Índios
Evangélicos no Brasil Holandês
Frans Leonard Schalkwijk*
Três vezes a igreja evangélica foi implantada no Brasil
colônia, mas sempre expulsa pelos portugueses: a igreja reformada dos
franceses no Rio de Janeiro (1557-1558), a dos holandeses na Bahia (1624-1625) e
a dos holandeses, alemães, ibéricos, ingleses, franceses e
índios no Nordeste, quase 30 anos depois. Este artigo focalizará a
igreja evangélica indígena durante a ocupação
holandesa do Nordeste (1630-1654). A história desta missão
está escondida em muitos arquivos, especialmente nos de Amsterdã e
Haia, na Holanda.
No século XVII os três centros principais do Brasil
colonial eram a Bahia, o Rio de Janeiro e Pernambuco. Ali a cidade
líder era Olinda, em pleno progresso econômico, porém em
franco declínio moral. Um ano antes da invasão holandesa, o frei
Antônio Rosado, dominicano e visitador da Inquisição,
alertou em sua pregação: "De Olinda a Olanda não há
mais que a mudança de um ‘i’ em ‘a’, e esta Vila
de Olinda se há de mudar em Olanda e há de ser abrasada pelos
olandeses antes de muitos dias; porque, pois, falta a justiça na terra,
há de acudir a do céu."1
Olhando-se, porém, do outro lado do Atlântico, da Europa,
não se notava tanto a situação moral dos colonos
portugueses, mas muito mais as grandes caixas de açúcar, branco e
mascavo, que de lá chegavam, ao mínimo 35.000 caixas de 300 quilos
cada, por ano. E esta riqueza ajudava a Espanha em seu poder mundial que
procurava estrangular a jovem República dos Países Baixos Unidos
(ou seja, a Holanda, assim chamada pelo nome da província maior). Embora
o Brasil tivesse nascido como colônia portuguesa, a partir de 1580 isto
havia mudado: Portugal passou a integrar o império espanhol, em cujos
limites o sol nunca se punha, e com isto o Brasil luso passou a ser um Brasil
ibérico, sendo puxado para dentro da órbita dos conflitos
internacionais da coroa de Castela. Mais dia menos dia, e os inimigos da
Ibéria haveriam de aparecer na costa brasileira.
Nesta altura da história a Holanda ainda fazia parte do
Império Alemão. Durante alguns anos um dos Condes de Nassau tinha
sido imperador, mas pouco depois de 1500 a casa de Habsburg estava no poder,
reunindo suas possessões alemãs, espanholas e holandesas na
mão de Carlos V. Durante a sua vida eclodiu a Reforma Protestante, em
1517. O sucessor de Carlos foi Filipe II, rei da Espanha, que decidiu acabar com
os evangélicos nas suas terras. Isto levou finalmente a uma luta
político-religiosa nos Países Baixos, conhecida como a "Guerra dos
80 anos" (1568-1648), em que o "stadhouder" da Holanda, o príncipe
Guilherme de Orange-Nassau, apoiava seus súditos. Depois da derrota da
armada espanhola em 1588 o poder ibérico começou a declinar e, ao
mesmo tempo, a Holanda a fortalecer-se, especialmente por causa dos muitos
refugiados franceses, belgas, espanhóis, alemães, poloneses, etc.
Iniciou-se a "era áurea" dos Países Baixos. A Espanha fechou seus
portos para os holandeses e assim esses começaram a singrar os oceanos,
considerados até então mares territoriais ibéricos.
Descobriram o Estreito de Lemaire e o Cabo Horn, a Nova Zelândia e a
Tasmânia. Fundaram Nova Amsterdã, que depois seria denominada Nova
Iorque. A cultura floresceu com cinco universidades, artes e ciências.
Nomes como Rembrandt e Hugo Grotius, Descartes e Spinoza eram famosos.
A Igreja Cristã Reformada também crescia com o grande influxo
de refugiados, perseguidos por sua fé evangélica. Chegaram a
organizar congregações eclesiásticas de língua
francesa e inglesa. Mas, o que foi mais importante do que o simples crescimento
numérico, é que ao mesmo tempo procurou-se zelar pela qualidade,
como expressão holandesa do puritanismo. Procuravam viver a Bíblia
como norma de fé e prática numa verdadeira "prática da
piedade," não no sentido de afastamento do presente mundo, mas, partindo
da submissão ao SENHOR, saíam para o seu trabalho no seio da
sociedade, esforçando-se por aplicar os princípios bíblicos
em todas as áreas da vida diária. Os "predicantes" advertiam
contra os perigos da crescente riqueza material que começava a se
acumular na Holanda, e insistiam na obrigação de ajudar os mais
fracos através da assistência diaconal.
O crescente comércio ultramarino holandês organizou duas
grandes companhias para maior cooperação e para melhor
proteção contra os espanhóis nesta "primeira guerra
mundial": a das Índias Orientais e a das Índias Ocidentais. A
área desta última era o Atlântico. Sua diretoria era
composta de dezenove membros, os chamados "Senhores XIX," representando as
cidades cooperadoras, da qual Amsterdã era a principal. Sabedores de que
as maiores riquezas da Espanha, com que sustentava suas guerras, provinham das
Américas, começou-se a pensar não somente em viagens
corsárias, mas em conquista de uma parte das suas colônias. A Bahia
parecia ser presa fácil. E a cidade de Salvador foi tomada. Depois de um
ano, porém, já se perdeu a conquista (1624-1625). Entretanto,
tendo-se capturado uma frota carregada de prata espanhola, decidiu-se por outra
tentativa, agora em Pernambuco. A concretização desse plano levou
ao período do "Brasil Holandês" (1630-1654).
A história do Brasil Holandês pode ser dividida em
três partes: inicialmente a resistência portuguesa por sete anos;
depois a resignação desses "moradores" durante o governo do Conde
Maurício de Nassau por quase oito anos (1637-1644); e finalmente os nove
anos da guerra da restauração. Foi Maurício que pacificou
grandemente a conquista, fazendo-a englobar o litoral desde Sergipe até o
Maranhão. Mas foi dali que começou o desmoronamento do
domínio holandês, de sorte que o Nordeste conheceu mais guerra do
que paz nesses 24 anos.
Durante esse período se encaixa um capítulo interessante da
história eclesiástica brasileira: a da Igreja Cristã
Reformada,2 nome da igreja evangélica na Holanda. Ela era uma "igreja do
Estado," conforme a situação da época colonial nos
países do ocidente, tanto nos católicos romanos como nos da
reforma protestante. Essa igreja reformada veio para o Brasil com a bandeira
holandesa, e foi expulsa com ela. Na medida em que a conquista se alargava foram
implantadas as congregações reformadas, e na medida em que os
luso-brasileiros recapturavam o terreno estas desapareceram, porque não
havia lugar para qualquer igreja evangélica debaixo da hegemonia
ibérica.
Ao todo existiram durante algum tempo vinte e duas igrejas reformadas no
Nordeste. Destas a do Recife era a maior, inclusive com uma
congregação inglesa e uma francesa. Esta se reunia no "templo
gálico" onde o próprio Nassau era o membro mais ilustre, sob o
pastorado do predicante espanhol Vincentius Soler.3 Com o aumento da conquista
organizou-se uma "classe", uma convenção eclesial, o
Presbitério do Brasil, e durante alguns anos existiu até o
Sínodo do Brasil, com dois presbitérios: o de Pernambuco e o da
Paraíba.4
Havia igrejas grandes e pequenas, com seus predicantes ou sem pastores; com
seus presbíteros e diáconos ou sem condições de
escolher oficiais; com seu "proponente" (um estudante de teologia licenciado) ou
seu "consolador" (um evangelista); com seu professor na escolinha ou quase
abandonada; com suas alegrias e lágrimas; com sua visão
missionária ou com sua falta desta visão. Na leitura dos
documentos surge uma igreja como a conhecemos hoje em dia, mas com um problema
específico: rodeada de pessoas que queriam expulsá-la da sua
terra. Apesar disto a igreja procurou evangelizar os moradores portugueses,
inclusive com literatura evangélica. O resultado, porém,
não foi grande, pois, por mais gentis que fossem, sempre era a
religião dos invasores. Entretanto, para um grupo da
população os holandeses não eram invasores, mas sim
libertadores: os índios. E não é de estranhar que a maior
parte da missão reformada no Nordeste estivesse voltada para
eles.
A história dessa missão desenvolveu-se em três etapas:
a preparação (1630-1636), a expansão (1637-1644) e a
conservação (1645-1654).
I. Preparação,
1630-1636
Havia entre os indígenas dois grupos principais: as tribos já
domesticadas e as não subjugadas. Os holandeses denominaram as
últimas como "Tapuias" e as primeiras de "brasilianos", como os moradores
autóctones do Brasil.
O primeiro contato entre os "brasilianos" e a Companhia das Índias
Ocidentais ocorreu por ocasião do curto domínio holandês na
Bahia. Mas a perda de Salvador em 1625, foi, para os neerlandeses, um preparo
direto para o futuro trabalho missionário entre os índios do
Nordeste. Chegando tarde para segurar a Bahia para a Companhia, o almirante da
frota holandesa navegou para o norte em busca de um lugar onde pudesse
reabastecer antes de zarpar para as Ilhas Caribes. Aportaram na Baía da
Traição, uns nove quilômetros ao norte da Paraíba. Os
índios locais, da tribo Potiguar, escolheram logo o lado dos holandeses
como libertadores do jugo português. Quando, porém depois de seis
semanas, perceberam que a permanência da frota era passageira, muitos
queriam embarcar. Apenas seis moços o conseguiram, velejando com os
navios para a Holanda, enquanto os outros procuravam esconder-se da
vingança lusa.
Os seis potiguaras (um deles era o índio Pedro Poti) permaneceram
por cinco anos nos Países Baixos. Aprenderam a ler e escrever e foram
instruídos na religião cristã reformada. A Companhia tinha
planos definidos para esses jovens, porque pouco depois da invasão em
Pernambuco alguns deles foram enviados de volta para o Brasil a fim de servirem
de "línguas" (tradutores) no contato com seus compatriotas nas
várias aldeias nordestinas.
O sistema de aldeamento dos índios havia sido começado pelos
padres católicos romanos e continuou na época holandesa. A famosa
pintura de Zacarias Wagner nos mostra um deles: duas fileiras de três
casas compridas cobertas de palha de coqueiro, e na cabeceira uma capela com um
campanário em frente. As casas abrigavam cerca de 40 a 50 pessoas, cada
família pequena morando no seu próprio canto. Por volta de 1639 o
Rio Grande do Norte tinha cinco aldeias de brasilianos, a Paraíba sete,
Itamaracá cinco e Pernambuco quatro, ao todo com umas seis mil pessoas,
das quais um terço guerreiros. Mas o número de índios
litorâneos já estava declinando muito. Uns cem anos antes, ao
iniciar-se a colonização portuguesa, o total de guerreiros foi
estimado em cem mil, mas o extermínio começou cedo. Durante o
período holandês os indígenas gozavam de todos os direitos
humanos da época, mas apesar disto o seu número continuou
decrescendo por causa de doenças e das constantes lutas contra os
primeiros colonizadores. Depois da expulsão dos holandeses
diminuíram ainda mais rapidamente por causa das expedições
punitivas portuguesas.
Entre esses "brasilianos" em declínio começou o trabalho
missionário da igreja reformada, em cima do fundamento lançado
pelos padres. Tinham aprendido algumas orações e a
confissão apostólica, conheciam os nomes de Jesus Cristo e "nossa
Senhora," e tinham sido batizados. Quanto ao mais, viviam nas suas
crenças animistas, pintando seus corpos com figuras do diabo, cruzes e
evocações latinas. Cedo a igreja reformada reconheceu seu dever de
evangelizar os índios, e o governo apoiou o trabalho missionário,
sem dúvida inclusive por motivos políticos: precisava deles na sua
luta contra os portugueses. E muitos foram os obreiros que serviram nas aldeias:
pastores e "consoladores," professores e "proponentes".
Vários predicantes tinham visão pelo trabalho
missionário. O capelão do exército, o alemão
Jodocus à Stetten, era um deles. Numa carta escrita durante uma campanha
militar disse que batizara o primeiro pagão naqueles dias (supostamente
um soldado indígena), acrescentando que reconhecia a necessidade de
aprender bem a língua portuguesa. Um ano depois ele relatou que a sua
esposa apresentou diversos brasilianos para o batismo.
Não apenas obreiros individuais, mas também a igreja como
organização, começou o seu trabalho missionário.
Durante a época nassoviana (1637-1644) tudo ocorreu numa
situação de relativa paz, mas durante os anos da revolta lusa, no
meio de guerra (1645-1654).
A decisão de iniciar o trabalho foi tomada na reunião
do conselho eclesiástico da Igreja Reformada do Recife, que escreveu uma
carta inclusive sobre os métodos, ao Presbitério de
Amsterdã. Nessa importante missiva o "Consistório de Fernambuque"
solicitava oito "proponentes", bem educados, e aptos para o pastorado, a fim de
aprenderem a língua brasiliana. Além disso, Recife pediu
professores primários, de preferência com esposa e filhos. Ainda
sugeriu que fossem levados à Holanda uns jovens brasilianos com o fim de
aprenderem o holandês e serem educados na religião reformada. O
Presbitério de Amsterdã decidiu levar o assunto à
Companhia, que era responsável pelos salários
eclesiásticos.
A Diretoria da Companhia, os Senhores XIX, já havia recebido uma
carta de igual teor da parte do governo holandês no Recife, com um pedido
de enviar à Holanda 25 jovens brasilianos, e trazer de lá 25
órfãos com o mesmo objetivo. Caso isto não fosse
possível, então, pelo menos, doze de cada grupo. "Deus engrandeceu
o cristianismo por doze apóstolos somente, de modo que Ele bem pode
reformar o Brasil com 24 jovens." Os Senhores XIX decidiram apoiar o trabalho
missionário, entretanto, não a idéia de levar à
Holanda jovens brasilianos, porque o caso de Pedro Poti lhes havia mostrado como
eles esqueciam parcialmente a sua língua materna.
Mas qual seria finalmente o melhor método missionário? Sempre
ficaria difícil evangelizar nômades e semi-nômades
através de um padrão cultural que lhes era estranho. As aldeias
continuavam como unidades agrícolas artificiais. Acertar com um
método melhor era extremamente difícil, e o mais
satisfatório provavelmente nunca foi achado, apesar de ensaios
sinceros.
Não obstante esses problemas metodológicos, encontramos nos
documentos algumas anotações sobre batismos, e no
Presbitério de 1637 surge uma pergunta sobre o batismo de filhos de
brasilianos e de africanos, subentendido de pais já batizados. Quem
batizara os pais? Na realidade, as anotações sobre batismos de
índios adultos são poucas. Tem-se a impressão de que a
maior parte já havia sido batizada. E não é de estranhar
quando lembramos da praxe batismal católica romana. Durante esta mesma
época, por exemplo, em poucos meses, padres capuchinhos no
Maranhão batizaram milhares de índios. Portanto, quando os
reformados iniciaram seu trabalho no Nordeste, muitíssimos batismos
já haviam sido realizados, durante mais de cem anos, por jesuítas,
franciscanos e carmelitas. A Igreja Cristã Reformada reconheceu o batismo
da Igreja Católica Romana, apesar de certas dúvidas que surgiram
entre ministros evangélicos que entraram na herança
missionária romana. O teólogo puritano Voetius, da Universidade de
Utrecht, sempre advertiu para não se seguir o exemplo da praxe batismal
romana. E não deviam ser batizadas crianças cujos pais não
haviam sido batizados.
O presbitério decidiu, então, que filhos de pais já
batizados podiam receber o sinal da aliança desde que seus pais
"confessassem a Jesus Cristo". Um período de ensino bíblico era
necessário, e depois de ter certeza de que esses pais criam no Senhor
Jesus prometendo obedecer-lhe, seus filhos podiam ser batizados. Era um tipo de
reafirmação pública da sua fé por parte dos pais
antes de seus filhos poderem receber o selo do pacto da graça. As
crianças brasilianas cujos batismos foram registrados no Livro de Batismo
da Igreja Reformada do Recife, decerto tinham pais professos nessa
igreja.
II. EXPANSÃO,
1637-1644
Durante o ano de 1637 o pastor Soler no Recife e um jovem pastor na
Paraíba, David à Doreslaer, tiveram muitos contatos com os
índios, um preparo importante para a reunião seguinte do
presbitério. A de 1637 tinha sido basicamente de
purificação do corpo ministerial; a de janeiro de 1638 tornou-se
principalmente uma convenção missionária, embora ambos os
aspectos estivessem evidentes nos dois encontros. Na mesa estava um pedido dos
índios da Paraíba pleiteando seu próprio predicante. Nesta
altura havia ficado claro que a idéia do internato não funcionava
na prática, e o presbitério decidiu então atender o pedido
indígena e colocar um pastor nas aldeias para "pregar a Palavra de Deus,
administrar os sacramentos e exercer a disciplina eclesiástica", citando
assim as "três marcas da verdadeira igreja" conforme o artigo 29 da
Confissão Belga. Além disso, dois professores hábeis "na
língua espanhola" deveriam morar nas vilas para ensinar velhos e jovens a
ler e escrever como também dar instrução sobre os
fundamentos da religião cristã. Falou-se com o governo, o qual,
sob a liderança do Conde Maurício de Nassau, apoiou o plano
integralmente.
Em seguida, o presbitério pediu ao pastor David à Doreslaer,
que conhecia bem a língua portuguesa, que aceitasse este chamado,
assegurando-lhe que os colegas o assistiriam em seu serviço com conselho,
ajuda e oração. Rev. David, "convencido em seu
coração da necessidade e importância do caso, aceitou o
chamado no temor do Senhor". E, assim, mudou-se da capital paraibana para a
aldeia de Maurícia. A partir dali, vários serviços
missionários começaram a desenvolver-se, como a
pregação, a educação, a produção de
literatura e a diaconia.
A. Ministério de Pregação
Aparentemente o trabalho do pastor David no sul da capitania da
Paraíba foi recebido com muita satisfação, porque
já umas semanas depois os "deputados", representantes do
Presbitério do Brasil, escreveram aos Senhores XIX que eles tinham "boa
esperança" na conversão dos "moradores naturais" e nunca os sinais
da conversão tinham sido maiores. E o Conde Maurício comunicou que
os próprios índios enxotaram os padres, não querendo mais
admiti-los às aldeias.
Na reunião seguinte do Presbitério, em outubro de 1638, o
missionário David apresentou seu primeiro relatório, informando
que os brasilianos estavam freqüentando diariamente os cultos de
oração, cânticos e pregação, e atendiam
às admoestações, mas que era cedo demais para
celebração da Ceia do Senhor, pois havia problemas de
embriaguez.
Na realidade, surgiu aqui na missão reformada a questão da
separação dos sacramentos: será que um adulto já
batizado poderia participar da santa ceia do Senhor, ou deveria esperar durante
alguns anos? Esse problema surgira na Idade Média, mas acentuou-se
durante o século XVI, especialmente nas Américas, quando
milhões de índios foram batizados pelos padres. Em 1539, a segunda
junta apostólica romana do México decidiu que os índios
só poderiam participar da eucaristia depois de serem instruídos na
fé. No Nordeste brasileiro, na Igreja Cristã Reformada, que entrou
na herança missionária romana, a praxe, sem dúvida, corria
paralela à seguida no batismo dos adultos: a) instrução
bíblica para os catecúmenos; b) batizar somente quando pudessem
ser admitidos também à mesa do Senhor; c) pedir aos já
batizados pelos padres que fizessem uma pública profissão de
fé, antes de admiti-los à mesa da comunhão.
Não é bom ter pressa demais; frutos devem amadurecer. Mas
finalmente a primeira ceia do Senhor realizou-se: decerto em julho de 1640, em
Massurepe, Paraíba, na vila do líder indígena Pedro Poti,
reunindo índios de várias aldeias.
Antes disso, o pastor David tinha comunicado ao presbitério que ele
sozinho não conseguia mais atender toda a região, e os
irmãos, reconhecendo o problema, desdobraram o campo missionário:
David ficou com as aldeias paraibanas, e a parte sul, na capitania de
Itamaracá, passou aos cuidados do inglês Johannes Eduardus,
pastor em Goiana (PE), transferido de Sirinhaém. Esta divisão
ajudou muito o desenvolvimento da obra: também nas aldeias de
Itamaracá começaram as aulas de preparação para a
pública profissão de fé.
Da Paraíba o trabalho não se expandiu somente para o sul, mas
também para o norte: no Rio Grande o comandante Listri insistiu na
necessidade de um missionário entre os índios ali. Por enquanto,
infelizmente, havia falta de obreiros, e o Presbitério notificou o pastor
Cornelius Leoninus Filho, recém chegado e morando no Forte Reis Magos,
para que ele cuidasse dos indígenas na medida do
possível.
Inclusive, a capitania de Pernambuco precisava de um
missionário de tempo integral, disto não restava dúvida. O
pastor Soler, da igreja francesa no Recife, visitava dominicalmente a aldeia de
Nassau, perto da casa de campo do Conde (no atual bairro das Graças no
Recife), e ocasionalmente pregava na aldeia de São Miguel, uns
quilômetros para o norte. Em 1641 seu próprio pastor auxiliar, o
problemático francês Gilbertus de Vau, apresentou seus
serviços. Depois de um estágio no campo missionário de
Itamaracá, começou seu trabalho em São Miguel. Mas,
infelizmente, mudança de campo não muda a personalidade e De Vau
continuou causando problemas, tanto para o pastor Soler como na sua
própria aldeia. Depois de muita confusão, o Presbitério
resolveu demiti-lo, e finalmente foi embarcado de volta à Holanda,
ficando o Conde e seus conselheiros a se perguntarem "se ele tinha o seu
juízo completo".
B. Ministério de Educação
Além do ministério de pregação começou o
da educação. Mas onde estariam os professores que sabiam
falar o português? O primeiro professor evangélico entre os
índios foi o espanhol Dionísio Biscareto, casado com D. Ana,
holandesa. No mesmo dia em que foi decidido que David seria o "predicante" entre
os índios, Dionísio foi nomeado professor para Itapecerica, a
maior aldeia da região de Goiana. Mas somente depois de muita procura
acharam um professor para as aldeias paraibanas, o inglês Thomas Kemp,
cuja longa folha de excelente serviço na obra do Senhor pede uma
biografia posterior. De certo foi indicado para a aldeia de Massurepe.
Em geral o trabalho nas escolinhas estava indo bem. Um dos problemas,
porém, era a língua. A Holanda sempre quis que o holandês
fosse ensinado nas aldeias. Professor Dionísio tinha muitos filhos, mas
Kemp era solteiro. Então foi decidido procurar dois mestres de escola com
filhos a fim de que "os brasilianinhos, no decorrer do tempo, por meio da
conversação com os filhos dos mestres, possam aprender a
língua." E a Holanda mandou mais nove professores com suas respectivas
famílias para este fim. Mas provavelmente, os poucos holandesinhos teriam
aprendido o tupi antes dos muitos brasilianinhos aprenderem o
flamengo!
Como o ano de 1640 foi de suma importância na área da
pregação com a primeira santa ceia, assim também no setor
de ensino foi feito um grande progresso: iniciou-se neste trabalho a
brasilianização. Novamente foi o pastor Soler o idealizador
desse importante desenvolvimento. Durante a segunda reunião do
Presbitério naquele ano, ele observou que na aldeia de Nassau, perto da
casa de campo do Conde, havia "um brasiliano razoavelmente experimentado nos
princípios da religião, e no ler e escrever", e capaz de instruir
os índios. O pastor Eduardus, então, lembrou que havia alguns
outros assim também em Goiana. Decidiu-se sugerir ao governo que tais
índios fossem nomeados professores nas aldeias, solicitando-se para eles
um salário de 12 florins mensais, como um cabo do exército. Os
Senhores XIX, na Holanda, alegraram-se muito ao ouvir que brasilianos podiam
instruir a sua própria nação "no conhecimento do verdadeiro
Deus e do caminho reto da salvação".
Realmente foi um desenvolvimento importantíssimo. Foram os primeiros
professores indígenas da igreja evangélica da América do
Sul. E desde o início de 1641 dois professores índios estavam
trabalhando ao lado dos obreiros espanhol, holandês e inglês:
João Gonsalves e Melchior Francisco. O antigo alvo da Companhia de ter
indígenas na obra estava surgindo no horizonte.
C. Ministério de Literatura
Pierre Moreau afirmou em seu livro publicado em 1651, que os holandeses
tinham entre os índios vários ministros, sobressaindo-se um jovem
ministro inglês, que traduzira as Santas Escrituras para a
língua brasiliana.5 Tudo indica que o tradutor era o hábil
lingüista e pastor Eduardus. Mas o que traduziu, na verdade? A
informação deve ter sido ampla demais; provavelmente foram
traduzidos somente trechos bíblicos, mas nenhuma pista deles foi
encontrada nos arquivos por enquanto. Evidencia-se, entretanto, o esforço
da Igreja Cristã Reformada entregando aos índios a mensagem
bíblica em sua própria língua.
Além da Bíblia era necessário que houvesse um
catecismo em tupi. Muitos brasilianos conheciam como segunda
língua o português. A idéia, então, foi preparar um
catecismo em tupi, português e holandês. Originou-se talvez com o
pastor Soler, que já havia escrito algo em português. Nesse meio
tempo, o rev. David tinha sido mandado às aldeias, e a necessidade de um
manual de catecúmenos aumentou. O Presbitério incumbiu os pastores
Soler e David de confeccionar "uma breve, básica e clara
instrução na religião cristã".
No ano seguinte o trabalho ficou pronto e, depois de examinado pelo
Presbitério, foi enviado à Holanda para ser impresso sob o
título: "Uma instrução simples e breve da Palavra de Deus
nas línguas brasiliana, holandesa e portuguesa, confeccionada e editada
por ordem e em nome da Convenção Eclesial Presbiterial no Brasil
com formulários para batismo e santa ceia acrescentados." De fato David
era o autor, Soler dando apenas uma ajuda indireta.
Na Holanda, o Presbitério de Amsterdã achou que não
havia nada de errado no livrinho, mas que deviam ter seguido mais de perto a
ordem do Catecismo de Heidelberg (com suas divisões básicas sobre
a nossa perdição, salvação e gratidão).
Também, consideraram muito extensas as perguntas e muito resumidas as
respostas. Finalmente, ainda, que as fórmulas sobre o batismo e a ceia do
Senhor eram diferentes das aprovadas pelo Sínodo Nacional de Dordt, o que
era perigoso. O livrinho, então, devia ser devolvido ao Brasil.
Até esta altura o catecismo tupi não causara problemas.
Entretanto, a partir de julho de 1641, iniciar-se-ia um ano turbulento. A causa
foi que a Companhia das Índias Ocidentais mandou imprimir o pequeno
livro, sem mais nem menos, contra a opinião declarada do
Presbitério de Amsterdã. Foi numa gráfica de Enkhuizen,
importante cidade portuária no norte da Holanda, participante ativa da
Companhia, com grande igreja reformada, onde o pastor Abraão Doreslaer
era o pastor mais destacado. Rev. Abraão tinha muito interesse no
trabalho missionário, especialmente na publicação dessa
obra da autoria do seu próprio filho David. De certo foi ele quem
conseguiu as verbas para custear a sua publicação, e foi ele quem
corrigiu minuciosamente os testes. Amsterdã, porém, não se
conformou e levou o assunto ao Sínodo da Holanda. Até
concílios de outras províncias neerlandesas se dirigiram à
Companhia por causa do livrinho. Mas a Diretoria nem se preocupou com todo esse
barulho e enviou os catecismos ao Brasil, onde devem ter chegado em abril de
1642. Por outro lado, a Companhia pareceu conscientizar-se finalmente de que, de
fato, estava causando problemas e, numa carta ao governo no Recife, advertiu os
conselheiros sobre o "uso do catecismo brasiliano". Estes, por sua vez,
entregaram o catecismo nas mãos da igreja, que sabia dos problemas
através de correspondência recebida diretamente do
Presbitério de Amsterdã.
No início de junho dois representantes do Presbitério do
Brasil se encontraram com David para falar sobre o livrinho. Em seguida, David
escreveu da sua aldeia uma das cartas mais importantes da sua vida
missionária. Declarou que era ele o autor do Catecismo, inclusive dos
formulários, mas que entregou as duas partes ao Presbitério do
Brasil, que decidiu que seria uma publicação sua, e, então,
ele devia responder às indagações levantadas. Declarou que,
desde jovem, creu no que ouviu na igreja na pátria, subscrevendo-o na
hora da sua ordenação. Por isso queixou-se de que a igreja
houvesse suspeitado algo "estranho", o que tanto o entristecera, que quase
sentira vontade de deixar seu ministério entre os brasilianos. Em seguida
descreveu também o problema missionário da
publicação: era necessário ser bem simples, inclusive por
causa da língua indígena. Posteriormente, quando soubesse melhor o
tupi, acharia , se Deus quisesse, palavras para descrever melhor a riqueza da
Escritura.
Os representantes eclesiásticos do Brasil encaminharam a carta ao
Presbitério de Amsterdã, suplicando: "Por favor, deixem de
suspeitar de algum mal!" Amsterdã aceitou a explicação,
considerando, porém, que o autor devia ter tido mais cuidado no modo de
expressar-se. E depois de algum ribombar cessou o temporal ao redor de um dos
esforços missionários mais sublimes da época.
Mas como foi possível um livro tão pequeno causar uma
tempestade tão grande? Sem dúvida a causa era composta por
vários fatores. O mais evidente era a tensão entre a igreja e o
estado. Para todos os efeitos práticos, a Companhia representava no
Brasil o governo estabelecido. E os Senhores XIX de certo consideravam o
catecismo trilingüe como um projeto unificador de suma importância
para o Nordeste, promovendo sua publicação apesar da
desaprovação da Igreja.
Um outro fator era que a própria igreja temia que o Brasil estivesse
se desviando das três "fórmulas da união" adotadas pela
Igreja Cristã Reformada no Sínodo Nacional de Dordt em 1619: a
Confissão Neerlandesa, o Catecismo de Heidelberg e os Cânones de
Dordt. Mas com muita razão a igreja no Brasil insistia que nada disso
estava na mente de ninguém e que todos estavam uníssonos na
doutrina.
O problema mais básico era a tensão acerca da
responsabilidade missionária pelas colônias: será que era
somente das igrejas onde havia câmaras da Companhia das Índias
Ocidentais, ou da igreja nacional inteira? Por isso outros sínodos nos
Países Baixos participaram da discussão. Sem dúvida, por
ter o catecismo trilingüe entrado em campo numa época de
tensões nestas três áreas, ele foi aproveitado como bola
chutada na partida. E levantou mais poeira ainda por causa da grande velocidade
com que fez seu aparecimento, pressa do pastor David, do Presbitério do
Brasil, do velho pai Abraão e da Câmara de Enkhuizen. Decerto, o
pastor Abraão teria ajudado mais a seu filho se tivesse tentado contornar
o problema incluindo umas frases explicativas. Involuntariamente, a pressa
excessiva prejudicou a obra.
Onde encontraríamos um exemplar do catecismo? Até agora
não foi achada nenhuma pista, apesar de intensa procura. Repentinamente,
deparamo-nos com uma lista de livros existentes no armazém da Companhia
no Recife poucos dias antes da eclosão da revolta. Em primeiro lugar,
registraram-se 2.951 "livrinhos de perguntas" e em segundo lugar 2.200
catecismos em espanhol (tudo indica, de uma tradução muito falha).
Quanto ao resto dos livros não havia mais do que uns 200 exemplares de
cada. Qual seria o primeiro ítem da lista? Não pode referir-se ao
Catecismo de Heidelberg na língua holandesa, porque este aparece em
17º lugar da mesma lista. Tudo indica que estamos diante de uma pilha dos
catecismos trilingües, falados demais para serem usados, santos demais para
serem queimados.
D. Ministério Diaconal
Além do ministério de pregação e
educação, esboçava-se o aspecto diaconal ou da
assistência social. Os pastores se preocupavam com a saúde
dos índios, alertando o governo para a falta de alimentos,
remédios, etc., inclusive para a grave diminuição da
população indígena. Doreslaer e Eduardus calculavam que
para cada brasiliano que nascia, três morriam. Na expedição
naval contra Angola havia 240 índios, dos quais somente um quinto
regressou às suas aldeias. Então, por insistência do
Presbitério, o governo proibiu que os brasilianos servissem na
expedição seguinte.
Um outro problema social era a situação matrimonial
caótica em geral, também entre os índios. Muitos
brasilianos casados viviam separados das suas esposas, ou por causa da guerra ou
de "motu proprio". Não podiam casar-se novamente, embora alguns quisessem
fazê-lo. O Presbitério então considerou em 1638: "Não
podendo (os brasilianos) ficar sem a comunhão matrimonial, pergunta-se de
que maneira e por que meio podem ser assistidos na sua necessidade." O
concílio foi de opinião de que a parte desertora deveria ser
citada dentro de um período determinado, por um edital público do
juiz civil. Além disto, depois daquele período, a parte abandonada
deveria ser considerada e declarada livre da parte desertora. E o assunto
subiria ao magistrado para aprovação. Foi uma tentativa para se
trazer alguma solução legal à situação
matrimonial confusa reinante. De fato, foi o primeiro projeto de
reconciliação ou divórcio legal na América do Sul,
reconhecendo a dureza dos corações humanos.
Demorou dois anos para que alguma solução governamental fosse
dada. É que o magistrado hesitou por causa das "conseqüências
mais amplas". Finalmente, um edital foi promulgado em que todos os brasilianos
foram chamados a viver com as suas próprias mulheres, mas o resultado
prático foi limitado.
Por outro lado, o assunto da escravidão dos índios
pedia uma solução urgente. Desde o início da invasão
holandesa no Brasil havia se tornado claro que o tratamento conferido aos
brasilianos seria caracterizado por muita liberdade, tanto para os tupis
amansados como para os tapuias selvagens. A liberdade dos brasilianos seria
até um dos capítulos fundamentais da "Constituição
do Brasil Holandês". Os "Regulamentos" de 1629, 1636 e 1645 não
deixam margem de dúvida sobre isso. O motivo foi moral, mas também
político: não precisavam dos índios na guerra contra os
ibéricos? Além disto havia uma simpatia profunda na Holanda para
com os índios, pois os dois povos estavam sendo oprimidos pela
Ibéria, superpotência mundial da época. A própria
Holanda estava se libertando do jugo opressor e a mesma coisa devia acontecer
com os brasilianos.
Conseqüentemente, a conquista de uma das colônias
ibéricas na América do Sul foi motivo de grande júbilo, e
as musas inspiravam os poetas da época. Um dos médicos da frota
invasora cantou, depois da queda de Olinda: "... da escravidão liberto o
índio ..." E a própria Holanda vibrou com a notícia. Talvez
a poesia mais clara neste sentido seja a do pastor de Haarlem, Samuel Ampzing. O
título de um dos seus epigramas (que não eram necessariamente
satíricos para a época) era uma "Locução
poética para o indiano ocidental sobre a tirania espanhola e o
começo da atual vingança de Deus". Disse ele:
Deus está vendo a vossa injustiça e infelicidade
e vos faz estar aberta uma porta da liberdade.
O Batavo,6 o Pão da Vida vos fornecerá
e a mortífera violência espanhola castigará
...
Assim o Marrano7 das suas plagas expulsaremos nós
e o vosso arraial e país novamente adquirireis vós.
A Constituição do Brasil holandês era clara, mas como
este alvo se concretizou na realidade? Os Senhores XIX insistiram que fossem
postos em liberdade plena os brasilianos que tinham sido escravizados pelos
portugueses em 1625, depois da partida da esquadra holandesa. A
realização dessa meta demorou, todavia, e foi com o início
do trabalho missionário entre os indígenas que esta
libertação começou a tomar forma concreta. Quem melhor
podia sentir a real situação eram os obreiros missionários,
e freqüentemente, pessoalmente ou como concílio eclesial,
dirigiam-se ao governo para sanar irregularidades ou melhorar a lei.
Descobriu-se em 1638 que os moradores portugueses ainda tinham escravos
indígenas e o governo no Recife estipulou que deviam ser registrados para
verificação do título "justo" de escravidão, e, se
não, os capitães das aldeias deviam tirá-los dos lares
lusos. Realmente uma boa parte deles haviam sido presos nas
expedições punitivas ao redor da Baía da
Traição em 1625; estes deviam ser libertados
imediatamente.
Mas também a semi-escravidão começou a ser
combatida: o governo lembrou aos fazendeiros em Alagoas, que índios
somente podiam trabalhar nas lavouras se fosse de livre vontade, e somente com a
devida remuneração. Dois anos depois o Recife insistiu que
ninguém podia manter (em semi-escravidão) um brasiliano na sua
casa, sem o consentimento dos capitães das aldeias. Em caso de
transgressão dos moradores ou dos capitães, os
pastores-missionários podiam reclamar junto aos magistrados, o que
aconteceu de fato, pois depois de alguns meses os missionários Doreslaer
e Kemp dirigiram-se pessoalmente ao alto governo no Recife para denunciar que na
capitania do Rio Grande jovens, tanto rapazes como moças, e adultos
não-casados eram forçados a trabalhar em propriedades alheias.
Imediatamente o Conde de Nassau e seus conselheiros determinaram que isso estava
categoricamente proibido: os brasilianos eram livres e deviam ter tempo de
lavrar as suas próprias roças.
Outra forma de exploração era o sub-pagamento. Os
capitães das aldeias (holandeses ou índios) abusavam do seu poder
nesse ponto. Exigiam dos moradores um pagamento antecipado para uns cinco
peões indígenas, mandando somente três ou quatro que
largavam do serviço ainda antes de terminar. O governo, então,
estipulou que os capitães que abusavam do seu poder deviam ser
castigados; até seria melhor contorná-los, como o fazia o
governador da Paraíba, usando os pastores como mediadores entre os
fazendeiros e os trabalhadores indígenas. Os índios, por sua vez,
começaram a cogitar de uma mudança para as aldeias onde havia
missionários, mas não tinham coragem de fazê-lo por causa
dos capitães. Depois da intervenção do Presbitério,
o governo determinou que tais mudanças fossem realizadas, para que "o
crescimento da igreja de Deus" pudesse ser promovido, devendo se dirigir os
pastores não aos capitães, mas diretamente à Sua
Excelência o Conde de Nassau.
Dois casos específicos de atuação da igreja na
libertação dos índios devem ser mencionados ainda. O
primeiro é a famosa "lei do ventre livre" de 1645. Originou-se de uma
consulta do pastor Kemp e um colega. É que haviam alguns brasilianos
casados com escravas africanas, e também escravos negros casados com
mulheres indígenas. Será que neste caso a parte escrava devia ser
considerada livre? O governo decidiu o seguinte: a parte escrava não se
libertava pelo matrimônio, mas, sim, podia ser alforriada; e os filhos
desse tipo de casamento seriam considerados livres, reiterando que brasilianos,
sem exceção, eram livres, inclusive tapuias.
O outro caso específico foi a salvação da
antropofagia tapuia. Tanto no Ceará como no Maranhão
holandês vários senhores de engenho haviam comprado alguns jovens
(potiguaras e tapuias) a outros tapuias, que já haviam devorado uns dos
mais velhos. Perguntava-se agora o que se devia fazer: comprar e
soltá-los, comprar e revendê-los ou deixá-los para serem
devorados pelos tapuias? O governo, tanto no Recife como na Holanda, depois de
uma certa vacilação, pronunciou-se categoricamente contra qualquer
tipo de escravidão dos índios. Indicou até uma aldeia perto
de Goiana para esses brasilianos, e estudou posteriormente um meio para
indenizar aqueles que perderam seus escravos indígenas.
Decerto não é exagerado concluir que a realidade de serem
eles colonizadores-da-segunda-onda obrigou os holandeses a cumprirem realmente o
que a lei e a igreja defendiam no Brasil, tanto português como flamengo: a
liberdade dos índios. Por outro lado, nesta libertação dos
índios havia um sentido amplo, integral. Não era somente uma
libertação espiritual, para adoçar a realidade da
escravidão diária, mas inclusive a libertação
sócio-política, com todos os direitos humanos da época. E
não consistia somente numa libertação
sócio-política para encher a barriga indígena, mas
também na libertação espiritual com todas as promessas
divinas para a vida que agora é e da que há de ser, pois
não só de pão vivia o homem do século XVII (1
Timóteo 4.8, Mateus 4.4). Libertação religiosa,
porém não obrigatória como sob o domínio luso, mas
voluntária sob o domínio holandês reformado. Se
alguém tivesse sugerido uma libertação
sócio-política sem a libertação espiritual, toda a
ala cristã reformada o teria tachado de herético, e os da ala
católica romana teriam aplaudido pelo menos uma vez, porque a vida na
época ainda era homogênea, integral mesmo. E os missionários
procuravam de fato servir ao homem total de modo abrangente, num holismo
autêntico.
Infelizmente, todavia, as consciências cristãs estavam
subdesenvolvidas no que diz respeito à escravidão africana,
porque quando o corajoso pastor recifense Jacobus Dapper perguntou se era
lícito a um cristão negociar ou possuir escravos, até o
Conde de Nassau opinou que eram escrúpulos desnecessários. Assim,
ele se conformava à opinião do seu tempo, embora contrariando o
pensamento do pai intelectual da Companhia, o belga Willem Usselincx, e
também do pai espiritual da Igreja Reformada, o francês João
Calvino.8
O segundo período do trabalho missionário durante o governo
de Maurício de Nassau (1637-1644) estava terminando. Depois da euforia
dos primeiros anos instalou-se uma certa decepção com os
resultados parcos e surgiram dúvidas a respeito dos métodos
usados. Uma reflexão mais madura foi dificultada devido ao regresso
à Holanda de três grandes obreiros com seus dons diversos: Soler o
motor, Doreslaer o fundador e Eduardus o tradutor. As fileiras tinham sido
reforçadas um pouco com a ordenação de Kemp para pastor, e
a promoção de Dionísio para "proponente". E na área
da educação o ex-soldado Johannes Apricius havia começado o
seu trabalho nas aldeias da Paraíba. A igreja, então, não
abandonou o trabalho missionário, mas inaugurou-se um período de
paciência perseverante, sabendo que os frutos viriam. O Conde voltou para
Europa, e ninguém imaginava que o teste viria tão cedo.
III. CONSERVAÇÃO,
1645-1654
O último período da missão da Igreja Cristã
Reformada pode ser denominado como época da paciência; não a
da resignação, mas a da esperança, conservando com muito
amor a obra iniciada. Inaugurou-se com duas assembléias importantes, uma
eclesiástica, outra política.
À mesa da assembléia geral das igrejas chegaram vários
pedidos de tribos que queriam receber os seus próprios obreiros, tanto no
sul, na região do Rio São Francisco, como no Rio Grande do Norte.
Aliás, de lá, até o cacique dos tapuias, Nhandui, pediu
ajuda. Foi difícil achar as pessoas necessárias. O professor
Dionísio Biscareto foi ordenado pastor, e dois brasilianos nomeados
professores; no mais, os obreiros das igrejas holandesas teriam de auxiliar na
medida do possível. Por outro lado, o próprio governo requisitou a
assistência da igreja. Reconhecendo que deviam ser mais cuidadosos no
contato transcultural, pediram ao Sínodo que alguns pastores "que
conhecem melhor o caráter dos índios" traçassem um
regulamento para a vida diária nas aldeias. Sob orientação
do pastor Kemp preparou-se um projeto com uma aplicação do
Decálogo à sociedade indígena, o qual foi aprovado pelo
governo e implantado nas aldeias.9
Poucos meses antes do começo da revolta em 1645, reuniu-se em
Itapecerica, na capitania de Itamaracá, a primeira grande
assembléia indígena com 120 representantes. Foram organizadas
três câmaras, encabeçadas por três "regedores": a
câmara de Itamaracá, sob o índio Carapeba; a câmara de
Paraíba, sob o índio Pedro Poti; e a câmara do Rio Grande,
sob o índio Antônio Paraupaba. Ao lado deles o governo
holandês nomeou Johannes Listri como comandante geral.
O teste final e violento da política governamental e da
missão reformada veio três meses depois da assembléia
indígena, com a eclosão da guerra da restauração
portuguesa. A fidelidade dos brasilianos refugiados ao redor das fortalezas
litorâneas foi impressionante, atestada por todos os documentos. Os mais
famosos destes são as chamadas "cartas tupis", basicamente uma
correspondência entre dois primos brigados, escritas em sua língua
materna: o capitão-mor Filipe Camarão e seus oficiais e Pedro Poti
e seus homens. O primeiro era o grande defensor do lado luso-romano na guerra do
açúcar, o segundo o decisivo parceiro do lado flamengo-reformado,
disposto a "viver ou morrer" com os holandeses.
Em todas essas cartas está patente a estreita ligação
entre fé e nação, igreja e estado. Filipe Camarão
escreveu: "... não quero reconhecer a Antônio Paraupaba nem a Pedro
Poti, que se tornaram hereges ..." O índio Poti por sua vez respondeu
numa longa carta datada do dia 31 de outubro de 1645, talvez de propósito
no dia comemorativo da reforma protestante. Nessa carta Poti afirma que seus
índios viviam em maior liberdade do que os outros, enfatizando que os
portugueses queriam escravizá-los. Lembrou as matanças da
Baía da Traição e de Sirinhaém, havia poucas
semanas, onde, depois da rendição da força holandesa, os
portugueses mataram cruelmente todos os 23 índios prisioneiros de guerra,
apesar das condições acordadas. Mencionou ainda como foi educado
na Holanda e confessou ser cristão "crendo somente em Cristo, não
desejando contaminar-se com a idolatria", exercitando-se diariamente na
fé. Convidou finalmente seus parentes e amigos a passar para "o lado dos
piedosos", que "nos reconhecem no nosso país e nos tratam bem."
As cartas seguiram para a Holanda, ou na forma original ou em cópia.
Ali foram traduzidas pelo pastor Eduardus, utilizando o vocabulário que
ainda possuía da língua tupi. Em verdade elas formam um ponto alto
na história da missão reformada, num momento crucial dos anos da
ocupação flamenga do Nordeste brasileiro. Nenhum dos primos,
porém, veria o desfecho final da luta sangrenta. Filipe Camarão
faleceu em 1648, depois da primeira batalha de Guararapes, e, no ano seguinte,
Pedro Poti foi aprisionado na segunda batalha naquelas colinas perto do
Recife.
Depois de restabelecido um pouco de paz, o trabalho missionário
continuou. Um passo muito importante foi dado, não quantitativo, mas
qualitativo: a brasilianização dos pregadores. A partir de
1647 nomes de pregadores indígenas começam a se destacar. O
conhecido professor índio João Gonsalves, um homem "muito honesto
e fiel no seu ministério", que já trabalhava durante cinco anos
numa das aldeias da Paraíba, por sugestão do missionário
Kemp foi promovido a "consolador de enfermos", e o Presbitério pediu
maior salário para ele, sendo agora evangelista. Deve ter havido mais um
consolador indígena, e com estes dois a primeira igreja indígena
estava tomando uma forma mais autêntica. O surgimento de diáconos,
presbíteros e pastores era uma questão de tempo.
Também na área do ensino a brasilianização
continuou e o Presbitério nomeou mais dois professores índios,
Álvaro Jacó e seu colega Bento da Costa, sendo colocados na folha
de pagamento dos funcionários eclesiásticos pagos pelo governo no
Recife.
Ao lado do trabalho da pregação e do ensino destacou-se nesse
tempo difícil a diaconia. A população
indígena, junto com seus aliados europeus, comprimida numa faixa estreita
do litoral pela revolta lusa, estava passando por "incrível
miséria". A maior parte havia se refugiado na ilha de Itamaracá.
Por isso, uns mil e duzentos, especialmente mulheres e crianças, foram
levados ao Rio Grande onde era mais fácil protegê-los contra os
ataques dos portugueses. O presbitério apelou para que a Holanda ajudasse
os brasilianos, "de grande fidelidade e da nossa religião, havendo-se
convertido a Cristo".
As igrejas na Holanda reagiram, Amsterdã em primeiro lugar, mas
também o próprio Nassau, mandando entre outras coisas boa
quantidade de linho, muito cobiçado pelos índios. Depois de serem
transportados gratuitamente pela Companhia, os donativos haviam de ser
distribuídos no Brasil. Sabemos de pelo menos três
distribuições. A primeira realizou-se em 1647 sob
orientação do pastor Kemp, entre os refugiados decerto ao redor do
Castelo Reis Magos no Rio Grande. A segunda ocorreu perto do forte "Cabo Dello"
na Paraíba, sob controle do pastor Biscareto. Aí, entre os 60
nomes registrados aparecem somente 10 homens; de 15 senhoras foi dito
especificamente que eram viúvas, cada família recebendo entre 3 e
7 "côvados".10 A terceira distribuição foi feita no forte
Wilhem, na capitania de Itamaracá, pelo pastor Apricius na
presença do regedor Carapeba e seus oficiais, alcançando 135
pessoas, sendo que eram somente mulheres e crianças.
A gratidão das igrejas indígenas foi grande, "não
podendo admirar-se o bastante de como era possível que irmãos que
nunca os viram lhes dessem provas de tão grande afeição". A
ajuda, entretanto,não podia ser mais do que um alívio
temporário; não podia evitar que a situação entre os
índios chegasse a ser desesperadora. Os brasilianos "quase não
queriam mais deixar-se consolar."
O domínio holandês estava terminando. Em 1649, na segunda
batalha de Guararapes, o regedor Pedro Poti foi preso, não podendo
esperar nenhuma compaixão dos seus juízes. Seu sofrimento deve ter
sido terrível. Conforme testemunho de Antônio Paraupaba ele foi
lançado num poço, onde permaneceu durante seis meses. Quando
retirado, de vez em quando, padres, juntamente com seus parentes, saltavam sobre
ele, tentando força-lo a abjurar a religião reformada. Mas, disse
Paraupaba, o Deus de toda misericórdia na vida e na morte, que o havia
trazido da escuridão para a luz, fortaleceu aquele junco frágil,
transformando-o num pilar da fé. Todos que estavam presos com ele naquele
tempo no Cabo Santo Agostinho puderam testemunhar isto. Depois foi embarcado
para Portugal, "viagem que não acabou, atalhada da morte."
A guerra da restauração, sem dúvida, aproximou ainda
mais os índios dos holandeses, e não é para menos que um
dos motivos da persistência flamenga, encurralados durante nove anos,
tenha sido o pacto com os brasilianos. Quando não houve mais
condições de segurar o Recife, com as tropas de Francisco Barreto
às portas das fortificações e uma armada lusa a
forçar a entrada do porto, o Nordeste foi devolvido a Portugal. Terminou
também forçosamente a missão cristã reformada, a
qual era impossível sem a proteção de um país
protestante.
De fato, os índios "rebeldes à coroa de Portugal" foram
incluídos no perdão geral da capitulação de Taborda
de 26 de fevereiro de 1654. Mas a maioria fugiu, não acreditando nas
promessas. Percorreram mais de 750 quilômetros de sertão para a
Serra de Ibiapaba, longe no oeste do Ceará. Ali se juntaram aos
índios tabajaras. Com os refugiados a população deve ter
chegado a umas quatro mil pessoas, um verdadeiro "Palmares dos índios".
Sem dúvida, corsários holandeses mantiveram contato com eles, e
foi num desses navios que embarcou Antônio Paraupaba, com dois dos
seus filhos, como representantes dos refugiados.
Dentro de poucos meses, em agosto de 1654, Paraupaba apresentou na Holanda
uma "Remonstrância" em nome da "nação índia inteira",
dirigida ao governo central, os Estados Gerais dos Países Baixos.
Pleiteou que esses, como "senhores alimentadores da igreja verdadeira de Deus",
mandassem socorro o quanto antes, caso contrário, seus brasilianos seriam
extirpados. O governo apoiou o pedido, mas não fez muito, pois vinte
meses depois Paraupaba entregou outra "Remonstrância" implorando pelo seu
povo. "Ajudem agora! A luz da Palavra de Deus será apagada por falta de
pastores." Não sabemos o que foi feito, mas armas e panos e talvez um
obreiro devem ter chegado ao Nordeste na barra do rios Camocim, Jaguaribe e
Açu, fomentando depois a "Guerra dos Bárbaros". Paraupaba ficou na
Holanda, onde faleceu, provavelmente no frio inverno de 1657, pois na capa do
panfleto que contem as duas "Remonstrâncias" se diz que "durante sua vida
foi regedor dos brasilianos na capitania do Rio Grande."11
Enquanto isso, no Nordeste, o padre jesuíta Antônio
Vieira visitou a Serra de Ibiapaba ainda em 1654. Conforme ele, a
região tinha se tornado uma verdadeira "Genebra de todos os
sertões do Brasil". A influência do ensino religioso havia sido
mais profunda do que se imaginava à primeira vista. Os padres ficaram
atônitos diante do traje fino dos indígenas, da arte de ler e
escrever e especialmente do lado religioso, porque "muitos deles eram tão
calvinistas e luteranos como se houvessem nascido na Inglaterra ou Alemanha",
considerando a igreja romana uma "igreja de moanga", uma igreja falsa.
Quando de viagem a Portugal, Vieira reteve para os jesuítas o
encargo de cuidar espiritualmente dos índios em geral, com uma
recomendação especial pela "reformação" dos
indígenas influenciados pelos holandeses. Com muito cuidado, a
missão de Ibiapaba finalmente conseguiu arrebanhar os índios
novamente à obediência de Roma. Se tivesse existido liberdade
religiosa poderiam ter permanecido como a primeira igreja indígena
evangélica nas Américas, à semelhança da igreja
indígena reformada nas ilhas do arquipélago da Indonésia.
Mas debaixo da bandeira portuguesa, isto era absolutamente
impossível.
O último vestígio da missão reformada no Nordeste
apareceu durante a "Guerra dos Bárbaros". Foi uma luta de ferro e fogo
que grassou no oeste do Rio Grande do Norte durante os últimos anos do
século XVII, em que os tapuias nhanduis foram exterminados por
serem "inadaptáveis, insubmissos e saudosistas".12 Lembrou em certos
aspectos a contemporânea revolta dos camisardos, os huguenotes do sul da
França, depois da revogação do Edito de Nantes.
Até que ponto esses tapuias tinham sido evangelizados pelos
holandeses, não sabemos. Depois do convite do cacique Nhandui, o "ema
pequena", os pastores Kemp e Apricius e outros obreiros devem ter estado com
eles, mas na verdade perdemos os rastros concretos da sua
evangelização. Sabemos, contudo, que o contato com eles se
estremeceu poucos meses depois da eclosão da revolta lusa. É que o
pastor Stetten, acompanhado por um grupo de soldados, foi mandado ao Rio Grande
para refrear os tapuias para não acabarem com todos os portugueses,
pressentindo, de certo, que tinha chegado a hora da verdade: ou os portugueses,
ou eles haviam de morrer um dia.
Na rendição dos holandeses em 1654 os tapuias foram
incluídos no perdão geral. Uns aceitaram, mas os outros? E o que
sobrou da missão reformada entre eles? Talvez mais do que pensamos.
Deparamos com a "Memória" do capitão Pedro Carrilho de Andrade
falando sobre os "Jandois" do Rio Açu: para eles "não deve valer a
imunidade da igreja por serem uns hereges e públicos tiranos..." Poucos
anos depois deparamos com um dos líderes tapuias, preso na cadeia do
Recife, tendo seu nome registrado como "João Pregador". Sua
notícia chegou até Lisboa, onde o Conselho Ultramarino "lembrou
que fosse remetido para Angola ou para outra parte, com um praça de
soldado". Seria esse João Pregador um tipo de missionário
indígena, um "consolador" do clã dos Nhanduis? Por enquanto
não dispomos de outros indícios, embora seu apelido soe
especificamente "reformado", pois a pregação da Palavra de Deus
era central em todo o culto reformado. João Nhandui era pregador
do povo, "predicante" dos tapuias.
CONCLUSÃO
Finalmente, tentemos avaliar o trabalho missionário da Igreja
Cristã Reformada no Nordeste, pensando no lado qualitativo e
quantitativo.
A respeito do total dos missionários, a primeira impressão
é que o número deles era muito baixo. Mas convém colocar os
esforços no conjunto do total dos obreiros disponíveis. Entre os
índios trabalharam três tipos de irmãos: pastores (e
"proponentes" ou licenciados), "consoladores" (ou evangelistas) e professores
(ou "leitores"). Os documentos nos fornecem mais de cem nomes de evangelistas e
professores, mas é extremamente difícil definir quantos deles
estavam entre os índios. Quanto aos pastores, as
informações são bem mais específicas. Ao todo houve
47 ministros no Nordeste durante os anos da ocupação holandesa.
Dentre eles seis eram missionários de tempo integral. De mais meia
dúzia sabemos que fizeram um trabalho de tempo parcial, outros dois
ocasionalmente, e mais cinco serviram à causa indígena
indiretamente. Juntando tudo, podemos afirmar que pelo menos 17% do
esforço pastoral esteve voltado para o trabalho entre os índios. E
nos últimos anos da colônia isto subiu para até
40%!
Quanto ao aspecto qualitativo, isto depende em grande parte do ponto
de vista do avaliador. Em geral, as avaliações negativas
são inspiradas por sentimentos como os de frei Manuel Calado, que
escreveu em 1648 que "os índios foram traidores, à lei de Deus e
à Pátria amada...",13 colocando-os na categoria do mulato Calabar.
As avaliações positivas geralmente se inspiram na fonte da reforma
evangélica do século XVI, como o luterano Helmut Andrae ou o
presbiteriano Domingos Ribeiro, em estudos valiosos14 baseados na
tradução das atas do Presbitério do Brasil. Realmente o
assunto é controvertido por natureza: missões por invasores? Mas
quem foram os primeiros moradores do Brasil, e quem os primeiros
invasores?
Fatos não mudam, mas a interpretação deles sim. A
imensa quantidade de informações complementares que vieram
à tona, corroborando e ampliando o quadro das atas conhecidas do
Presbitério do Brasil, nos comprovam que, pela graça de Deus, foi
feito um bom trabalho.
Mas quem devia opinar em primeiro lugar seriam os próprios
índios. Os poucos documentos do lado deles revelam uma grande
confiança nos obreiros reformados, uma sincera lealdade à causa
evangélica abraçada e uma profunda gratidão por terem
conhecido melhor a Cristo. A avaliação final e definitiva,
porém, virá quando estivermos ao redor do trono daquele que
enxugará todas as lágrimas. E disso testificaram também os
brasilianos no nordeste do Brasil holandês, inclusive usando as palavras
do primeiro "Domingo" do Catecismo de Heidelberg, traduzido na sua língua
tupi pelo seu pastor Johannes Apricius.
Perguntava o consolador indígena João Gonsalves: "Qual
é a tua única consolação na vida e na morte?" E seus
alunos respondiam: "É que, de corpo e alma, na vida e na morte,
não pertenço a mim mesmo, mas sim ao meu fiel Salvador Jesus
Cristo..."
Na vida e na morte... Também quando não havia mais lugar para
índios evangélicos num Brasil de dimensões
continentais.
- O autor é pastor da Igreja Reformada Holandesa, com mestrado pelo
Calvin Theological Seminary, nos EUA, e doutorado em História pela
Universidade Mackenzie, em São Paulo.
1
Paulo Florêncio da Silveira Camargo, História
Eclesiástica do Brasil (Petrópolis: Editora Vozes, 1955)
146.
2 Frans Leonard Schalkwijk, Igreja e Estado no Brasil
Holandês, 1630-1654, 2ª ed. (São Paulo: Vida Nova,
1989).
3 José Antônio Gonsalves de Mello, "Vicent Joaquim Soler
in Dutch Brazil," em E. van den Boogaart, ed., Johan Maurits van
Nassau-Siegen, 1604-1679 (‘s Gravenhage: The Johan Maurits van Nassau
Stichting, 1979) 247-255.
4 Frans Leonard Schalkwijk, "A Igreja Cristã Reformada no
Brasil Holandês. Atas de 1636 a 1648," em Revista do Instituto
Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano,
LVIII (1993) 145-284.
5 Pierre Moreau, Histoire des derniers troubles du Brésil
(Paris: Courbe, 1651) 204.
6 Batavo: antigo nome para os holandeses.
7 A palavra marrano se usava na Ibéria para os cristãos
novos, na Holanda para os ibéricos.
8 André Biéler, La Pensée Économique
et Sociale de Calvin (Genebra: Librairie de L’Université Georg
& Cie, 1961) 17ss.
9 Cf. Catecismo de Heidelberg sobre os Dez Mandamentos, "Domingo"
34-44.
10 Um côvado holandês na época era equivalente a quase
70 centímetros.
11 Antônio Paraupaba, Twee verscheyden Remonstrantien
(‘s Gravenhage: H. Hondius, 1657).
12 Luis da Câmara Cascudo, Histórias que o Tempo Leva
(São Paulo: Monteiro Lobato, 1924) 65-76.
13 Manuel Calado, Valeroso Lucideno e Triumpho da Liberdade (Recife:
CECIP, 1942) 230.
14 Helmut Andrae, "Kalvinist und Rothaut," em Staden Jahrbuch, Band
9/10, 103-127; Instituto de São Paulo, Hans Staden, 1962; Domingos
Ribeiro, Origens do Evangelismo Brasileiro (Rio de Janeiro:
Gráfica Apollo, 1937).