F. Solano Portela Neto
A vida do monge italiano Jerônimo Savonarola (1452-1498), geralmente apresentado como um dos precursores da Reforma do século XVI, abrangeu vários campos da atividade humana na cidade italiana de Florença. Existe, portanto, dificuldade em categorizá-lo. Teria sido ele um reformador, um político, um filósofo ou talvez um legislador?
A maior parte do que se escreveu sobre Savonarola aparece na forma de artigos, em enciclopédias ou em trechos de livros que narram a história do período. Livros exclusivos sobre ele, ou com partes extensas dedicadas à sua vida e atuação, são menos abundantes. Uma pesquisa em uma base de dados de 4.200.000 livros,1 revela apenas 49 livros2 que trazem Savonarola como o assunto principal ou como um dos assuntos principais. Como contraste, uma pesquisa na mesma base sobre o assunto "Martinho Lutero" apresenta o resultado de 748 volumes. Pesquisa semelhante em algumas bibliotecas brasileiras mostrou a disponibilidade de apenas 10 volumes escritos sobre Savonarola, quase que a totalidade de procedência italiana, nenhum de autor brasileiro, e apenas um desses traduzido para o português.3
A dificuldade, entretanto, de se classificar e entender Savonarola não advém em função de parcas fontes de consulta. Poderíamos até dizer que a quantidade de obras escritas sobre Savonarola é razoável. Entretanto, as mais extensas biografias são do período romântico e tendem a extrapolar o mero registro dos fatos e introjetar uma visão idealizada ao biografado. Como já indicamos, as múltiplas atividades e ações atribuídas a Savonarola possibilitam que autores o apresentem à luz dos seus interesses específicos, dificultando uma visão isenta de sua obra e vida. Como exemplo, os 49 livros acima referidos estão divididos de acordo com o quadro demonstrativo a seguir:
Livros sobre Girolamo Savonarola na Biblioteca do Congresso (Library of Congress) dos E. Unidos | |||||||
Tipo Autores Língua | Biografia | Lei, Política e Sociologia | Drama | Ficção | Arte | Teologia e Documentos Originais. | Total |
Inglês | Oliphant, Villari(2), Ridolfi, Weinstein, Erlanger | Roeder (3), Polizzotto | Gobineau, Guedry&Others | Eliot | Steinberg, Weinstein | 12 | |
Italiano | Ridolfi, Gualazzi, Cordero, Violi, Scaltriti, Verde&Others | Scaltriti, Scaltriti, Pajardi | Rizzatti | Turelli&Others | Pala, Ferrara, Savonarolaa, Verdea, Neri, Savonarolab (2), Verdeb Domenicane | 19 | |
Francês | Paul, Hugedae, Gobineau, Antonetti | Vaedrine | 5 | ||||
Alemão | Bauer, Herrmann, Piper | Fuhr | Boni | Lipp | 6 | ||
Húngaro | Nagy | Barabaas, Nagy | 3 | ||||
Espanhol | Huerga, Turiel | 2 | |||||
Checo | Hristiac | 1 | |||||
Holandês | Fontijn | 1 | |||||
TOTAL | 21 | 7 | 4 | 5 | 3 | 9 | 49 |
O livro mais importante sobre a sua vida é, possivelmente, La Storia de Girolamo Savonarola e de Suoi Tempi, Narrata da Pasquale Villari Con Laiuto di Nuovi Documenti (1850). Este livro, escrito pelo Prof. Pasquale Villari, está também disponível na língua inglesa4 e é um documento histórico precioso. A obra de Villari demonstra o cuidado e a incansável pesquisa que caracterizam eruditos dedicados. O seu trabalho é bastante abrangente cobrindo todos os pontos da vida de Savonarola. O livro fornece considerável informação sobre o pano de fundo histórico dos eventos e contém comentários valiosos sobre a filosofia, teologia e prática homilética de Savonarola. A sua precisão se estende a minuciosos detalhes. O livro de Villari é utilizado quase sem exceção por todos os livros posteriores escritos sobre a vida de Savonarola, firmando-se como um padrão e palavra de autoridade final, e foi o livro de utilização mais ampla neste ensaio.
Dois autores alemães são mencionados por Villari como importantes biógrafos de Savonarola: Rudelboch (Hamburgo, 1835) e Meier (Berlim, 1836).5 O primeiro, nos indica Villari, tenta se concentrar na doutrina de Savonarola, enquanto que o segundo na parte histórica dos eventos. No seu prefácio, Villari critica estes biógrafos alemães de Savonarola, indicando que eles exageram as tendências protestantes do frade. Esse é realmente um ponto nevrálgico de vários biógrafos corretamente identificado por Villari, principalmente quando o relato provém do campo protestante. Sobre esta questão pretendemos, posteriormente, traçar alguns comentários.
William Crawford escreveu um livro que se colocaria como o segundo em importância, em nossa avaliação.6 Ele utiliza o livro de Villari como diretriz, mas evidencia ser um estudioso independente de Savonarola, apresentando algumas pesquisas próprias. Ralph Roeder é outro autor que escreveu uma biografia de fácil leitura, mas de profundidade histórica menos intensa.7 Alguns outros livros escritos especialmente sobre Savonarola são de menor importância e com altos e baixos de qualidade.8 Extensa informação pode também ser encontrada em bons livros de história que cubram o período.9
Finalmente, existem alguns documentos originais que foram compilados e publicados. De autoria do próprio Savonarola, temos partes da Bíblia que utilizava, com alguns comentários,10 algumas cartas e tratados apologéticos,11 bem como um trabalho sobre o livro de Apocalipse,12 um tema favorito de Savonarola em suas pregações.
O propósito deste artigo, além de apresentar o campo disponível para pesquisas sobre o monge dominicano e as fontes utilizadas, é traçar um breve perfil histórico de Jerônimo Savonarola, concentrado nos seus anos de maior atuação e influência em Florença, e examinar o posicionamento de algumas de suas idéias, traçando um paralelo destas com a visão de Lutero e Calvino, numa tentativa de discernir se poderíamos classificá-lo como um pré-reformador teológico, como tem sido a tendência nos círculos protestantes.
Jerônimo Savonarola nasceu em 21 de setembro13 de 1452 em uma das mais importantes cidades da ItáliaFerrara, na época uma das cortes mais importantes do país, com cerca de 100.000 habitantes. Filho de Niccolo e de Elena Savonarola, Jerônimo foi o terceiro dos sete filhos do casal. Alguns biógrafos o apresentam como uma criança precoce, possuída por uma inteligência superior, mas os trabalhos mais sérios contestam esta visão. "A única marca característica de sua juventude era a sua seriedade", diz Crawford.14 Aparentemente ele não era uma criança atraente, " pois não era nem bonito nem brincalhão, mas sempre sisudo e controlado".15
Os Savonarolas possuíam profundas raízes na história italiana. Alguns dos ancestrais de Jerônimo estavam registrados nas crônicas, como personagens importantes da história local. O mais importante Savonarola, além de Jerônimo, foi seu avô Michele, conhecido por seu trabalho médico e pelo amor devotado ao neto que se tornaria famoso. A reputação médica de Michele Savonarola levou-o a uma " cadeira na Universidade de Ferrara e à sua indicação como médico particular de Niccolo dEste".16 Por influência de seu avô, Jerônimo foi levado à sua casa e ali estudou medicina até os dezesseis anos. Aplicando-se aos estudos, desenvolveu, em paralelo, um forte senso de devoção que o levaria, no cômputo final, à vida monástica. Roeder assim descreve esta situação:
seu avô estava gratificado; ele previu o desenvolvimento de um médico metafísico que excederia a sua própria pessoa, mas ainda não estava satisfeito. Encorajado pelo seu sucesso, e sendo ele próprio uma pessoa de intensa devoção, procurou melhorá-lo derramando toda a sua piedade naquela jovem mente. Ali ele encontrou uma resposta ainda mais profunda.17
Após a morte de seu avô, Jerônimo foi educado por seu pai por dois anos adicionais antes de ser enviado à universidade, onde estudou cinco anos. A vida na universidade foi o seu primeiro contato com o mundo e ali ele se conscientizou dos grandes males da sociedade ao seu redor. A iniqüidade do homem, a corrução da sociedade, a grande miséria do mundo, eram todas coisas completamente adversas à sua formação. Ele deixou de ver necessidade ou de ter o desejo de dar continuidade aos estudos médicos, mas começou a ansiar por uma dedicação de sua pessoa às coisas de Deus e ao lado espiritual de sua vida. "Desgostoso com o mundo, decepcionado em suas esperanças pessoais, cansado dos constantes erros que observava e para os quais não possuía as soluções, ele decidiu temporariamente dedicar-se à vida no mosteiro "18
Jerônimo, como médico, era a esperança do seu avô e dos seus pais. Estes não admitiam que nada viesse a desviar o jovem da brilhante carreira à frente e se decepcionaram com a decisão tomada. Esta decepção e amargura está refletida no conteúdo das cartas trocadas entre Savonarola e seu pai logo após a sua entrada na vida monástica. Isso ocorreu no festival de S. Jorge. Os seus pais estavam, com o restante da cidade de Ferrara, participando das festividades, quando Savonarola fugiu de casa indo para Bolonha.19 O seu pai escreveu depois, em profunda tristeza:
Lembro-me como no dia 24 de abril, dia de S. Jorge, em 1475, Jerônimo, meu filho, estudante das artes, saiu de seu lar dirigindo-se a Bolonha, juntando-se aos irmãos de São Dominic, com o intuito de tornar-se também um irmão. Ele deixou-me, Niccolo delle Savonarola, seu pai, palavras de consolo e exortação, para minha satisfação.20
Savonarola passou sete anos no mosteiro dominicano de Bolonha. Começou a estudar intensamente a Bíblia e as doutrinas da Igreja. Durante a sua vida no mosteiro, encontrava conforto na oração e no jejum. Logo foi comissionado a instruir os noviços.
Enquanto estudava a Bíblia, Savonarola começou a verificar, em paralelo, os males e a corrução reinantes na Igreja. Descobrindo a verdade sobre o que ocorria por trás das paredes do mosteiro, Savonarola teve o seu coração
tomado por intenso pesar e movido por uma indignação irreprimível, ao verificar a deterioração e corrução da igreja cristã O estado do mundo e da Igreja o preencheram com um pesar cheio de horror que só era aliviado através do estudo e da oração.21
Savonarola foi se achegando mais e mais à Bíblia ao ponto em que ela se tornou o seu guia inseparável.
Em 1481 foi enviado a Ferrara, para pregar. Ali o ditado citado por Jesus de Nazaré (Lc 4.24) foi ratificado e ".. ele parece que causou pouca impressão em sua cidade natal".22 O seu ministério em Ferrara foi interrompido por uma guerra civil. Isso fez com que se deslocasse até Florença alojando-se no mosteiro de S. Marcos. Durante os próximos anos permaneceria em Florença sem despertar atenção maior. Em 1482 ele foi o orador de uma reunião de Dominicanos. Entre os seus ouvintes estava um leigo ilustre: Giovanni Pico, conde de Mirandola (Pico della Mirandola).
O assombroso conhecimento que fez de Pico a maravilha de sua geração e uma autoridade, mesmo em sua adolescência, em praticamente qualquer assunto que viesse a tratar, deu um peso todo especial aos seus elogios. Naquela augusta assembléia, estes elogios foram derramados sobre um de seus membros mais obscuros. Naquele delegado de S. Marcos ele reconheceu aquela qualidade que lhe faltava, e aquela que ele mais invejavaconvicção.23
Este foi o momento em que a carreira de Jerônimo Savonarola começou a trilhar o caminho ascendente que o colocaria em destaque junto às outras figuras internacionais do seu tempo.
No crepúsculo da Idade Média e no limiar da Europa moderna a história foi caracterizada por uma ascensão gradativa da classe média. Progredindo do feudalismo às novas monarquias, a classe média foi adquirindo cada vez mais influência. "Sob o feudalismo ninguém era soberano. O rei e o povo, os senhores e os servos, estavam unidos por um tipo de contrato. Cada um desses devia algo ao outro".24 Por outro lado temos os reis que surgiram em meados do século XV, conhecidos como os Novos Monarcas. Eles estabeleceram um sistema social completamente diferente, no qual as guerras entre os nobres eram suprimidas, a unidade nacional enfatizada e a lei e a ordem eram o objetivo principal. "Estes arrolaram como ponto de apoio os integrantes da classe média, nas cidades, que estavam cansados das guerras privadas e dos hábitos extravagantes dos nobres feudais".25
O feudalismo e as novas monarquias ocorreram em paralelo durante algum tempo, mas existe um outro importante aspecto nas condições sociais daquela época que aconteceu nesse período de sobreposição. Referimo-nos à ascensão das cidades, situação na qual a classe média teve importante papel.
Nos séculos IX e X as antigas cidades haviam se deteriorado. Os grandes centros comerciais haviam desaparecido e com eles a classe mercantil. Com o desenvolvimento do comércio a longas distâncias os comerciantes iniciaram a formação de bases permanentes. As cidades começaram a emergir, em tamanho e em importância como novos centros comerciais, baseadas em razões econômicas e com o apoio da classe média. Como uma conseqüência natural da base econômica dessas novas cidades, os comerciantes começaram a se envolver na política. O desejo era na direção de um auto-governo e de efetivar a quebra de todos os laços políticos e do poder dos bispos e dos nobres. "No século XIII várias cidades na Europa haviam adquirido o direito de decidir o seu próprio destino".26 Muitas dessas cidades tornaram-se completamente independentes, especialmente na Itália, onde prevalecia a falta de unidade política. Algumas delas migraram para uma forma republicana de governo, tornando-se, em essência, repúblicas independentes.
A cidade de Florença está inclusa nessa categoria das repúblicas independentes.27 A forma de governo daquele período, apresentada na República de Florença, abrigava provisões de ampla representatividade de todas as classes, especialmente da classe média.Foi em Florença que Jerônimo Savonarola passou a maior parte de sua vida. A cidade vivia primariamente de sua indústria.28 A energia dos florentinos estava focalizada especialmente na indústria e na política. "Algumas vezes parecia que revolução era o principal esporte ao ar livre, de Florença, e legislação constitucional o principal esporte praticado nos espaços internos".29
Em 1434 um novo partido rico, liderado por um banqueiro local, Cosimo de Medici, chegou ao poder.
Durante quase sessenta anos após 1434, Cosimo e o seu neto Lorenzo, o Magnífico (m. 1492) administraram a cidade manipulando a sua constituição republicana. Cosimo era um banqueiro sugado pela política por seus interesses financeiros e que nela foi forçado a permanecer para salvar a sua própria pele.30
Lorenzo, por outro lado, estava menos interessado nos negócios bancários. Ele era na realidade um déspota típico que devotou a sua energia, dinheiro e visão estética à tarefa de expandir e embelezar a cidade.
Fora da Itália, " as novas monarquias estavam criando órgãos administrativos centralizados de governo, os quais, quando comparados aos antigos métodos feudais, apresentavam um gerenciamento político eficaz e mais poder de ação para o estado".31 Estes estados cresceram em poder em proporção direta aos seus interesses políticos e territoriais. Começaram a se equipar com o que havia de mais moderno em armas de fogo, artilharia e na organização de suas forças armadas. Em 1494 Carlos VIII, da França, invadiu a Itália que estava muito dividida para expelir os invasores franceses. Várias outras invasões se seguiram a estas e a Itália se tornou " o campo de batalha para as forças que lutavam pela regência da península".32
No final do século XIII, a Igreja atingiu o seu ápice administrativo, em riqueza e em poder. Após essa situação, podemos observar um rápido declínio na Igreja Católica Romana, tanto de poder como de moralidade. O declínio de poder foi provocado por um confronto com as forças existentes, externas ao papado. Estas haviam existido por gerações antes do século XIII, mas após esta era tornaram-se fortes demais para permanecerem isoladas nos antigos limites. "Algumas destas forças, em especial, eram as novas monarquias nacionais e as classes comerciais nas cidades".33
Uma causa importante que contribuiu para o declínio moral da Igreja foi a idéia comum que atingiu a administração e que levará a ruína qualquer organização pública " a de que a instituição existe para o benefício daqueles que conduzem os seus rumos".34 O declínio na moralidade começou com a instituição do papado e rapidamente atingiu todos os ramos e aspectos da Igreja Católica. Assim era a situação da Igreja durante a vida de Savonarola.
"Savonarola começou a adquirir a sua reputação como um profeta de julgamento, chamando os homens ao arrependimento".35 Sua fama como pregador estava crescendo e, pela intervenção de Pico della Mirandola em 1490 foi chamado por Lorenzo de Médici. A Savonarola foi oferecida a prelazia do Mosteiro Dominicano de São Marcos. Após assumir estas responsabilidades o sucesso de Savonarola foi imediato.
O costume do mosteiro era o de que o novo reitor fosse prestar uma homenagem e demonstrar os seus respeitos e gratidão a Lorenzo, o Magnífico. Savonarola, demonstrando a coragem e determinação que o caracterizariam nos anos seguintes, recusou-se a cumprir com esta prática e disse: "Considero que devo minha eleição somente a Deus e a ele, somente, jurarei obediência".36 Lorenzo ficou profundamente ofendido com este fato. Ele estava esperançoso de contar com a amizade e apoio do frade que despontava como um poderoso pregador e que crescia em popularidade dia após dia. Lorenzo disse: "Vocês viram? Um estranho veio até a minha casa e mesmo assim ele não separa um tempo para me visitar".37
Logo Savonarola começou a exercer grande influência entre o povo comum de Florença. Seus sermões proféticos asseguravam-lhe grande popularidade. Seus sermões de condenação dos males da Igreja fizeram com que fosse odiado por uns mas admirados por outros. Ele era severo no julgamento do caráter das pessoas e pregava seus sermões com ousadia, sempre expressando o pensamento de que não temia homem algum. Cedo começou a sentir aversão por Lorenzo, o Magnífico, como nos indicam estas duas citações:
Sabedor dos danos causados à moral pública pelo príncipe, [Savonarola] não tinha qualquer desejo de aproximar-se de um tirano que ele considerava não apenas um adversário e destruidor da liberdade, como também o principal obstáculo na restauração da vida cristã entre as pessoas.38
Rapidamente Lorenzo começou a ressentir-se da influência exercida por aquele monge descompromissado, o qual não se contentando em limitar-se às suas exortações morais, pregava com confiança a vinda de um conquistador estrangeiro, a queda do Magnífico, a precariedade do papa e a ruína do rei de Nápoles.39
O papa, na ocasião, era Inocêncio VIII, que ficou conhecido por ser um dos expoentes da corrução do papado. Ele havia sucedido a Sixto IV e possuía um íntimo relacionamento com os Medici de Florença. Um filho natural de Inocêncio havia casado com uma filha de Lorenzo. Em contrapartida, ele havia nomeado um filho de Lorenzo (um adolescente com apenas treze anos) cardeal! Savonarola com freqüência denunciava esta aberração.
Lorenzo de Medici faleceu em 1492, mas antes de morrer havia chamado Savonarola para com ele se confessar. Como uma condição para a absolvição dos seus pecados, Savonarola exigiu que Lorenzo restaurasse a Florença as suas antigas liberdades.40 Lorenzo não concordou com a condição imposta e Savonarola retirou-se sem absolvê-lo.41 Nesse mesmo ano ocorreu a morte de Inocêncio VIII sendo ele sucedido pelo Papa Alexandre VI.
O sucessor de Lorenzo foi Piero de Medici e Savonarola revelou ser o homem mais poderoso daquela república. Nessa condição ele começou a profetizar a queda dos Medici e foi bem sucedido em direcionar uma grande parte da população de Florença contra eles.
Savonarola havia predito que alguém cruzaria os Alpes e descarregaria a vingança de Deus por sobre a Itália. Nessa ocasião ocupava o trono da França o rei Carlos VIII, descrito como " um jovem de vinte e dois anos, cheio de uma estranha paixão pela aventura".42 Carlos VIII tinha pretensões ao trono napolitano, mas o seu objetivo era a conquista de toda a Itália. Esse seria o primeiro passo de uma grande cruzada contra os turcos, com a qual ele pensava em imortalizar o seu nome. No dia 22 de agosto de 1494 ele cruzou os Alpes iniciando uma bem-sucedida marcha francesa contra os italianos.
Os franceses foram auxiliados pela incapacidade de Piero de Medici e assim ganharam várias batalhas e asseguraram o controle do território toscano, que pertencia a Florença. A população ficou decepcionada e indignada, ao ponto de fazer com que Piero de Medici, sentindo a gravidade da situação, viesse a deixar a cidade.
No dia 4 de novembro os cidadãos mais velhos convocaram uma reunião especial do conselho dos setenta, para poderem decidir as providências que deveriam ser tomadas. Todos os membros apoiavam ou haviam sido nomeados pelos Medici, mas estavam tão enraivecidos pela rendição covarde das fortalezas que a reunião foi tomada pela atmosfera de uma assembléia republicana.43
Como resultado, Piero foi declarado " incapaz de reger o estado".44 Decidiu-se também que seriam enviados embaixadores para encontrar os franceses e informá-los de que a cidade estava predisposta a recebê-los. O padre Jerônimo Savonarola foi um dos embaixadores escolhidos " porque havia conquistado o apreço de todo o povo".45
Na realidade o povo passou a olhar os franceses como os cumpridores das profecias de Savonarola. Os embaixadores liderados por Savonarola conseguiram expressar ao rei invasor os mesmos sentimentos presentes na população de Florença que o rei era um instrumento nas mãos de Deus para que efetivasse o castigo da nação, pelos seus crimes. Savonarola ganhou o respeito do rei e o acordo de que ele apenas passaria pela cidade sem causar-lhe dano.
A invasão dos franceses é um ponto de grande importância, pois resultou na queda dos Medici e no estabelecimento de uma nova forma de governo para a cidade de Florença.
No momento em que os franceses deixaram a cidade de Florença, a república viu-se dividida entre três partidos diferentes. O primeiro, dirigido por Savonarola, era o dos Piagnoni, e tinha como principal demanda a formulação de uma constituição democrática. O segundo partido era formado por pessoas que haviam compartilhado o poder com os Medici, mas que haviam se distanciado deles e eram chamados os Arabbiati. O terceiro partido era composto dos seguidores fiéis dos Medici, chamados os Bigi.
Esses três partidos se igualavam em poder. Um governo eficaz, sob o antigo sistema florentino, parecia uma impossibilidade real. Savonarola apresentou a necessidade de formação de um grande concílio no qual todos os cidadãos de Florença estivessem representados.
Esse concílio foi formado e declarado soberano em 1º de julho de 1495. O partido do povo se achava, agora, em pleno controle da situação e a vontade do povo era regida por Savonarola. Tudo parecia conspirar para o aumento da popularidade do pregador e para o acréscimo do seu poder.46
Savonarola permaneceria no poder durante os próximos quatro anos. Sua atuação foi marcada por reformas morais, que se seguiram às reformas políticas, já efetivadas. Ele proclamou, em Florença, o "Reino de Cristo" e continuou suas denúncias contra os vícios e a luxúria. Prosseguindo na tradição medieval de pregação, já bem estabelecida, ele apresentava e condenava os males da sociedade florentina. Sua pregação influenciava tanto os ricos como os pobres. Um dos biógrafos, possivelmente utilizando a palavra converter fora do estrito sentido bíblico do termo, escreveu: "Ele converteu a muitos da classe artística. Michelangelo, Botticelli, Cronacor, Lorenzo di Credi; dois da família della Robia e Bartolommeo della Porta se achegaram à catedral de São Marcos."47
O resultado das pregações de Savonarola foi sentido nas atitudes dos florentinos. Os incidentes conhecidos como as "fogueiras das vaidades," em 1497 e em 1498, refletem a receptividade dos habitantes de Florença às orientações de Savonarola: "grupos de jovens foram organizados para percorrerem a cidade coletando os símbolos da vaidade e do mal para serem destruídos."48 Esses objetos eram queimados em uma grande fogueira erguida na praça central da cidade.
Muito tem sido escrito sobre estas fogueiras. Alguns livros chegam a apresentar Savonarola como sendo um inimigo reacionário das artes em função do que grandes artistas fizeram, como Botticelli, que "queimou muitas de suas telas".49 Mas a maioria dos seus biógrafos apresenta Savonarola como um estudioso de amplo entendimento, sendo ele próprio um amante das artes, que não poderia ser culpado dos excessos cometidos nas "fogueiras das vaidades".
Era inevitável que esse movimento independente por reformas, apesar de poderoso, viesse a colidir com os interesses e com a política do papado. O Papa Alexandre denunciou Savonarola como herege e interditou suas atividades como pregador. Inicialmente Savonarola obedeceu a determinação, mas finalmente disse que Deus lhe havia revelado que não deveria se submeter a um tribunal corrupto, e continuou a pregar. Começava a surgir, também, a oposição do ponto de vista político fazendo com que o frade viesse a perder grande parte do seu antigo apoio popular. "Nesse meio tempo a rivalidade existente entre as ordens monásticas, encorajadas pela corte de Roma, produziu a demanda, ao Papa, de um líder que viesse combater a Savonarola".50
Um frade dominicano Francisco de Apulia desafiou Savonarola a passar pela fogueira junto com ele para ver qual dos dois contava com a aprovação de Deus. Savonarola recusou o desafio, mas um amigo devoto, Frade Domenic Buonvicino, disse que passaria pela prova em seu lugar. Toda a população de Florença recebeu a notícia com expectativa e alegria. No dia 17 de abril de 1498 uma plataforma foi erguida na praça pública de Florença. Nela foram colocadas grandes pilhas de madeira, separadas por um espaço estreito, o qual deveria ser atravessado pelos frades, enquanto o fogo consumia as fogueiras.
Uma grande discussão ocorreu quando os dois frades chegaram ao local. Os oponentes de Savonarola não queriam permitir que o frade Buonvicino entrasse no corredor de fogo carregando uma cruz. Insistiam que ele deveria percorrer o trajeto sem qualquer forma de proteção divina. A disputa foi ficando acalorada. As horas que se seguiram são descritas da seguinte forma por Jean C. L. Sismond: Várias horas haviam se passado. A multidão, que havia suportado a longa espera, começou a sentir-se faminta, sedenta e a perder a paciência. Repentinamente uma chuva torrencial caiu sobre a cidade vertendo um fluxo considerável de água dos telhados sobre os presentes. As pilhas de madeira ficaram tão encharcadas que não podiam ser colocadas em fogo. A multidão decepcionada, que havia aguardado com tanta impaciência a manifestação de um milagre, começou a dispersar-se com a noção de que havia sido manipulada. Savonarola perdeu todo o seu crédito e passou a ser considerado, daí para frente, como um impostor.51
Nos dias que se seguiram, o mosteiro foi tomado pelos Arabbiati, que se aproveitaram da inconstância da multidão. Savonarola foi preso, juntamente com dois amigos. Juízes foram enviados de Roma por Alexandre VI com a ordem de efetivar a condenação de Savonarola à morte. Iniciou-se um julgamento no qual a utilização de tortura foi freqüente. No dia 23 de maio de 1498, no mesmo local onde seis semanas antes fogueiras haviam sido erguidas antevendo um triunfo, os três monges foram queimados vivos.52
Muitas pregações de Jerônimo Savonarola chamam a atenção pelo seu caráter "profético". Com isso queremos dizer que elas não se constituíam apenas em exposições dos textos bíblicos e aplicação às condições dos seus ouvintes e do seu tempo. A maioria delas vão mais além e representam verdadeiras predições detalhadas de eventos futuros, principalmente aqueles relacionados com Florença seus dirigentes e seus invasores e com a instituição do papado. O fascínio da Savonarola com o futuro começou com o seu estudo do livro de Apocalipse e com as pregações sequenciadas realizadas com base nesse livro da Bíblia.53 Sua pregação nem sempre teve essa característica profética. No início ela era concentrada nas denúncias dos males e na necessidade de arrependimento. "Arrependei-vos!" "O julgamento de Deus não tarda!" "Uma espada está suspensa sobre vossas cabeças!" Todos esses eram temas freqüentes de suas pregações que revelavam intensa sinceridade de coração. Os seus ouvintes, entretanto, começaram a vislumbrar inferências proféticas. As ilustrações e abundantes alegorias passaram a ser rotuladas como sendo "visões", pelos florentinos, que as conectavam com os fatos que haveriam de ocorrer.
Savonarola passou a ser identificado como um "profeta" ao ponto de Pico della Mirandola dizer: "Savonarola pode ler o futuro tão claramente quanto uma pessoa qualquer pode identificar que um pedaço é menor do que a totalidade de uma coisa".54 Simplificando um pouco o complicado raciocínio medieval de Mirandola, ele está afirmando que, para Savonarola, a previsão do futuro era tão simples e natural como a mais básica percepção da pessoa comum. Neste estágio inicial, provavelmente Savonarola apenas apresentou um poder de análise acima da média e uma aguçada conscientização do mal, ou como diz um autor, ele " viu com maior clareza do que as outras pessoas aquilo que era inevitável".55
Com o passar do tempo, entretanto, começou a julgar-se um profeta no sentido de um recebedor de revelações diretas de Deus. Não obstante estar pregando sobre o livro de Apocalipse, Savonarola não foi alertado para a suficiência, tanto do próprio livro,56 como da própria Palavra de Deus,57 e começou a dar crédito às afirmações populares de que era um visionário, passando até a propagar que possuía tais qualificações. Em seus últimos anos ele profetizou de forma incontrolável, acreditava que tinha visões e demonstrou um comportamento mais característico do fanatismo do que aquele que procede de um cérebro equilibrado.58
Esse lado "profético" do ministério e vida de Savonarola foi excessivamente enfatizado tanto pela população, como por ele próprio, em seus últimos anos. O mesmo ocorre com vários de seus biógrafos, que o apresentam como tendo essa característica em toda a sua vida de pregador. Realmente a ênfase nas "visões" não representa o aspecto mais saudável da vida de Savonarola, mas concentração nesse aspecto místico desvia o enfoque daquilo que foi o maior mérito do frade: a denúncia dos males da Igreja Católica e as suas reformas políticas moralizadoras locais.
Um ponto aparentemente pacífico, mas que clama por uma reflexão, é a classificação de Savonarola como um reformador ou pré-reformador. Savonarola foi um reformador no sentido de que ele batalhou por pureza moral e lutou contra os males sociais de seu tempo. Com relação à igreja, ele conclamava a uma mudança de costumes e práticas. Na esfera política e legal, ele também foi um reformador pois teve o papel principal no estabelecimento de uma nova forma de governo na cidade de Florença, consideravelmente distinta da anterior.
Savonarola, entretanto, não pode ser considerado um pré-reformador ou mesmo um reformador eclesiástico no sentido em que o termo tem sido aplicado a Huss, Lutero ou Calvino. No estrito senso da palavra, um reformador deveria ter contribuído de alguma maneira para o restabelecimento das doutrinas bíblicas, ter tido parte ativa na remoção do entulho das tradições humanas que soterraram as verdades da Palavra de Deus. A questão de restauração doutrinária excede à demonstração de um mero zelo moral e sociológico que se apresentam como as características principais de Savonarola. Ela excede até a expressão de intensa sinceridade pessoal, que ele aparentemente possuía.
É verdade que o frade de Florença é freqüentemente apresentado por seus biógrafos como sendo exatamente um reformador. Uma enciclopédia biográfica o descreve como " um reformador antes da Reforma".59 Um historiador da Reforma do Século XVI chama Savonarola de "precursor da Reforma".60 O exame mais apurado de suas pregações, entretanto, revela realmente o desejo de uma reforma moral, mas não doutrinária. Nesse sentido ele não tem paralelo aos reais reformadores.
Ele não assumiu para si o direito de examinar doutrinas mas limitou seus esforços à restauração da disciplina, à reforma da moralidade do clero, a chamar os padres, bem como os demais cidadãos, à prática dos princípios do evangelho.61
Lutero, comparativamente, também mostrou preocupação quanto aos males morais, mas foi à raiz dos problemas e realizou uma reforma doutrinária que afetou a estrutura completa da Igreja Católica. Na visão de Lutero, a Igreja deveria retornar à pureza doutrinária dos dias dos apóstolos. As reformas morais foram uma conseqüência inevitável dessa ênfase, mas não subsistem como causa perene de mudanças. A própria Igreja Católica teve em seus quadros homens de intensa sinceridade e desejo de reforma moral, mas que conviveram pacificamente com os erros doutrinários, como Erasmo de Roterdã.
Savonarola prendeu-se à prática de certos sacramentos da Igreja, tais como a absolvição sacerdotal de pecados.62 Para fazer justiça à sua memória, devemos registrar que no final de sua vida ele escreveu um folheto sobre o Salmo 51 no qual se aproxima consideravelmente da doutrina bíblica (e protestante) da justificação pela fé, mas aí ele já não exercia tanta influência e no máximo o trabalho registra a sua postura pessoal perante essas verdades. Lutero publicou este folheto com um prefácio elogioso.63
Mesmo sem ter iniciado ou tentado iniciar uma reforma doutrinária, os méritos de Savonarola são consideráveis:
Ele se dissociou completamente da estrutura hierárquica da Igreja Católica Romana e levou consigo aqueles que se colocaram sob sua influência.
Separando-se da Igreja, naquele época e situação, ele se preservou da contaminação gerada pela corrução e males morais presentes na organização.
Por utilizar a Bíblia como fonte primária de suas pregações, em vez da tradição da Igreja, ele transmitiu muitos ensinamentos da Palavra aos florentinos, desenvolvendo uma forma eficaz de comunicação e exortação a uma vida moral.
Savonarola regeu Florença durante quatro anos. Depois que os franceses se retiraram da cidade e na véspera das grandes reformas políticas que haveriam de ocorrer, Savonarola dirigiu-se ao povo dizendo: "se vocês querem um bom governo, ele tem que ser derivado de Deus".64 Depois de assumir o poder na prática, Savonarola procurou conservar em mente o que havia declarado. Durante esses quatro anos,
sem abandonar seus próprios assuntos sagrados, sem por um momento abrir mão de sua elevada posição como um profeta e mensageiro de Deus, este homem extraordinário estabeleceu o seu sistema de impostos, sua proposta de anistia geral, e, talvez em sua mais importante ação, o seu plano para formação de uma corte jurídica de apelo contra as sentenças do Otto, o corpo de magistrados florentinos que se constituíam nos supremos juizes de todos os casos.65
Savonarola foi um legislador competente e intencionou criar em Florença a sua versão moderna de uma teocracia. Por essa razão, ele é freqüentemente comparado com Calvino. Diz um historiador: "Sua posição [em Florença] se assemelhava àquela que Calvino ocupou por um longo tempo em Genebra".66 A semelhança, entretanto, se restringe à sua capacidade e realizações como legislador.
Doutrinariamente, Savonarola e Calvino diferem consideravelmente. Na melhor tradição de Tomás de Aquino, Savonarola insistia tanto filosófica como teologicamente, na eficácia e necessidade das boas obras e na irrestrita liberdade do arbítrio humano. Sobre essa questão, Villari traz a seguinte citação de Savonarola: "É o livre arbítrio que distingue o homem dos animais".67 Calvino não concordava com essa visão simplista de diferenciação. Na realidade ele ensinou que o livre arbítrio, no sentido de execução de escolhas, não representa essa distinção, uma vez que os prórprios animais escolhem o que é necessário ao seu bem-estar. Comentando o próprio pensamento de Tomás de Aquino,68 Calvino diz que os da escola de Aquino:
admitem que o livre arbítrio está ativo somente quando a razão considera possibilidades alternativas. Eles querem dizer, com isso, que o objeto do apetite deve ser influenciado pela escolha e que a deliberação deve preceder o caminho da escolha. Na realidade, se alguém considera esta característica do desejo natural do homem [como livre arbítrio] encontrará que ele tem isso em comum com os animais. Estes também desejam o seu próprio bem-estar e quando confrontam algo bom que apela aos seus sentidos eles o perseguem. Mas o homem não escolhe pela razão e persegue com zelo aquilo que é essencialmente bom para si, de acordo com a excelência de sua natureza imortal 69
Em uma outra declaração Savonarola diz:
Nossa vontade não pode ser movida por nenhuma força externa, nem pelas estrelas, nem pelas paixões, nem mesmo por Deus. O Criador não destrói mas preserva, movendo o mundo e todas as coisas criadas de conformidade com as leis de suas próprias naturezas. 70
Essa afirmação de Savonarola também contrasta com o ensinamento de Calvino, que, refletindo Paulo e Agostinho, mantém a visão bíblica de que o arbítrio do homem está aprisionado pelo pecado71 e somente a soberana graça de Deus atinge aqueles que ele escolheu para a redenção. Sobre essa pretensa autonomia humana, defendida por Savonarola, escreve Calvino:
A exaltação do homem em si mesmo é o trabalho do diabo. Não devemos dar lugar a esses pensamentos a não ser que queiramos ouvir os conselhos do inimigo. É um doce pensamento imaginar que temos tanto poder interno que podemos confiar em nós mesmos! Mas não sejamos enganados por essa confiança vazia; sejamos impedidos pelos trechos numerosos e relevantes, das Escrituras, que totalmente nos humilham.72
Existe, portanto, muita necessidade de qualificarmos qualquer paralelo traçado entre Savonarola e Calvino, pois certamente as divergências doutrinárias são fundamentais e não secundárias.
Savonarola foi um reformador político e moral que viveu uma intensa e fascinante controvérsia num período crucial da história. Suas reformas legislativas não sobreviveram a sua própria existência. Seus chamados a uma moralidade de vida sem a base de vidas regeneradas pelo evangelho da graça de Cristo, foram rapidamente sufocados pela pecaminosidade latente dos que o apoiavam, rapidamente transformados em impacientes perseguidores. Sua rejeição da estrutura hierárquica de Roma, por considerações morais, não o levaram a uma reconsideração das doutrinas e desvios de ensino daquela Igreja, tão distanciados das verdades bíblicas.
Savonarola tem o seu lugar de destaque na história, mas sua classificação como pré-reformador ou até como um legítimo reformador ocorre apenas se forçarmos ou romancearmos os registros da história. De modo algum pode ser colocado em paridade com Lutero ou Calvino, que clarificaram as principais doutrinas da Igreja, tornando visíveis e permanentes as distinções que separam os protestantes da tradição Católica Romana.
Podemos até mesmo dizer que Savonarola reconheceu problemas na Igreja e os identificou corretamente, mas não providenciou as respostas, que só poderiam ser extraídas das Escrituras. Lutero e Calvino, por outro lado, fizeram exatamente isso.
Girolamo Savonarola Doctrinal Reformer or Political Activist?
In this article F. Solano Portela presents an overview of Girolamo Savonarolas life (1452-1498) and message. His main thesis is that his status as a pre-reformer has been exaggerated, especially by his Protestant biographers. After presenting the source material available to the researcher of Savonarola and of his work in Florence, he describes the key points in Savonarola´s life and the historical setting in medieval Italy. Continuing, Portela comments on Savonarolas preaching, message, and work by comparing these with Luther and Calvins. He concludes showing that, in this comparison, there are significant and important differences of approach and doctrine that should prevent the classification of Savonarola as a reformer or pre-reformer, in the strict sense of the term. Portela writes that Savonarola should be recognized as someone that properly identified and courageously confronted the evils of his time. Nevertheless, his attempt at moral and political reforms did not address the real issue. This issue, correctly discerned by Luther and Calvin, was the need for a return to the preaching and doctrines of the Bible as the means to a divine transformation of hearts. According to Portela, spiritual regeneration is what made possible the long lasting changes in life style, church structure and political order achieved through the work of the real reformers.
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1 Base de dados (livros) da Biblioteca do Congresso Norte-americano (Library of Congress). O formulário de pesquisa é acessável pela Internet, no endereço: http://lcweb.loc.gov/z3950/mums.html.
2 Após uma análise e triagem preliminar de duplicidade.
3 Marsilio de Padua, SavonarolaDefensor Menor, trad. de Luís Alberto de Boni (Petrópolis: Vozes, 1991). Este livro foi publicado como parte da coleção Clássicos do Pensamento Político (Vol 10) e apresenta principalmente a faceta política e legislativa de Savonarola.
4 Pasquale Villari, Life and Times of Girolamo Savonarola, trad. do italiano por Linda Villari (London: T. Fisher Unwin, 1888 e N. York: Haskell House Publishers, 1969).
5 Esses livros não estão disponíveis na Biblioteca do Congresso (Library of Congress) e não conseguimos dados bibliográficos mais completos sobre os trabalhos.
6 William Henry Crawford, Girolamo Savonarola, A Prophet of Righteousness, 2ª ed. (New York: The Abingdon Press, 1907).
7 Ralph Roeder, Savonarola, A Study in Conscience (New York: Brentanos, 1930).
8 Mary Putnan Denny, The Prophet of Florence (Boston: Richard G. Bodger, 1911), é um trabalho medíocre, de linguagem romântica. Traz alguma citações válidas, mas não é muito preciso do ponto de vista histórico nem interessante como romance. Por outro lado, Margaret Oliphant, The Makers of Florence (New York: A. L. Burt, 1989) traz um registro interessante da vida e da influência de Savonarola na cidade de Florença.
9 Entre os livros que trazem boas informações, destacamos: John Symonds, Renaissance in Italy, Vol I (New York: Benett A. Cerf, Donald S. Klopfer, 1935); Myron Piper Gilmore, The World of Humanism (New York: Harper & Brothers, 1952); e John B. Wolf, The Emergence of European Civilization (New York: Harper & Row, 1962).
10 Mario Ferrara, La Biblia Savonaroliana di S. Maria degli Angeli (Firenze: L. S. Olschki, 1961).
11 Jerônimo Savonarola, Lettere e Scritti Apologetici (Roma: A. Belardetti, 1984).
12 Jerônimo Savonarola, Compendio di Revelatione Dello Inutile Servo de Iesu Christo Frate Hieronymo da Ferrara Dellordine de Frati Predicatori (Firenze: Ser Piero Pacini da Pescia, 1496). Esta é a tradução, em italiano, do livro originalmente escrito em Latim
13 Encontramos diferentes datas de nascimento registradas. A maioria das biografias, como a de Villari, apresentam 21 de setembro, mas outros apontam o dia 12 de outubro como a data de seu nascimento. Pelo critério histórico e aprofundado demonstrado no livro Life and Times of Girolamo Savonarola, de Pasquale Villari, preferimos extrair dele os principais dados biográficos do frade, para este artigo.
14 Crawford, Girolamo Savonarola, 20, 21.
15 Villari, Life and Times, 3.
16 Roeder, Savonarola, 5.
17 Ibid.
18 Denny, Prophet of Florence, 31.
19 Villari, Life and Times, 17.
20 Denny, Prophet of Florence, 31.
21 Villari, Life and Times, 24.
22 Kenneth Scott Latourette, A History of Christianity (N. York: Harper & Brothers, 1953) 672.
23 Roeder, Savonarola, 39.
24 R. R. Palmer e Joel Colton, A History of the Modern World (N. York: Alfred A. Knopf, 1950) 24.
25 Ibid., 61.
26 John B. Wolf, The Emergence of European Civilization (N. York: Harper & Row, 1962) 45.
27 Firenze, em italiano, fica a 233 km a noroeste de Roma. A cidade ficou conhecida por ser um entreposto comercial e abriga o segundo maior tesouro de arte da Itália, sendo superada só por Roma. (Encyclopaedia Britannica "Florence")
28 Estatuetas, artefatos de arte e tecidos (seda e lã) Ibid.
29 Joseph R. Strayer, Hans W. Gatzke e E. Harris Harbison, The Course of Civilization, Vol. I (N. York: Harcourt, Brace & World, Inc., 1961) 495.
30 Ibid.
31 Henry S. Lucas, The Renaissance and Reformation (N. York: Harper & Row, 1960) 9.
32 Ibid., 11.
33 Palmer e Colton, A History of the Modern World, 49.
34 Ibid., 44.
35 Myron Piper Gilmore, The World of Humanism (N. York: Harper & Brothers, 1952) 178.
36 Citado por Villari, Life and Times, 130.
37 Ibid.
38 Ibid.
39 John Addington Symonds, Renaissance in Italy, Vol. I (N. York: Bennett Cerf, Donaly Klopfer, 1935) 262.
40 Frederic Seebohm, The Era of the Protestant Revolution (N. York: Scribners, 1890) 73.
41 Symonds, Renaissance in Italy, 265.
42 Villari, Life and Times, 189.
43 The National Alumni, The Great Events by Famous Historians, Vol. VIII (N. York: The National Alumni, 1905) 268.
44 Ibid., 269.
45 Ibid.
46 Crawford, Girolamo Savonarola, 149.
47 Roeder, Savonarola, 180.
48 Myron Piper Gilmore, The World of Humanism (N. York: Harper & Brothers, 1952) 180.
49 John B. Wolf, The Emergence of European Civilization (N. York: Harper & Row, 1962) 136.
50 The National Alumni, Great Events, 279.
51 The National Alumni, Great Events, 281.
52 Ibid.
53 Vide Savonarola, Compendio di Revelatione, mencionado na nota de rodapé nº 10. Um outro livro de compilações diversas que contém citações e comentários dos sermões de Savonarola sobre o Apocalipse é Imagine e Parola (Pistoia: Centro Riviste della Provincia Romana, 1989), com 498 pp.
54 Citado por John Addington Symonds, Renaissance in Italy, 257.
55 Ibid.
56 Apocalipse 1.19 transmite a idéia de complementação e abrangência do livro bíblico e da própria Palavra: nada parece ser esperado de uma "revelação posterior" "Escreve pois as coisas que viste [passado], e as que são [presente], e as que hão de acontecer depois destas [futuro]".
57 No final do próprio livro de Apocalipse (22.18) temos uma condenação das "revelações adicionais" que caracterizaram as mensagens de Savonarola e que são tão comuns nos dias de hoje "Eu, a todo aquele que ouve as palavras da profecia deste livro, testifico: se alguém lhes fizer qualquer acréscimo, Deus lhe acrescentará os flagelos escritos neste livro".
58 Essa compreensão da evolução do pensamento de Savonarola é bem exposta por Frederich Seebohm, The Era of the Protestant Revolution (N. York: Charles Scribners Sons, 1890) 74.
59 "Savonarola, Girolamo", em Appletons Cyclopaedia of Biography (N. York: D. Appleton and Co., 1856) 1058.
60 George Park Fisher, The Reformation (N. York: Charles Scribners Sons, 1916) 53.
61 The National Alumni, Great Events, 279.
62 Symonds, Renaissance in Italy, 265. Vide a descrição do incidente relacionado com a morte de Lorenzo de Medici, no final do ponto IV-A, deste ensaio.
63 Fisher, The Reformation, 53.
64 Margaret Oliphant, The Makers of Florence (N. York: Charles Scribners Sons, 1916) 53.
65 Ibid.
66 Fisher, The Reformation, 53.
67 Villari, Life and Times, 102.
68 Summa Theologica, I, LXXXIII, 3.
69 João Calvino, Institutas, Lv. II, Cap. II, 26 (tradução do autor da versão inglesa de Ford Lewis Battles, Institutes of the Christian Religion, ed. John T. McNeill, Vol. II (Philadelphia: Westminster Press, 1960) 286.
70 Citado mais uma vez por Villari, Life and Times, 102.
71 "O arbítrio do homem está aprisionado pelas correntes do pecado," escreve Calvino nas Institutas, Lv. II, Cap. II, 7 (McNeill, Ibid., 264).
72 Calvino, Institutas, Lv. II, Cap. II, 10 (McNeill, Ibid., 268). Sobre a dependência de Deus para o conhecimento espiritual do homem, vide também seções 18-20, no mesmo livro e capítulo das Institutas.