Mauro Meister
D. Martyn Lloyd-Jones afirma em seu livro Pregação e Pregadores que "a mais urgente necessidade da Igreja hoje é de verdadeira pregação; e como é a maior e a mais urgente necessidade da igreja, é também, obviamente, a maior necessidade do mundo".(1) Essa necessidade certamente não mudou de figura desde a primeira publicação de Pregações e Pregadores em 1971.(2) O que mudou, no entanto, foi o interesse na pregação nos últimos vinte anos. Percebeu-se, no mundo cristão,(3) que não há substituto para a pregação. Antigas escolas liberais e tradicionais, que defendiam o uso de outras formas de ensino como substituto para a pregação, perceberam que esta antiga prática, de fato "não inventada pelo homem mas graciosamente criada por Deus",(4) ainda é, e sempre será, o mais efetivo meio de proclamar as Boas Novas.(5)
Creio que o declínio na prática da pregação surgiu como fruto de vários fatores(6): (a) descrença na autoridade das Escrituras; (b) valorização exagerada da arte de falar (retórica); (c) confusão entre pregação e exposição filosófica de uma verdade ("helenização" do evangelho)(7); (d) massificação do evangelho (cultura "pop" e entretenimento). O despertamento para a pregação nos últimos vinte anos deu-se em reação a várias destas causas, porém nem sempre pelas razões corretas e de formas corretas. Por exemplo, o interesse de vários teólogos e pregadores modernos na pregação é uma reação à helenização do evangelho, porém, sem retorno à crença na autoridade das Escrituras.(8) O fato é que existe um "movimento" de pregação na igreja ao redor do mundo e também na igreja evangélica brasileira.
Ora, se a prática da pregação que efetuamos não é apenas uma opção apresentada nas páginas do Novo Testamento, mas sobretudo uma ordem direta nos Evangelhos (Mc 3.14; 16.15), nos ensinos apostólicos (2 Tm 4.2), e uma prática clara em ambos (Mc 1.38; At 5.42), o que devemos pregar e como devemos pregar, isto é, o conteúdo e a forma da pregação, são assuntos de fundamental importância para a vida do pregador e, conseqüentemente, para a vida da igreja. Presumo que os leitores interessados neste artigo crêem na pregação e na autoridade das Escrituras. Este artigo tem a ver com o que devemos pregar, ou seja, o conteúdo da pregação.
É realmente necessário pregar em passagens do Antigo Testamento? A pergunta pareceria desnecessária. Porém, é fato que pregações no Antigo Testamento são a exceção e não a regra nos púlpitos de nossas igrejas (as exceções servem para comprovar a regra). Se é verdade que os mestres da igreja, os pregadores da Palavra, devem anunciar "todo o desígnio de Deus", como Paulo havia feito durante seu ministério em Éfeso (At 20.27), então creio que a exposição das Escrituras do Antigo Testamento está faltando nos púlpitos de nossas igrejas. Duas questões pertinentes devem ser levantadas: (a) Por que devemos pregar em passagens do Antigo Testamento? (b) Por que não se prega tão freqüentemente textos do Antigo Testamento quanto se esperaria?
Gostaria de levantar apenas três aspectos sobre a necessidade de se pregar em textos do Antigo Testamento.(9)
(1) Em primeiro lugar, deve-se considerar que, para uma exposição clara a respeito de Jesus e de todos os seus atributos como a Segunda Pessoa da Trindade e filho de Deus encarnado, é necessário entender o Antigo Testamento. Ambos, o Antigo e o Novo Testamentos, são incompletos na ausência um do outro. Jesus não é uma figura obscura vinda do nada para salvar a humanidade. Jesus é o Messias prometido a Israel por Deus Pai para salvar o seu povo. O caráter de Deus, Pai, Filho e Espírito Santo, é revelado nas páginas do Antigo Testamento de maneira grandiosa e gloriosa. No entanto, nos púlpitos e nas congregações ao redor do mundo, existe uma tremenda ignorância a respeito do Antigo Testamento e do seu conteúdo. Facilmente percebe-se neles um conhecimento do conteúdo do Novo Testamento, ao mesmo tempo em que demonstram uma falta de conhecimento do Antigo Testamento. O conhecimento do Novo Testamento que não é correspondido pelo conhecimento do Antigo, é uma contradição e uma impossibilidade. As Escrituras do Novo Testamento começam com uma referência ao Antigo Testamento e centenas de outras referências são feitas no seu corpo. A falta de entendimento do conteúdo do Antigo Testamento implica em uma falta de entendimento claro do texto do Novo Testamento. O próprio Senhor Jesus, quando pregava, começava "por Moisés, discorrendo por todos os profetas" e assim, "expunha-lhes o que a seu respeito constava em todas as Escrituras" (Lc 24.27).
(2) Para se entender corretamente o papel da Igreja como Corpo de Jesus Cristo é necessário entender o propósito de Deus na criação de Israel. O ensino do Novo Testamento a respeito de Israel só pode ser entendido à luz de toda a revelação de Deus, e não em compartimentos estanques. Não é sem motivo que se encontram tremendas divergências teológicas na área de eclesiologia, visto que o papel de Israel no Antigo Testamento é extremamente mal entendido. Um dos grandes perigos para a Igreja moderna é o de repetir os mesmos pecados da Igreja no Antigo Testamento, mesmo tendo à sua frente o exemplo de como não se deve agir. O mesmo problema se desdobra na área de escatologia, onde o Antigo Testamento, quando citado, na maioria das vezes é usado de maneira inadequada, senão absurda. É necessário que se compreenda que Jesus é o descendente de Abraão, pai de Israel, e sucessor de Davi, rei de Israel. Uma tentativa de se entender o papel da Igreja à parte destes fatos, levará a uma interpretação incorreta do seu papel. A verdadeira igreja de Jesus Cristo é edificada "sobre o fundamento dos apóstolos e profetas" (Ef 2.20). Grandes estudiosos do Novo Testamento são de fato aqueles que têm grande conhecimento do Antigo Testamento.
(3) O povo de Deus não pode, de forma relevante, entender, participar e cumprir seu papel como filhos de Deus no mundo, sem uma compreensão adequada das Escrituras do Antigo Testamento. É óbvia, para pregadores e pastores com formação acadêmica, a necessidade de se compreender a criação e a queda da humanidade para se pregar, de forma coerente, pelo menos, a respeito de qualquer tema nas Escrituras. No ato da criação, Deus deu ao homem três mandatos: espiritual, social e cultural.(10) A possibilidade do cumprimento apropriado destes mandatos é proporcional ao que o povo de Deus conhece deles. Infelizmente, o conhecimento dessas ordens divinas é muitas vezes negado ao povo de Deus por seus pregadores. O Antigo Testamento é rico em ensinamentos sobre família, sociedade, culto e serviço, áreas em que o povo de Deus necessita grandemente de instrução. Em suma, para um ensino equilibrado e qualificado sobre vida cristã, é essencial que o povo de Deus conheça as Escrituras do Antigo Testamento.
Muitos aspectos da resposta a esta pergunta estão incluídos nas respostas à pergunta anterior. Entretanto, um outro é abordado aqui: Teologia Bíblica.
A despeito da pressuposição básica com respeito à revelação proposicional e à infalibilidade das Escrituras na teologia de nossa igreja,(11) existem fatores que não permitem uma visão global do ensino das Escrituras. Entre estes, estão a dicotomização teológica entre Antigo e Novo Testamentos e a compartimentalização teológica dentro dos testamentos. É comum encontrar-se nos nossos currículos de seminário e literatura teológica a dicotomia Teologia Bíblica do Antigo Testamento vs. Teologia Bíblica do Novo Testamento. Essas divisões não são apenas reflexo de uma necessidade prática, porém, de um pressuposto teológico nem sempre muito claro: o de que existe mais de uma Teologia Bíblica. A prova mais evidente desse fato são nossos púlpitos, onde, via de regra, o Novo Testamento é destacado em prejuízo do Antigo Testamento. Em geral, Antigo e Novo Testamentos são colocados tão à parte um do outro que é necessária uma explicação complexa dos elos que os unem. Também dentro dos próprios testamentos a divisão é evidenciada quando se fala de teologia joanina, paulina, sinaítica, etc.(12) É natural que existam barreiras em termos históricos devido à distância temporal e cultural entre os Testamentos e a apropriação destes no cânon da Igreja. Essa barreira é também evidenciada pelo fato da revelação ter um caráter progressivo. Porém, o valor teológico de ambos os testamentos não é para ser comparado. Creio que este conceito está implícito nas Escrituras (Hb 1.1-4), assim como está explicitamente descrito no capítulo I da Confissão de Fé de Westminster. Deus se revelou progressivamente e é extremamente importante que as Escrituras sejam lidas e entendidas nesta perspectiva. Nas palavras de E. Clowney, "Essa revelação não foi dada em um só tempo nem na forma de um dicionário teológico".(13)
Também um só Deus se revelou e isto nos mostra a unidade das Escrituras como revelação lógica e coerente.(14) Apesar deste conceito ser estudado freqüentemente sob o título de Teologia Dogmática (Sistemática), ele é parte do conceito central da Teologia Bíblica. Gerhardus Vos define Teologia Bíblica como "o ramo da teologia exegética que lida com o processo da auto-revelação de Deus depositada(15) na Bíblia".(16) Para uma exposição fiel da verdade das Escrituras é necessário que haja entendimento da Teologia Bíblica como um todo e equilíbrio na exposição dessa teologia. Para isto é necessário que haja equilíbrio na exposição entre Antigo e Novo Testamentos. Creio que uma Teologia Bíblica sem o devido equilíbrio é um dos principais motivos porque não há pregação mais consistente e sistemática das Escrituras do Antigo Testamento.
Um pressuposto que leva ao desequilíbrio na Teologia Bíblica é o de que a familiaridade com a Teologia Sistemática é suficiente para promover um conhecimento abrangente das Escrituras. Teologia Sistemática e Teologia Bíblica são disciplinas distintas, porém interdependentes. A Teologia Sistemática séria não é apenas um amontoado de "textos-prova" descontextualizados. Quando elaborada com seriedade, ela leva em consideração a contribuição da Teologia Bíblica como matéria exegética. A Teologia Bíblica, quando também elaborada com seriedade, considera sempre a perspectiva abrangente da Teologia Sistemática. Assim, ambas as disciplinas são mantidas em uma tensão constante e renovada, conduzindo ao desenvolvimento de uma teologia sadia e relevante que, por sua vez, deve ser ministrada ao povo de Deus do púlpito de nossas igrejas, através da exposição equilibrada do Antigo e do Novo Testamentos.(17)
Penso que diante dos fatos devemos rever algumas de nossas tradições. Tradições podem ser benéficas ou maléficas, dependendo de como são passadas e recebidas por novas gerações. Em muitos casos, boas tradições sofrem distorção e acabam sendo praticadas sem objetivo, ou até mesmo hipócritamente. Basta ler as páginas do Novo Testamento e as críticas feitas por Jesus quanto às várias tradições dos israelitas da época. Se sabemos porque devemos pregar o Antigo Testamento e qual é a maior dificuldade de aproximação às Escrituras do Antigo Testamento, devemos também rever a nossa tradição quanto à pregação do mesmo. Essa revisão precisa acontecer em dois níveis: individual e coletivo.
O nível individual concerne aos padrões que se adota quanto à pregação do Antigo Testamento. Temos mesmo o desejo de ensinar, como pregadores da Palavra, "todo conselho de Deus", e a convicção de que devemos fazê-lo? De que modo a congregação que nos escuta constantemente como pregadores da Palavra percebe as riquezas dos ensinamentos do Antigo Testamento? Como algo obscuro, sem sentido e até mesmo terrível de se ouvir e ler, e que só serve para algumas partes do exercício litúrgico? Uma parte das Escrituras que deve ser relegada a segundo plano? Se a resposta a estas questões é positiva, então a pregação das Escrituras no Novo Testamento também precisa ser revista.
O nível coletivo concerne aos que estão a nossa volta e ministram a outros que são ou serão os pregadores da Palavra. Qual o papel e a importância da Teologia Bíblica? Como ela é ensinada nas instituições de sua igreja? Quais os frutos da mesma na proclamação do Evangelho? Qual a ênfase dada ao ensino de uma Teologia Bíblica que reflete a unidade das Escrituras? As respostas a estas questões devem nos ajudar a perceber quais as tradições que precisam de revisão.
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1 D. Martyn Lloyd-Jones, Preaching and Preachers (London: Hodder and Stoughton, 1981) 9. Traduzido para o Português como Pregação e Pregadores (São Paulo: Editora Fiel, 1984). As citações são da obra original em inglês, traduzidas pelo próprio autor.
2 O livro é a transcrição de uma série de palestras feitas por Lloyd-Jones no Westminster Theological Seminary, na Filadélfia, USA, em 1969.
3 Uso o termo "cristão" aqui da forma mais genérica possível.
4 R. Mohler, A Theology of Preaching, em Handbook of Contemporary Preaching, ed. Michael Duduit (Nashville, TN: Broadman Press, 1992) 13.
5 M. Duduit comenta: "Durante a década de 60 muitos `especialistas' proclamaram a morte do púlpito; proclamavam que a pregação havia deixado de ser relevante às necessidades da população média americana. Ironicamente, as últimas duas décadas presenciaram uma explosão de interesse na pregação dentro da igreja americana" (M. Duduit, ed., Handbook of Contemporary Preaching, 47). J. Holbert afirma: "O sermão, considerado às portas da morte como uma forma de comunicação fora de moda, está de volta" (Preaching the Old Testament: Proclamation and Narrative in the Hebrew Bible [Nashville: Abingdon Press, 1991] 9).
6 M. Lloyd-Jones expõe vários destes fatores de forma clara e mais extensa no capítulo 1 de Pregação e Pregadores, entitulado "A Primazia da Pregação." O capítulo introdutório da obra de John R. W. Stott, Between Two Worlds (Grand Rapids: Eerdmans, 1981) é também rico em demonstrar os motivos do declínio da pregação depois da segunda metade do século XX.
7 Chamo de "helenização do evangelho" a crença de que a forma de pregação deve se submeter a princípios de exposição comuns nos tempos do Novo Testamento e próprios da cultura greco-romana. Se estes princípios devem ser tomados por normativos, não há pregação no Antigo Testamento onde o ensino do povo de Deus era principalmente feito através de narração de eventos e da explicação dos atos de Deus na história.
8 Um exemplo representativo desta escola é J. Holbert, Preaching the Old Testament: Proclamation and Narrative in the Hebrew Bible. A lista de livros sobre pregação desta escola de pensamento é enorme, principalmente na área de Antigo Testamento.
9 Para um ponto de vista diverso a respeito de pregação no Antigo Testamento ver E. Achtemeier, Preaching from the Old Testament (Louisville: Westminster / John Knox Press,1989) 21-26.
10 Para um desenvolvimento mais completo destas idéias ver G. Van Groningen, Revelação Messiânica no Velho Testamento (Campinas, SP: Luz Para o Caminho, 1995).
11 Falo como ministro da Igreja Presbiteriana do Brasil, denominação confessional, e parte da chamada "linha evangélica" no Brasil. Definições, descrições e estereótipos variam em diferentes países.
12 Observe que esta dicotomização e compartimentalização é natural na teologia liberal onde o conceito de revelação proposicional e de unidade das Escrituras é totalmente desacreditado.
13 E. Clowney, Preaching and Biblical Theology (London: Tyndale, 1962) 15.
14 Para uma ampla discussão do conceito de unidade das Escrituras na área de Teologia Bíblica, verificar a descrição em Gerard Hasel, Teologia do Antigo Testamento: Questões Fundamentais no Debate Atual (Rio de Janeiro, RJ: JUERP, 1975) e Brevard S. Childs, Biblical Theology In Crisis (Philadelphia: Westminster, 1970). Para uma perspectiva mais evangélica, ver Van Groningen, Revelação Messiânica.
15 O termo empregado por Vos "deposited" é certamente infeliz no debate teológico contemporâneo. Porém, isto não implica em que Vos não cria que toda a Escritura do Antigo e Novo Testamentos fosse a Palavra de Deus.
16 G. Vos, Biblical Theology: Old and New Testaments (Grand Rapids: Eerdmans, 1948) 13.
17 Clowney (Preaching and Biblical Theology, 9-19) discute com bastante clareza estes argumentos no primeiro capítulo de seu livro.