até que ponto a língua grega comum na época de Paulo era gramaticalmente estruturada e rígida, antes de podermos falar em "confusão" gramatical feita pelo apóstolo. É bom ressalvar que, para Lutero, essas "confusões" gramaticais de Paulo eram perfeitamente compatíveis com a inspiração e na inerrância das Escrituras. O que desejo mostrar, entretanto, é a preocupação do reformador em entender Paulo, para assim chegar ao sentido verdadeiro da passagem.

A linguagem

Lutero também procura penetrar na intenção de Paulo examinando a linguagem do apóstolo ao escrever Gálatas. Assim, o reformador está sempre alerta para o estilo de Paulo, e com o propósito de esclarecer uma sentença, às vezes chama a atenção para as expressões hebraicas (hebraismos) usadas pelo apóstolo. Como exemplos, ele cita expressões como "ministro do pecado" (Gálatas 2.17), "a promessa do Espírito" (3.14), "me separou antes de eu nascer" (1.15), "o evangelho da circuncisão" (2.7), e Gálatas 2.16, pa=sa sa/rc, que segundo ele é "um hebraismo que peca contra a gramática".(20)

Semelhantemente, Lutero está atento para as figuras de linguagem usadas por Paulo, como "sinédoque", "inversão retórica", "argumento do contrário", "antítese" e "elipse".(21) O seu alvo é entender o sentido pretendido pelo apóstolo na passagem ao usar estas figuras. Assim, ele está também atento para a gramática e a sintaxe de Paulo. Na introdução do seu comentário, ele diz: "Num certo sentido, Paulo trata do tema desta carta em cada palavra. . . portanto, devemos prestar atenção em cada palavra, e não passar por elas de forma casual e superficial".(22) Ao discutir a ênfase do pronome "nosso" em Gálatas 1.4, ele diz que o sentido da Escritura "...consiste na aplicação apropriada de pronomes..."(23) Ele está consciente dos diferentes aspectos temporais dos verbos usados por Paulo, como por exemplo, o emprego das vozes ativa e passiva em Gálatas 3.3.(24) Também se refere aos usos distintos do genitivo. Comentando a expressão "o Evangelho da incircuncisão" e "o Evangelho da circuncisão" (Gálatas 2.7), Lutero observa que a expressão é mais um hebraismo de Paulo, e conclui: "...em hebraico o caso genitivo é usado de várias formas, algumas vezes no sentido ativo, e em outras, no passivo; e isto tende freqüentemente a obscurecer o sentido. Há exemplos disto nas cartas de Paulo — na verdade, por todas as Escrituras".(25) Como exemplos desta ambigüidade do genitivo em Paulo, ele menciona "fé de Jesus", e "o Evangelho de Deus".(26)

Paráfrases

O método mais interessante que Lutero emprega para estabelecer o sentido genuíno de um texto é parafrasear o apóstolo Paulo. Esta prática está virtualmente ausente em seu primeiro comentário ("Gálatas, 1519"). No segundo, as inúmeras paráfrases são introduzidas por uma fórmula padrão, "é como se ele [Paulo] estivesse dizendo...", ou "ele [Paulo] diz...", ou ainda "é como se ele dissesse..." O seu uso de paráfrases é limitado pelo contexto literário, pelo contexto histórico, pela teologia de Paulo e pela analogia das Escrituras.

Lutero gosta de parafrasear especialmente as passagens mais difíceis de Paulo. Ele refaz a sentença com o objetivo de tornar claro, de uma forma bem vivida, aquilo que poderia ser ambíguo para o leitor comum. Comentando Gálatas 1.6, onde Paulo fala dos que pregam "outro Evangelho", Lutero escreve: "Paulo está falando de forma irônica, como se estivesse dizendo..."(27) Ao lidar com a declaração "o qual me separou desde o ventre materno" (Gl 1.15) ele acrescenta, "Esta é uma expressão hebraica, é como se Paulo estivesse dizendo, ‘que me santificou, determinou e preparou’"(28)

Numa paráfrase admirável de Gálatas 3.1 Lutero torna transparente o que Paulo quer dizer por "fascinou": "É como se ele [Paulo] dissesse aos gálatas, ‘o que está acontecendo com vocês é precisamente o que acontece com crianças, as quais as feiticeiras e bruxas atraem de forma fácil e rápida com seus encantamentos, um truque de Satanás’".(29)

Fatores que controlavam a exegese de Lutero

Alguns fatores controlavam a determinação de Lutero em descobrir o sentido verdadeiro do que Paulo escreveu. Como temos mostrado, para Lutero este sentido consistia na intenção de Paulo ao verter as suas idéias em forma de epístolas.

A clareza das Escrituras

Primeiro, Lutero estava convencido de que o sentido de uma passagem das Escrituras é geralmente claro e evidente. É partindo deste pressuposto fundamental que ele rejeita a tese de Jerônimo, baseada em Gálatas 1.18, de que Paulo foi a Jerusalém para aprender o Evangelho da boca de Pedro. Lutero retruca dizendo "...Paulo afirma em palavras claras que foi a Jerusalém para ver Pedro [e não para aprender dele]".(30) Semelhantemente, Lutero rejeita a interpretação de Gálatas 6.8, "semear na carne", feita pelos Encratitas (que ele considera como "bestas abomináveis, totalmente desprovidas de bom senso...").(31) Para eles, "semear na carne" refere-se ao casamento, mas para Lutero, "como qualquer pessoa equipada com um mínimo de bom senso pode ver, Paulo não está falando de casamento nesta passagem". (32)

Isto não significa que Lutero estava exagerando a perspicuidade (clareza) da Escritura. Ele estava perfeitamente consciente das dificuldades envolvidas na interpretação bíblica. Um bom exemplo é quando ele comenta o relato que Paulo dá em Gálatas do tempo que passou na Arábia (Gl 1.17), e que é omitido na narrativa do livro de Atos. Analisando a aparente contradição, Lutero chega ao ponto de dizer, "as histórias nas Escrituras são geralmente concisas e confusas, e não podem ser harmonizadas perfeitamente, como por exemplo, os relatos de como Pedro negou a Jesus e as narrativas da paixão de Cristo, etc."(33) Lutero percebe igualmente que existem às vezes uma certa imprecisão na linguagem do apóstolo Paulo. Comentando em 1.6 ele afirma, "Essa passagem não é tão clara ... pode ser interpretada de duas maneiras diferentes."(34) Lutero reconhece que os autores humanos estão cercados de fraquezas e limitações. Para ele, a presença e a atividade do Espírito nos instrumentos humanos não significava a abolição destas limitações inerentes à humanidade. Assim, ele acredita que Paulo foi um pouco áspero com os gálatas ao censurá-los dizendo, "ó gálatas insensatos" (3.1). Para Lutero, a rudeza natural do apóstolo não havia ainda sido totalmente subjugada pela atividade e habitação do Espírito.(35) Lutero também está consciente das muitas passagens difíceis nas Escrituras, que poderiam dar ocasião aos inimigos do Evangelho para levantar críticas contra a fé. Assim, comentando Gálatas 2.11, onde Paulo narra como resistiu a Pedro face a face, o reformador admite que esta passagem "tem dado a muitos — como Porfírio, Celso, Juliano, e outros — uma oportunidade de acusar a Paulo de soberba, pois atacou o chefe dos apóstolos na presença da Igreja".(36)

Devemos observar que Lutero tenta consistentemente explicar as passagens difíceis e por vezes não muito claras na carta aos Gálatas apelando para a intenção de Paulo nessas passagens. De acordo com ele, pode-se harmonizar a narrativa da estada de Paulo na Arábia com a omissão da mesma em Atos, "...prestando-se atenção somente ao propósito e intenção de Paulo em seu relato".(37) E ele fica ao lado de Agostinho na disputa com Jerônimo sobre o confronto entre Paulo e Pedro em Antioquia (Gl 2.11) porque acha que Jerônimo não entendeu o que estava em jogo com a atitude de Pedro, e assim perdeu de vista o ponto principal da passagem, fracassando em perceber a intenção de Paulo ao resistir a Pedro.(38)

Talvez seja relevante mencionar, a esta altura, que Lutero estava convencido de estar atravessando um período especial na história da interpretação bíblica. Ele reconhecia, por um lado, que existiam pontos obscuros nas Escrituras, como o próprio apóstolo Pedro havia admitido em relação aos escritos de Paulo (2 Pedro 2.15-16). Por outro lado, o reformador estava convicto de que boa parte da obscuridade estava sendo iluminada em sua época, a época da Reforma protestante. Por exemplo, ao rejeitar a interpretação papista do termo "santos" usado por Jesus e pelos apóstolos, Lutero afirma que o verdadeiro sentido do termo era óbvio, "agora que a luz da verdade está brilhando..."(39) Portanto, não é de se surpreender que nós o encontremos convencido de que está interpretando as Escrituras da única forma correta, "...com um espírito excessivamente maior e mais sensato (sem querer gloriar-me)" do que seus oponentes.(40)

A necessidade da iluminação do Espírito Santo

O segundo fator que controlava a exegese de Lutero era sua persuasão de que somente debaixo da iluminação do Espírito alguém poderia alcançar o verdadeiro sentido do texto bíblico. Este conceito fazia parte da sua convicção de que o cristão tinha o direito de examinar as Escrituras por si, e era uma reação ao controle exercido até então pela Igreja Romana.(41) Ele estava persuadido de que o Espírito Santo havia sido enviado à Igreja para revelar o Evangelho, a palavra divina.(42) A certa altura do comentário em Gálatas ele se queixa da interpretação bíblica feita pelos líderes de movimentos religiosos populares e radicais de sua época, dizendo: "Por não terem o Espírito, eles ensinam o que querem, e o que as massas acham plausível".(43) E aconselha aos que querem evitar esta armadilha: "...devotemo-nos ao estudo da Sagrada Escritura e à oração séria, para que não percamos a verdade do Evangelho."(44)

Essa convicção de Lutero tem papel importante em sua busca da intenção de Paulo como sendo o único sentido aceitável do que ele escreveu em Gálatas. Partindo do fato de que o Espírito Santo guiou os escritores das Escrituras, Lutero freqüentemente procura determinar a intenção do Espírito Santo, em uma determinada passagem, exatamente como procura determinar a intenção de Paulo. Para Lutero, ambas se confundem numa só, que é o sentido genuíno do texto. Comentando em Gálatas 4.30, "Lança fora a escrava e a seu filho", o reformador diz: "Devemos notar que aqui o Espírito Santo insulta os que são da lei e das obras chamando-os de ‘filhos da escrava’". E o que é ainda mais interessante, Lutero parafraseia o próprio Espírito Santo, como faz freqüentemente com Paulo. Várias vezes encontramos em seu comentário a expressão "É como se ele [o Espírito Santo] estivesse dizendo..."(45) Similarmente, quando interpreta 3.12, ele critica uma referência à "fé infusa" (fides caritates formata) feita por um comentarista medieval dizendo: "O Espírito Santo sabe falar. Se é como os ímpios sofistas acreditam, o Espírito poderia ter dito: ‘O justo viverá por uma fé infusa’ (fides formata). Mas ele omite intencionalmente a expressão e diz simplesmente: ‘O justo viverá pela fé’".(46)

Lutero chega ao ponto de atribuir ao Espírito Santo o que ele considera como imprecisões gramaticais da parte de Paulo. Comentando Gálatas 2.6, onde Paulo omite algumas palavras numa sentença, ele afirma: "é perdoável quando o Espírito Santo, falando através de Paulo, cometa alguns pequenos erros de gramática".(47) E mais adiante ele justifica a falta aparente de ordem e método de Paulo em 3.1 dizendo "o apóstolo está seguindo uma ordem esplêndida no Espírito".(48) Como já ressaltamos acima, é bastante discutível se podemos falar de erros gramaticais nos textos bíblicos. De qualquer forma, os exemplos acima servem para mostrar como, para Lutero, a intenção do Espírito Santo e a intenção do autor humano estavam intimamente ligadas.

Interação com outros estudiosos e suas obras

O terceiro fator era a consulta contínua que Lutero fazia de obras escritas por outros autores. A importância que Lutero atribui à iluminação do Espírito para o correto entendimento das Escrituras é evidente. Deveríamos acrescentar de imediato que ele não despreza os escritos e as opiniões de outros estudiosos e comentaristas. Ao contrário de alguns autores modernos que reivindicam entender as Escrituras através de revelações do Espírito, e que prestam pouca ou nenhuma atenção ao que o Espírito mostrou aos outros, Lutero entendia que podia aprender também com o que outros cristãos, sob a direção do Espírito, haviam aprendido das Escrituras. Não somente isto, Lutero consultava também obras de autores não cristãos. O seu profundo conhecimento da literatura da época transparece claramente em seu "Gálatas, 1535". Ele cita escritores gregos como Virgílio, Esopo, Aristides, Aristóteles, Cícero, Demóstenes, Ovídio, Plínio e Platão, para mencionar uns poucos. Ele demonstra familiaridade também com as obras de Eusébio, Suetônio, Quintiniano, Justino e Porfírio. Conhece também os escritos de alguns dos Pais da Igreja como Ambrósio, Orígenes, Cipriano, Ireneu e Jerônimo. Ele menciona também as obras de comentaristas medievais como Gregório de Nissa, Pedro Lombardo, Occam, Scotus, Tomás de Aquino e Bernardo de Claraval. E conhece também até mesmo as obras de Erasmo, a quem critica continuamente.

Lutero não somente cita esses autores — ele faz uma avaliação crítica do que escreveram. Por exemplo, ele rejeita a interpretação de Orígenes e de Jerônimo de que, em Gálatas 2.15, Paulo está dizendo que as cerimônias da Lei se tornaram fatais a partir da vinda de Cristo.(49) Mais adiante Lutero volta a criticá-los em seu comentário afirmando que ambos são os responsáveis por uma interpretação errônea de Gálatas 2.21, pois entenderam a "Lei" nesta passagem como sendo "Lei Cerimonial", uma interpretação que os sofistas, os escolásticos e Erasmo seguiam. Lutero considera que Orígenes e Jerônimo, nesta passagem, são "mestres extremamente perigosos".(50) E em outro lugar, ele acusa Jerônimo e seus seguidores de "lacerar miseravelmente esta [Gl 3.13] passagem."(51)

Lutero é um crítico implacável do Escolasticismo Medieval. Freqüentemente em seus comentários e escritos ele ataca suas interpretações das Escrituras. Ele critica a interpretação de Scotus e Occam sobre a justificação pelas obras, e após uma longa refutação das idéias desses escritores, Lutero apelida a doutrina destes de "um sonho dos escolásticos".(52) Mais adiante, adverte contra "o erro perigoso dos teólogos escolásticos", que ensinam que o homem recebe perdão dos pecados pelas obras que precedem a graça.(53) Lutero também rejeita as glosas produzidas por estes estudiosos.(54) Segundo Farrar, Lutero aprendeu a sentir o mais profundo desprezo pelas glosas da sua época."(55) Assim, Lutero rejeita uma glosa feita em Gálatas 2.16 a qual ensina que a fé justifica apenas quando o amor e as boas obras são adicionadas. "Com essa glosa perniciosa eles [os escolásticos] obscureceram e distorceram os melhores textos deste tipo", ele se queixa. Estas glosas, continua Lutero, "devem ser evitadas como veneno infernal".(56) "Que os sofistas se enforquem com suas glosas malignas e ímpias", troveja Lutero irritado, ao observar que a glosa de Gálatas 3.11 deturpa o sentido óbvio da passagem.(57)

Rejeição Consciente do Método Alegórico

Para sermos justos, devemos observar que algumas das principais características da hermenêutica de Lutero já haviam sido antecipadas por alguns exegetas medievais, até mesmo sua busca da intenção do autor como o sentido legítimo do texto. Embora a interpretação alegórica propagada por Orígenes no período patrístico tenha dominado a hermenêutica da Igreja na Idade Média, havia quem defendesse uma interpretação mais próxima do sentido literal dos textos bíblicos. Na realidade, este tipo de interpretação recebeu um grande ímpeto durante o século XII. Neste período vários estudiosos foram influenciados pela erudição judaica e especialmente pelas obras de Rashi, um influente estudioso judeu que defendia uma interpretação das Escrituras que fosse baseada no sentido gramático e histórico das frases — algo bem diferente das interpretações dos rabinos da época.(58)

Além das obras de Rashi, outro fator veio dar ímpeto a uma apreciação maior por interpretações menos alegóricas, que foi o surgimento das ordens monásticas mendicantes. Esses monges, em seu trabalho de evangelização, liam os Evangelhos de forma direta, simples e literal, como os da ordem fundada por Francisco de Assis. Além disto, o trabalho dos monges estudiosos Vitorianos, da escola da catedral da Abadia de São Hugo, trouxe ímpeto ainda maior ao movimento. No século XIII Tomás de Aquino, em que pese sua predileção pelo método alegórico, destacou o valor do sentido literal das Escrituras.(59) Foi no século XIV que este ímpeto atingiu seu ápice com Nicolau de Lira, cuja vasta erudição hebraica, profundamente influenciada pelas obras de Rashi, produziu uma hermenêutica preocupada com o sentido literal do texto bíblico. Segundo Farrar, "...uma ilha verdejante em meio às ondas mortas de uma exegese que se havia tornado lugar comum."(60) Por essa época, a separação entre os estudos bíblicos e o dogma teológico da Igreja já era demandado pelo influente Abelardo, na França.(61)

Entretanto, como observa Moisés Silva, em que pese a obra destes eruditos, "...a renovada apreciação pelo sensus literaris na Idade Média não representou um abandono da exegese alegórica".(62) A teoria introduzida por Orígenes, que cada passagem da Escritura tem vários sentidos, começando do literal até ao mais profundo, o espiritual, dominou de forma quase absoluta a exegese medieval.(63) O que marcou a hermenêutica de Lutero como radicalmente diferente da hermenêutica medieval foi seu propósito definido de romper com este método alegórico.(64)

Alegorias na Escritura

Lutero reconhecia que havia alegorias na Escritura. Em seu comentário em Gálatas ele detecta a presença de alegorias usadas por Paulo: "por quem de novo sinto as dores de parto" (4.19); "testamento" (3.14-17); "um pouco de fermento leveda toda a massa" (5.9), entre outras.(65) Naturalmente, Lutero está ciente da alegoria de Sara e Hagar em 4.21-27, onde o apóstolo vê nas duas mulheres dois sistemas de salvação incompatíveis e mutuamente exclusivos. Ele justifica Paulo dizendo: "o povo comum é profundamente tocado por alegorias e parábolas ... as quais trazem as coisas de forma clara diante dos olhos das pessoas simples, e por este motivo, têm um efeito profundo na mente..."(66)

Rejeição do sentido quádruplo da Escritura

Entretanto, em que pese esse endôsso do uso de alegorias, Lutero rejeitou de forma muito clara o estilo de interpretação alegórico usado pelos escolásticos medievais, e em especial, a idéia de que cada passagem da Escritura tinha quatro sentidos diferentes: (1) o literal, que era o sentido evidente da passagem; (2) o sentido moral, relacionado com a conduta humana; (3) o sentido alegórico, que era a verdadeira doutrina do texto; (4) e o sentido anagógico, que era uma referência à coisas celestiais. Lutero julgava que por usar este método os escolásticos "...interpretam erroneamente quase cada palavra da Escritura ... dividem cada passagem em muitos sentidos e assim privam-se de poder instruir de forma certa a consciência humana."(67)

Para Lutero, alegorias têm um valor limitado; são mais como quadros ou ilustrações, e não proporcionam demonstrações teológicas sólidas. Assim, a alegoria de Sara e Hagar não teria qualquer valor se antes Paulo não tivesse demonstrado com argumentos sólidos a justiça pela fé, sem as obras da lei. Alegorias devem ser fundamentadas no alicerce seguro da doutrina bíblica, da mesma forma que um quadro dependura-se na parede de uma casa solidamente construída. Para Lutero, alegorias devem ser controladas pela teologia e pelo bom senso: "se alguém não tiver um conhecimento perfeito da doutrina cristã, não poderá apresentar alegorias de forma eficaz."(68) Partindo deste princípio, ele rejeita as alegorias de Orígenes e de Jerônimo: "Estes dois merecem ser criticados, pois fizeram muitas alegorias inadequadas e desastradas de passagens simples das Escrituras, cujos sentidos nada tinham de alegórico."(69)

As alegorias de Lutero

Apesar de tudo, Lutero não conseguiu se livrar totalmente da influência do método alegórico de interpretação. Algumas vezes o encontramos dando um sentido ao texto que vai além do sentido gramático-histórico, como por exemplo, ao interpretar Gálatas 3.19: "Podemos entender a duração do período da Lei literalmente ou espiritualmente ... No sentido espiritual, a Lei só pode governar a consciência até o tempo da chegada ali do descendente abençoado de Abraão."(70) E interpretando 3.23, "antes que viesse a fé estávamos sob a tutela da lei, e nela encerrados, para essa fé que de futuro haveria de revelar-se", Lutero comenta: "...você deve aplicar [esta passagem] não somente ao tempo, mas também às emoções; pois o que ocorreu historicamente e temporalmente quando Cristo veio ... acontece individualmente e espiritualmente todo dia com cada cristão..."(71)

É necessário estarmos atentos para o fato de que em "Gálatas, 1535" Lutero tem uma atitude muito mais negativa para com alegorias do que em "Gálatas, 1519". Neste último, ele fala bem da teoria dos quatro sentidos do texto: "Estas interpretações adicionam um ornamento extra ao sentido legítimo e principal, de forma que um certo tópico fica mais ricamente adornado por elas." Lutero não as desaprova, embora reconheça que um sistema alegórico de interpretação "não é suficientemente apoiado pela autoridade das Escrituras."(72)

Alegoria e aplicação

Um exame mais de perto das alegorias de Lutero revela que ele lança mão deste tipo de interpretação quando aplica uma passagem a questões práticas relacionadas com a situação de seus leitores. Lutero era um homem da sua época, e mesmo que tivesse como alvo hermenêutico interpretar as Escrituras sem os pressupostos do seu tempo, seu contexto histórico e social teve um papel decisivo em sua exegese, especialmente em sua controvérsia com a Igreja Católica Romana, os Anabatistas e outras seitas.(73) Algumas considerações são necessárias neste ponto:

a) Lutero foi essencialmente um pregador. Ele interpretava as Escrituras com vistas a aplicar a mensagem do texto sagrado à sua própria situação, e à dos seus ouvintes. Este elemento pastoral sempre era decisivo quando ele estava diante de duas interpretações plausíveis de uma mesma passagem. Por exemplo, interpretando Gálatas 1.6 diz: "A interpretação que diz que é o Pai quem nos chama para a graça do Seu Filho é boa; mas a que diz que é Cristo, é mais agradável, e se presta melhor para confortar consciências atribuladas."(74)

b) O modus operandi das aplicações de Lutero é o que podemos chamar de congenialidade de contextos históricos. Lutero abertamente identificava o papa, os papistas, os escolásticos, sofistas e as seitas como um todo, com os judaizantes que perseguiram o apóstolo Paulo no século I, e contra quem ele havia escrito a carta aos Gálatas. O seu próprio confronto com os intérpretes católico-romanos e Anabatistas era, para Lutero, muito similar ao conflito de Paulo com os defensores das obras da lei para salvação (circuncisão, calendário religioso, e regras alimentares do Judaísmo). Tanto no caso de Paulo quanto no seu próprio, o mesmo princípio estava em jogo, ou seja, a doutrina crucial da justificação pela fé somente, em oposição à justificação pelas obras da Lei.(75) Portanto, não é surpresa encontrar Lutero afirmando em seu comentário a Gálatas que o papa é o anti-cristo, o qual, à semelhança dos judaizantes da época de Paulo, "...diz claramente que a Lei e a graça são duas coisas diferentes, mas na sua prática ensina exatamente o contrário". Os papistas são rapidamente identificados por Lutero como sendo os falsos mestres de Gálatas 2.18, "...destruidores do reino de Cristo e edificadores do reino do diabo, do pecado, da ira de Deus, e da morte eterna..." Os Anabatistas, Münzer, e até o reformador Zwinglio, são denunciados abertamente como tendo sido enfeitiçados pelo diabo, exatamente como os gálatas o foram (Gl 3.1).(76)

c) Uma outra consideração é pertinente neste ponto. O método costumeiro de Lutero de fazer aplicações práticas de uma passagem bíblica é, primeiro, determinar o sentido genuíno do texto, que geralmente é o literal, gramático-histórico. Segundo, Lutero descobre a "doutrina" ou o princípio ensinado naquela passagem. E terceiro, ele aplica este princípio a circunstâncias historicamente similares de seus dias, como se percebe facilmente de sua aplicação de Gálatas 1.6:

...qualquer um que ensine salvação pelas obras e justificação pela Lei perturba a Igreja e as consciências. Quem teria acreditado que o papa, cardeais, bispos, monges e toda aquela ‘sinagoga de Satanás’ ... são perturbadores das consciências dos homens? Na verdade, eles são muito piores do que aqueles falsos apóstolos da época de Paulo...(77)

E comentando os versos seguintes, onde Paulo amaldiçoa todos (mesmo anjos) que ensinam outro Evangelho (3.8-9), Lutero estabelece o princípio de que um cristão pode amaldiçoar os falsos mestres. E aplica este princípio à sua época, considerando anátemas todas as doutrinas contrárias ao ensino da salvação pela graça: "Com Paulo, portanto, pronunciamos corajosa e ousadamente uma maldição sobre toda doutrina que não concorda com a nossa."(78)

Avaliação da Exegese Gramático-Histórica de Lutero

Talvez a melhor maneira de avaliarmos a importância e a influência do sistema interpretativo de Lutero seja reconhecer o seu impacto na História da Interpretação que se seguiu à Reforma. A interpretação bíblica feita por estudiosos, comentaristas, exegetas e pregadores reformados conservadores, desde Lutero até hoje, tem sido controlada pelos princípios gerais de exegese originados com o reformador. Após a Reforma, um tipo de escolasticismo dogmático passou a dominar a exegese reformada e luterana. No período subseqüente, muitos estudiosos começaram a criticar de forma devastadora esse controle do dogmatismo sobre a exegese bíblica.(79)

No século dezoito o alemão H.A.W. Meyer inaugurou o que se chama "exegese filológica", onde cada palavra do texto original é dissecada, como uma cobaia no laboratório! O texto é submetido a uma análise meticulosa, palavra por palavra, e seu sentido teológico exato determinado à luz do contexto histórico, lingüístico, e cultural. Através deste exame detalhado e meticuloso do texto bíblico, os comentaristas procuram determinar a intenção de Paulo, a qual, dentro do sistema gramático-histórico, é o único sentido legítimo de uma passagem. Com o surgimento de edições dos textos bíblicos originais com aparatos críticos cada vez mais sofisticados, não somente o texto, mas as variantes mais importantes passaram a ser também analisadas e interpretadas. Esta é a abordagem que encontramos na maioria dos comentários críticos do Antigo e Novo Testamentos do século passado e deste século. Apesar dos pressupostos racionalistas de muitos comentaristas e estudiosos, a ênfase neste período à intenção do autor reflete a influência da exegese de Lutero.

Certamente a exegese moderna tem avançado além de Lutero, através das ferramentas da crítica textual, da filologia, e da lingüística — ferramentas que não estavam disponíveis ao grande reformador. E num certo sentido, tem levado o alvo de Lutero ainda mais longe que ele; pois enquanto Lutero aqui e acolá se deleitava em alegorizar algumas passagens, o estudioso moderno envolvido em interpretação bíblica gramático-histórica é mais comprometido com o sentido literal do texto bíblico. E, neste sentido, é mais como Calvino. Basta que se contrastem as interpretações de Lutero e Calvino do Salmo 8.

Finalmente, existe a tentação de atribuirmos a Lutero a tendência moderna que existe em alguns círculos eruditos de uma nova apreciação pelo sentido "espiritual" de uma passagem, tendência esta inaugurada por Schleiermacher e desenvolvida pela "nova hermenêutica."(80) Mas devemos certamente resistir a esta tentação. Lutero não reconheceria como sua filha legítima uma hermenêutica que procura o significado de um texto na mente da pessoa que o lê.

Podemos Aprender com Lutero?

Como afirmamos no início deste artigo, a crise doutrinária que aflige a igreja evangélica brasileira nasce de uma hermenêutica defeituosa, de um sistema de interpretação que, à semelhança dos tempos antes da Reforma, procura sentidos no texto inspirado que vão além daquele pretendido pelo autor bíblico. Essa alegorização das Escrituras feita nos púlpitos de muitas igrejas evangélicas brasileiras tem contribuído para a disseminação de inúmeros erros doutrinários. À semelhança do período medieval, quando este tipo de interpretação serviu de ferramenta para legitimar biblicamente doutrinas católicas posteriormente rejeitadas pelos reformadores, a hermenêutica da alegoria tem servido no Brasil evangélico como suporte para as doutrinas as mais estranhas. As igrejas de libertação a têm utilizado para a formação de práticas como correntes de oração do tipo "trombeta de Jericó", "cajado de Moisés", e para a introdução de um "fetichismo" cristão, onde um elenco interminável de objetos — desde fitinhas roxas até copos d’água — são usados como emblemas da fé. No auge do "dente de ouro", pregadores evangélicos procuravam justificar o fenômeno a partir de textos bíblicos onde a palavra "ouro" ou "boca" estivesse presente. O "urro sagrado" (praticado em igrejas relacionadas com o movimento da "bênção de Toronto" e da "gargalhada santa") é defendido com uma alegorização de passagens bíblicas onde Deus é representado como sendo um leão.

Em algumas situações, o princípio extraído alegoricamente do texto não chega a ser um erro doutrinário. É o caso do pregador mencionado no início deste ensaio, que extraiu à força da narrativa do desmamamento de Isaque o princípio bíblico correto de que devemos todos crescer e amadurecer na fé. Foi uma mensagem certa em um texto errado. Mas, a porta fica aberta para a infiltração do erro religioso, pois neste tipo de interpretação, o sentido do texto bíblico é deixado de lado, e o povo fica sem receber o genuíno leite espiritual da Palavra. Alimenta-se apenas das idéias criativas e da linguagem alegórica destes pregadores. Creio que o retorno a uma exegese cuidadosa do texto bíblico, à luz dos contextos históricos, da gramática e da sintaxe das línguas originais, produziria pregação expositiva das Escrituras, através da qual a igreja seria instruída, edificada, confortada e corrigida pela Palavra de Deus.

Ao mesmo tempo, é preciso que se esclareça que este artigo não está defendendo que somente uma elite de eruditos, familiarizados com as línguas originais das Escrituras e com o ambiente religioso, social, histórico e político da Antigüidade, pode descobrir o verdadeiro sentido de uma passagem bíblica. Ao meu ver, na grande maioria dos casos, este sentido é evidente e claro nas próprias traduções para as línguas modernas, e está disponível a todo cristão genuíno que deseja se conformar com o sentido original, direto, e simples da passagem.

Finalmente, acredito que toda aplicação das Escrituras para nossos dias (como ao final de um sermão) envolve uma certa medida de alegorização ou "espiritualização". Isto é inevitável, pois a aplicação exige que transponhamos a verdade bíblica para nossa própria situação. Mas mesmo aqui, devemos aprender com Lutero a controlar nossa aplicação pelo sentido gramático-histórico da passagem.

 English Abstract

In this article A. Lopes points out Luther’s main contribution for the History of the Interpretation, namely, his consistent search for the biblical author’s intention as the only and true meaning of a biblical text. Lopes develops this point by means of an analysis of Luther’s exegetical traits in his 1935 commentary on Galatians, such as sensitivity to the literary and historical context, Paul’s language, his use of paraphrases to express Paul’s thought and Luther’s use of allegories in application. The main factors that controlled Luther’s exegesis are also considered. Lopes also attempts to relate Luther’s contribution to modern day’s trends in exegesis and preaching. He believes that a return to a hermeneutics committed to the original intention of the biblical text would greatly help the modern church in Brazil, which, in Lopes’ view, is going through a very definite theological crisis, whose root is a defective hermeneutics.

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Notas

1 Paulo Romeiro, Evangélicos em Crise: Decadência Doutrinária na Igreja Brasileira (São Paulo: Mundo Cristão, 1995).

2 Veja a resenha do livro neste número de Fides Reformata.

3 Exemplos destas correntes atuais seriam: a teologia da libertação, a teologia da prosperidade, o neopentecostalismo, a batalha espiritual, a bênção de Toronto, os dentes de ouro, o riso santo, a quebra de maldições hereditárias, etc.

4 Utilizaremos a tradução em inglês, "Lectures on Galatians, 1535," contida em Luther’s Works, vol. 26, ed. Jaroslav Pelikan e Walter A. Hansen (Saint Louis: Concordia Publishing House), de agora em diante mencionada como "Gálatas, 1535". As citações desta obra, e de outras em inglês, são traduções minhas.

5 Martinho Lutero, "Lectures on Galatians, 1519 - Chapters 1-6" em Luther’s Works, vol. 27, ed. Jaroslav Pelikan e Walter A. Hansen (Saint Louis: Concordia Publishing House). Mencionado doravante como "Gálatas, 1519."

6 Cf. Frederic W. Farrar, History of Interpretation (Grand Rapids: Baker Book House, 1961) 323-4.

7 É interessante notar que em "Gálatas, 1519" Lutero tinha uma atitude bem mais branda para com Jerônimo e Erasmo de Rotterdam, as obras dos quais ele citava continuamente.

8 "Gálatas, 1535," 84-85. Por outro lado, essa praticidade de Lutero às vezes leva-o a um tratamento por demais rápido de certas passagens. Ver John Rogerson, et al., The Study and Use of the Bible (The History of Christian Theology 2; Basingstoke: Marshall Pickering and Grand Rapids: Eerdmans, 1988) 81.

9 "Gálatas, 1535," 216.

10 Ibid., 74.

11 Ibid., 8.

12 Ibid., 322.

13 Ibid., 186.

14 Ibid., 288. Alguns estudiosos têm observado o débito de Lutero a Faber Stapulensis pelo conceito do "sentido profético literal" do Velho Testamento, e pela distinção entre Lei e Evangelho. Ver, por exemplo, Rogerson, The Study and Use of the Bible, 78-80, 83-84.

15 "Gálatas, 1535," 101.

16 Ibid., 294.

17 Ibid., 21.

18 Ibid., 432.

19 Ibid., 100.

20 Ibid., 71, 101, 147, 139, 293. Mais uma vez lembramos que, para Lutero, o que ele percebia como falta de exatidão gramatical em autores bíblicos (se é que houve alguma) não comprometia em nada a autoridade das Escrituras.

21 Respectivamente, Ibid., 147, 293, 71, 101, 139.

22 Ibid., 32.

23 Ibid., 34.

24 Ibid., 217. Devemos, entretanto, ter cuidado para não forçarmos em demasia a diferença entre estas vozes. Moisés Silva nos adverte contra o usar aspectos do verbo para fundamentar pontos teológicos em "God, Language and Scripture" em Foundations of Contemporary Interpretation, ed. M. Silva, vol. 4 (Grand Rapids: Zondervan, 1990) 111-118.

25 "Gálatas, 1535", 101.

26 Ibid., 101-2. Cf. pi/stewj Ihsou= ("fé de Jesus," 2.16); eu)agge/lion tou= Xristou= ("evangelho de Cristo," 1.7).

27 Ibid., 49.

28 Ibid., 71.

29 Ibid., 190.

30 Ibid., 77.

31 Os Encratitas eram uma seita gnóstica do século II, fundada por Taciano, um apóstata cristão que se tornou famoso pela publicação do Diatessaron, a primeira harmonia dos Evangelhos de que se tem notícia.

32 "Gálatas, 1519", 127-8.

33 "Gálatas, 1535", 62.

34 Ibid., 47-48. Vale salientar mais uma vez que estas ambigüidades que Lutero percebia no texto não representavam, para ele, um ataque à sua crença na inspiração divina das Escrituras.

35 Ibid., 188-9.

36 Ibid., 106. Lutero está ao par da controvérsia antiga entre Agostinho e Jerônimo sobre a correta interpretação de Gálatas 2.11, e gasta algum tempo em discuti-la (Ibid., 85). Para uma perspectiva sobre o debate entre Agostinho e Jerônimo, ver Joseph W. Trigg, Biblical Interpretation (Message of the Fathers of the Church, 9; Wilmington, DE; M. Glazier, 1988) 251-95. Porfírio foi um filósofo pagão do século III A.D., um dos fundadores do neo-platonismo, e um crítico ácido do Cristianismo. Celso foi um filósofo pagão do século II A.D. que atacou o Cristianismo em seu livro Discurso Verdadeiro, onde questionava a encarnação de Deus, e denunciava o Cristianismo como uma ameaça ao Estado. Juliano (Flávio Cláudio Juliano), também chamado de Juliano o Apóstata, viveu no século IV, e foi o último imperador romano pagão. Embora fosse batizado como cristão, mais tarde rejeitou o Cristianismo, voltou aos cultos pagãos idólatras, e se tornou um perseguidor feroz dos cristãos.

37 "Gálatas, 1535", 62.

38 Ibid., 84-85.

39 "Gálatas, 1519", 82 e "Gálatas, 1535", 290.

40 Ibid., 22.

41 Rogerson, The study and Use of the Bible, 309.

42 "Gálatas, 1535", 73. A doutrina da relação inseparável entre o Espírito e a Palavra foi mais profundamente desenvolvida na época da Reforma por Calvino. Ver Augustus N. Lopes, Calvino, o Teólogo do Espírito Santo (São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1996).

43 Ibid., 46.

44 Ibid., 114.

45 Ibid., 457-58.

46 Ibid., 270. Lutero é bastante consistente em sua busca pela intenção do Espírito numa passagem. Vemos o mesmo método aplicado em outros comentários seus, como por exemplo no livro de Gênesis, ao analisar Gn 1.27 (cf. Luther’s Works, vol. 1, 59).

47 "Gálatas, 1535", 92.

48 Ibid., 186.

49 Ibid., 121.

50 Ibid., 180.

51 Ibid., 276.

52 Ibid., 129.

53 Ibid., 130.

54 "Glosas" eram notas explicativas que os estudiosos medievais colocavam às margens das Bíblias, e que depois eram colecionadas em um único volume. Para uma breve descrição e exemplos de glosas, ver Rogerson, The study and Use of the Bible, 65, 281.

55 Farrar, History of Interpretation, 326.

56 "Gálatas, 1535", 136-7.

57 Ibid., 268-73.

58 Para um estudo mais aprofundado sobre o Judaísmo Medieval e especialmente sobre Rashi, veja The Cambridge History of the Bible: the West from the Fathers to the Reformation , ed. G. W. H. Lampe (Cambridge: Cambridge University Press, 1989) 252-279.

59 Veja este surpreendente aspecto em Rogerson, The Study and Use of the Bible, 73. E para um estudo sobre o compromisso de Aquino com o "quádrupulo sentido da Escritura" veja Farrar, History of Interpretation, 269-72.

60 Farrar, History of Interpretation, 257.

61 Ibid., 259-60.

62 Moisés Silva, Has the Church Misread the Bible? The History of Interpretation in the Light of Current Issues (Grand Rapids: Zondervan, 1987) 34.

63 Para um estudo mais aprofundado sobre a teoria hermenêutica de Orígenes, veja sua obra On First Principles, livro 4, capítulo 2. Avaliações críticas podem ser encontradas em Farrar, History of Interpretation, 187-203; Silva, Has the Church Misread the Bible?, 38-41, 58-63.

64 Ver Patrick Fairbairn, Typology of Scriptures (Grand Rapids: Kregel Publications, 1989) 9.

65 Cf. "Gálatas, 1535", 430, 298-9; e "Gálatas, 1519", 127.

66 "Gálatas, 1535", 433.

67 Ibid., 440. Em seu comentário de Gênesis Lutero avalia a interpretação de Hilário e Agostinho dos seis dias da criação, e julga a interpretação de Agostinho "supérflua" (Luther’s Works, vol. 1, 4).

68 "Gálatas, 1535", 433.

69 Ibid., 433. Farrar analisa a inconsistência de Jerônimo em usar alegorias (History of Interpretation, 232-4). Veja também The Cambridge History of the Bible, 89-91.

70 "Gálatas, 1535", 317.

71 Ibid., 340.

72 "Gálatas, 1519", 311. Somente para "brincar de alegorizar," Lutero alegoriza a praga das rãs do Egito como sendo as glosas dos escolásticos, "as quais nos perturbam com seu coaxar incessante" (Ibid., 226-7).

73 Silva mostra como as pressuposições corretas podem ser usadas de forma criativa para uma compreensão genuina do texto bíblico, cf. Has the Church Misread the Bible?, 21-22.

74 "Gálatas, 1535", 49.

75 Muitos estudiosos hoje questionam se a justificação pela fé era realmente o tema de Paulo em Gálatas. Para uma avaliação desta tendência moderna nos estudos paulinos, veja Augustus N. Lopes, "Paulo e a Lei de Moisés: Um Estudo sobre as ‘Obras da Lei’ em Gálatas," em Chamado para Servir: Ensaios em Homenagem a Russell P. Shedd, ed. Alan B. Pieratt (São Paulo: Vida Nova, 1994) 65-74.

76 "Gálatas, 1535", 258-9, 144, 152 e 192.

77 Ibid., 52.

78 Ibid., 59

79 Cf. W. G. Kümmel, The New Testament: the History of the Investigation of its problems (Nashville: Abingdon, 1972) 51-52; S. Neil and T. Wright, The Interpretation of the New Testament (London: Oxford University Press, 1988) 4; Farrar, History of Interpretation, 358-9; Silva, Has the Church Misread the Bible?, 33-34. Infelizmente, com a influência do racionalismo, houve a separação final entre a exegese e dogmas (bíblicos) como o da inspiração e infalibilidade das Escrituras, dando origem à crítica moderna.

80 É interessante que a ênfase da moderna crítica literária bíblica no texto e no leitor, desprezando o sentido histórico e gramatical, acaba por achar sentidos no texto bíblico que absolutamente não faziam parte do sentido pretendido pelo autor. Neste aspecto, a "nova hermenêutica", como tem sido chamada, aproxima-se das alegorias escolásticos. Veja Trigg, Biblical Interpretation, 50-55; Rogerson, The Study and Use of the Bible, 389-91.