O Que
Estão Ensinando aos Nossos Filhos? Uma Avaliação Teológica Preliminar de
Jean Piaget e do Construtivismo
F. Solano Portela Neto
Introdução: A Relevância do Tema
Nas últimas décadas o ensino
brasileiro foi submetido a várias tentativas de atualização. Técnicas modernas
têm sido empregadas e as metodologias utilizadas são cobertas de uma auréola de
pesquisas científicas. Nossos injustamente mal-remunerados profissionais de
ensino têm procurado capacitar-se cada vez com maior afinco. No entanto, a realidade
é que vivemos uma crise em nossas escolas. A crise não é gerada somente pela
falta de investimentos no setor ou pela deficiência acadêmica das escolas
públicas. Ela está profundamente enraizada na filosofia de educação recebida
desde a tenra infância. Ela se reflete concretamente no nosso lar, na formação
dos nossos filhos, no conhecimento que recebem ou que deixam de receber, na
visão de vida que tendem a desenvolver, nos padrões de aferição que constróem
para sua existência, na suposta “apreciação da vida com responsabilidade” que
leva jovens a viver irresponsavelmente.
É necessário que procuremos
conhecer a filosofia que vem sendo crescentemente aplicada há mais de três
décadas em quase todas as escolas e que tem servido de base para a formação de gerações
de professores dos nossos filhos. É necessário que venhamos a aferi-la por um
padrão maior de julgamento. É imprescindível que consideremos a questão
educacional no seu contexto moral e, portanto, não como uma atividade autônoma
do esforço humano, mas como sujeita às determinações e diretrizes que o Criador
de todas as pessoas colocou em sua Palavra, para nossa orientação.
Se procurarmos a filosofia
predominante em nossas escolas e na formação pedagógica das últimas décadas,
esbarraremos no construtivismo, que
considera o conhecimento como sendo resultado das interações da pessoa com o
ambiente onde vive. Nesse conceito, todo conhecimento é uma construção que vai sendo gradativamente
formada desde a infância, no relacionamento com os objetos físicos ou culturais
com os quais as crianças travam contato. De uma forma simplificada, podemos
dizer que o construtivismo postula
que o conhecimento é algo que cresce
subjetiva e individualmente, como um cristal em uma solução salina. Nesse
sentido, não é algo que deva ser transmitido ou dado pelo professor. O mestre é
apenas um agente facilitador nesse
processo de crescimento. De acordo com o construtivismo, o direcionamento dos professores (e, por inferência, dos pais e de
todos os envolvidos no processo educativo da criança) pode ser algo prejudicial e não benéfico ao estudante,
principalmente se eles não compreenderem os estágios de assimilação cognitiva
das crianças1 e
procurarem agir como agentes transmissores
de suas próprias realidades.
O construtivismo é a filosofia
atual de maior alcance, abrangência ou influência na sociedade brasileira. Essa
afirmação ousada é respaldada pela constatação da sua aceitação praticamente
universal pelas escolas de primeiro grau, tanto as seculares como as chamadas
evangélicas. Portanto, a indiferença não é uma postura possível
às pessoas conscientes. Você pode nunca ter ouvido o termo; você pode não ter o
mínimo interesse em filosofia educacional; você pode não ter familiaridade com
os nomes dos principais proponentes dessa corrente, mas são altíssimas as
possibilidades de que o construtivismo já influenciou ou vai influenciar a sua
vida. Se você tem filhos em idade escolar, há mais de 90% de probabilidade de
que estão sendo orientados com uma visão educacional construtivista. Mesmo que
a prática pedagógica em uma escola específica não seja coerentemente
construtivista, essa filosofia, que abraça não somente a forma de desenvolver o
conhecimento, mas também a formação dos sistemas de valores e relações
interpessoais, terá participado ativamente da formação dos alunos.
I. Objetivos deste Ensaio
Nosso objetivo não é fazer uma
exposição detalhada do construtivismo. Existem muitos trabalhos que podem
realizar esse propósito. Queremos demonstrar, partindo da constatação da
aceitação abrangente e acrítica do construtivismo na quase totalidade do
cenário educacional brasileiro, que ele é muito mais do que uma metodologia de educação. Na realidade, é
uma filosofia que possui muito conteúdo e está fundamentada em postulados
epistemológicos, comportamentais e morais que contradizem princípios da fé
cristã. Além disso, o ensaio não pretende trazer uma palavra final sobre
conceitos do construtivismo e como eles se relacionam com as Escrituras, mas
introduzir o assunto e destacar alguns pontos contrastantes de inquestionável
importância. A intenção é despertar um amplo debate cristão, pedagógico e
teológico sobre o construtivismo.
Os educadores cristãos devem
fazer um exame criterioso do construtivismo, à luz das Escrituras. É necessário
discernir se praticam realmente uma metodologia, ou se abraçaram uma filosofia
e, qualquer que seja o caso, se existe respaldo na Palavra de Deus para o que
estão colocando em prática e se essa escola é coerente com a totalidade das
premissas cristãs de vida.
Os pais cristãos devem se
aperceber de que nas escolas onde os seus filhos estudam a questão vai muito
além de “como as coisas estão sendo
ensinadas”; na realidade, os pais devem demonstrar profundo interesse pelo
conteúdo ministrado às suas crianças e pelo tipo de formação existente na
escola, inquirindo persistentemente – o
que estão ensinando aos nossos
filhos?
II. Jean Piaget Lança os Fundamentos
Jean Piaget (1896-1980)
foi um estudioso e pesquisador que apresentou características extremamente
precoces. Aos 11 anos, em 1907, já era assistente do museu de história natural
de Neuchâtel, na Suíça, sua cidade natal. Piaget interessou-se intensamente
pela biologia e com 21 anos de idade, em 1917, possuía em torno de 25 trabalhos
publicados nessa área, na qual obteve o seu doutorado. Seu interesse por esse
ramo da ciência iria nortear seus trabalhos subseqüentes em outros campos, o
ponto de considerar a biologia “uma nova dimensão: como ciência da vida, pode
ter a chave de explicação de todas as coisas.”2 Muito cedo ele desenvolveu o apreço pela metodologia
científica que o levaria a revolucionar o campo da psicologia educacional e da
pedagogia, realizando experiências e pesquisas em vez da simples emissão de
idéias.
A originalidade de Piaget
“consiste na abordagem experimental dos problemas filosóficos.”3 Essa frase, escrita por uma educadora construtivista,
apreende e expõe um dos pontos mais mal-entendidos na obra de Piaget. Enquanto
ele é propagado e reconhecido como educador,
tendo o seu nome adornado centenas de escolas primárias, especialmente no
Brasil, que se colocam como praticantes do seu “método,” Piaget não desenvolveu
nenhum método específico, mas examinou e estabeleceu premissas filosóficas. Esse fato é reconhecido, com uma percepção
rara no meio pedagógico, por essa sua seguidora, que escreveu ainda: “Os
problemas enfrentados pelo empreendimento intelectual de Piaget são tipicamente
filosóficos, já que seu interesse predominante foi responder a questões
clássicas da filosofia, naquilo que se refere ao conhecimento.”4 Certamente não pairam dúvidas de que Piaget estabelece
alicerces filosóficos, como revela a mesma educadora: “O edifício teórico
construído por Piaget está impregnado do diálogo filosófico.”5
O foco das preocupações de
Piaget foi “explicar a passagem da evolução biológica, e principalmente
psicológica, do ser humano, para a construção das matemáticas e das ciências
formais em geral.”6 Um
dos seguidores de Piaget cristaliza bem a sua compreensão naturalista da
evolução do conhecimento no indivíduo, dizendo que, na visão construtivista de
Piaget sobre as atividades metafísicas das pessoas, “o desenvolvimento do
conhecimento é um processo biológico.”7
O objetivo de Piaget foi
desenvolver uma teoria do conhecimento e sua progressão, no indivíduo, de um
estágio simples a um mais complexo. Inicialmente buscou teorizar sobre o
desenvolvimento cognitivo partindo de uma visão evolutiva da humanidade – desde
o homem primitivo até os dias atuais (filogênese), mas passou a se concentrar
no desenvolvimento do conhecimento desde o nascimento até a idade adulta
(ontogênese). Muito do seu trabalho é classificado como psicogenética, na qual procura descrever os estágios pelos quais
passa a criança desde os primeiros passos (aquisição de uma inteligência
prática) até a postura lógica-dedutiva que caracteriza a adolescência e a idade
adulta. Partindo de suas pesquisas, Piaget postulou quatro estágios, ou
períodos, no desenvolvimento mental da criança:
1. O período
sensório-motor – do nascimento aos 2 anos;
2. O período pré-operatório – dos 2 aos 7 anos;
3. O período das operações concretas – dos 7 aos
12 anos;
4. O período das
operações formais – dos 12 aos 15 anos.8
A revolução acadêmica
provocada por Piaget atingiu praticamente todas as correntes pedagógicas, no
sentido de que pelo menos as metodologias de qualquer persuasão foram
repensadas. Nesse sentido, podemos registrar nos últimos anos alguns
melhoramentos saudáveis no sistema educacional, tais como: (1) O processo
educacional passou a ser mais interativo e participativo – mais interessante
para o aluno; (2) A individualidade dos alunos passou a ser observada pelos
professores com maior intensidade e consideração; (3) As limitações dos alunos
não foram descartadas; (4) Os pais, e não somente a escola, foram considerados
uma parte importante para o conhecimento dos educandos; (5) O material didático
produzido passou a apresentar não somente conteúdo, como também forma, sendo
que esta última acentuou a atratividade estética, procurando despertar o interesse
dos alunos.
Podemos dizer que o
construtivismo sacudiu os acomodados, mas infelizmente não podemos creditar os
avanços acima descritos à implantação coerente
dessa filosofia nas escolas. Para podermos entender os conflitos e contradições
inerentes ao construtivismo, um autor construtivista afirma que o sistema
escolar não deve ser um “adestramento domesticador dos jovens para conformá-los
às regras, valores e símbolos da sociedade adulta.”9
III. Piaget, a Objetividade das Pesquisas e as Implicações Morais do Construtivismo
Educadores e pedagogos admitem
que os estudos sobre a teoria construtivista começaram com Piaget,10 mas o termo construtivismo
não tem sua origem nem popularização nas suas obras, como adverte um autor
construtivista: “A palavra ‘construtivismo’ não é ‘clássica’ na obra de Jean
Piaget. Creio que ele passou a empregá-la na última fase de sua produção
escrita (ou seja, nos últimos vinte anos dos sessenta em que escreveu
sistematicamente sobre Epistemologia).”11
As idéias de Piaget apareceram
na forma de conclusão de observações e experiências. Diferiam, assim, das meras
opiniões emitidas até então por educadores e psicólogos. Pareciam mais
“científicas” por estarem respaldadas em dados e experiências. Ocorre que essas
pesquisas foram bastante limitadas e subjetivas. Muitos educadores, até mesmo
construtivistas convictos, têm, com justiça, criticado a extrapolação das
afirmações tão conclusivas do construtivismo sobre a epistemologia da
humanidade com base em levantamentos experimentais e dedutivos tão restritos.12
O fato é que Piaget, sendo
autor prolífico e contando com inúmeros colaboradores e colaboradoras em suas
pesquisas, ampliou suas atividades na área psico-educacional, e não ficou
restrito à mecânica do aprendizado. Uma de suas áreas de interesse foi a
questão do julgamento moral e do ensino da moralidade às crianças,
cristalizadas em seu livro O Juízo Moral
na Criança, escrito em 1932. Ele levou a esse campo os postulados já
emitidos na área da epistemologia. Uma das conclusões de Piaget, ao pesquisar como as crianças aprendiam, foi de que direcionamento pedagógico é igual a coação intelectual. Com isso estabeleceu
bases libertárias para o construtivismo, inibindo a ação orientadora dos
professores como transmissores de conhecimento. Semelhantemente, na área das
convicções morais, Piaget realizou pesquisas para postular que direcionamento ético é igual a coação moral. Ele considerava suas
conclusões nos dois campos extremamente paralelas, afirmando que “a coação
moral é parente muito próxima da coação intelectual.”13
As implicações dessa espiral
abrangente no trabalho de Piaget e seus seguidores não pode ser ignorada. O
construtivismo nunca pode ser entendido como uma metodologia educacional, mas
como uma filosofia que atinge tanto a esfera cognitiva como a moral, com
conseqüentes reflexos na totalidade da existência tanto dos educandos como dos
educadores. No campo do aprendizado moral, Piaget se posicionou firmemente
contra o realismo moral, que ele definiu como a “tendência da criança em
considerar deveres e valores a ela relacionados como subsistindo em si,
independentemente da consciência e se impondo obrigatoriamente.”14 Procurando que as crianças construíssem os seus
próprios sistemas de valores, Piaget rejeitava qualquer tentativa de
estabelecer fontes externas de padrões morais. Em seu entendimento, o realismo
moral deve ser rejeitado porque nele o “bem se define pela obediência.”15
A filosofia da fé cristã tem
uma posição singular e específica nessa questão. Ela não se alicerça no
“realismo moral,” como definido por Piaget, nem nas conclusões libertárias e
subjetivas do construtivismo. Na verdade, a filosofia da fé cristã tem em comum
com o “realismo” o fato de aceitar absolutos morais como realidades objetivas
que devem ser alvo de instrução, sendo utilizadas na formação das crianças.
Como acreditamos que os valores morais procedem de Deus e são um reflexo dos
seus atributos no ser humano, não aceitamos que tais valores existam
“independentemente da consciência.” Cremos que de Deus procedem unidade,
metafísica e física. Mesmo conscientes de que o pecado perturba o equilíbrio e
o conhecimento, sabemos que quando proposições objetivas e determinações morais
corretas são transmitidas às crianças, encontram eco em suas consciências. Seus
valores não são firmados em um vácuo, mas alicerçados numa criação gerada à
imagem e semelhança de Deus. Como cristãos, não aceitamos que o bem seja algo
formulado pela sociedade. Nem tampouco é algo subjetivo, “definido pela
obediência.” Antes, o bem, para o ser humano, é o reflexo concreto da justiça e
bondade de Deus, colocado tanto na constituição das pessoas como nas
proposições da lei moral revelada nas Escrituras.
IV. o Construtivismo e o Conhecimento Objetivo da Verdade
Segundo Piaget, o conhecimento
resulta de uma inter-relação entre o sujeito que conhece e o objeto a ser
conhecido.16 A
inferência é que não existe forma de se conhecer a verdade objetiva, uma vez
que o conhecimento é um reflexo subjetivo, gerado na mente do que aprende. Um
autor construtivista afirma que Piaget “evidentemente via que a verdade
absoluta – como um padrão desejável – não é compatível com uma opinião
estritamente construtivista.”17 Segundo as premissas do construtivismo, nem poderíamos
saber se a verdade objetiva existe, ou se o que assim achamos que seja
representa apenas uma das muitas reações que podem ocorrer a um dado fato ou
incidente. O mesmo autor acima citado diz que “premissas metafísicas estáticas
e uma visão plenamente construtivista são pontos de vista que se excluem
mutuamente.”18 Ou seja,
o construtivismo coerente não pode aceitar a realidade de âncoras metafísicas.
Por outro lado, a fé cristã está exatamente alicerçada e edificada sobre
âncoras metafísicas estáticas, no sentido de que representam realidades
objetivas que nos foram reveladas pelo próprio Deus, que é imutável (Tg 1.17:
“...em quem não pode existir variação nem sombra de mudança”; Ml 3.6: “Porque
eu, o Senhor, não mudo”). Deus é a nossa grande âncora metafísica, perceptível
e revelado ao nosso intelecto e coração pelo seu Espírito (Rm 1.19; Mt 13.11).
De acordo com certo autor, os
componentes filosóficos do construtivismo “têm sido utilizados durante anos por
empiricistas, instrumentalistas, operacionalistas, idealistas e outras correntes,
em sua argumentação contra a possibilidade das pessoas possuírem a
possibilidade de conhecer, sem ambigüidades, a realidade.”19 Essa negação da possibilidade de se conhecer a
realidade e a verdade objetiva se faz presente em uma das frases prediletas de
Piaget – “o conhecimento não é uma cópia da realidade.”
O construtivismo apresenta,
nesse aspecto, um forte paralelo com o conceito epistemológico neo-ortodoxo e
pós-moderno de que a história objetiva e os fatos da realidade são irrelevantes
ao conhecimento cristão. Um exemplo de como esse conceito, no campo teológico,
contradiz as Escrituras, diz respeito à ressurreição. Para os neo-ortodoxos, o
fato relevante não é se a ressurreição realmente ocorreu, mas sim que a
descrição dos eventos é um reflexo religioso das impressões das ocorrências nas
mentes dos narradores. Essa impressão, e não os fatos em si, tem valor
espiritual e religioso, aproximando-nos subjetivamente de Deus.
Em oposição a esse
subjetivismo, a Palavra de Deus declara categoricamente a realidade da ressurreição como história concreta (fatos
objetivos) e Paulo substancia essa realidade com o testemunho de muitas pessoas
(prova objetiva). A Bíblia, portanto, não trata o conhecimento como fruto da interação do objeto com a mente
do sujeito. Na visão divina, o conhecimento não é algo que tem que ser construído, mas sim transmitido e desvendado. O construtivista pode declarar: “Cristo pode ter
ressuscitado, ou não. Na realidade não é muito importante se isso realmente
aconteceu; o importante é como você constrói as suas ilações dos reflexos
religiosos de alguma coisa importante que ocorreu há dois mil anos atrás,
conforme lemos nesses livros da Bíblia.” Todavia, para Paulo, o fato da
ressurreição em si tinha tanta importância que ele declara em 1 Co 15.17 e 19
que “se Cristo não ressuscitou é vã a vossa fé” e “somos os mais infelizes de
todos os homens.” É como se ele estivesse dizendo: “O conhecimento do fato da
ressurreição é real e objetivo (o fato realmente
aconteceu) e me foi desvendado (ou revelado) por um professor não
construtivista, que preocupou-se em ensinar-me verdades objetivas. Mas se esse
fato (história bruta) não aconteceu, e eu estou enganado, então de nada
adiantam os meus reflexos de fé, as minhas impressões ou construções religiosas.
A nossa fé seria vazia e eu seria o mais miserável dos homens, pois além de
estar me enganando, enganaria a outros.”
Nesse e em outros exemplos, a
Palavra de Deus reafirma fortemente a existência do conhecimento objetivo e da
verdade objetiva. Nada encontramos que respalde o conceito construtivista de
conhecimento e verdade subjetiva e a noção popular relativista, tão
freqüentemente ouvida: “A sua verdade não é a minha verdade.” Existe verdade
real e singular na Palavra. O próprio Jesus Cristo indicou: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vem ao Pai
senão por mim” (Jo 14.6). As Escrituras são a representação da verdade, como
está expresso na oração de Cristo em Jo 17.17: “Santifica-os na verdade, a tua Palavra é a verdade.”
V. o Construtivismo e a Irrelevância das Respostas
De acordo com o
construtivismo, o que interessa é a pergunta e não a resposta.20 Numa tenra idade, quando os alunos mais necessitam de
direcionamento e de respostas às questões a serem compreendidas,
concede-se-lhes uma autonomia indevida para que pesquisem o que ainda não têm a
capacidade de entender e compreendam o que não lhes foi ensinado.
Emília Ferreiro, uma das
maiores expoentes do construtivismo, é também uma grande atração no circuito de
palestras do mundo pedagógico. Para muitos, ela é considerada a última palavra
em educação contemporânea, como expressa esta notícia extraída de um jornal de
grande circulação:
A psicolingüista argentina Emília Ferreiro, de 59 anos — uma das mais importantes educadoras em atividade e idealizadora do Construtivismo — lotou ontem o auditório da Escola de Aplicação da Faculdade de Educação da USP. Emília falou por cerca de duas horas para um público de 300 pessoas sobre “A Diversidade: um tema para a pesquisa psicolingüística e para repensar a educação para o próximo século.”21
Apesar do título bastante
ousado da palestra, parece que não foram fornecidas muitas respostas e
diretrizes “para o próximo século” (pois se assim fosse contrariar-se-ia a
própria premissa do construtivismo), uma vez que o artigo é encerrado com a
seguinte colocação: “Para mudar o quadro, Emília não trouxe respostas. ‘Sei que
é um problema muito importante, cabe aos educadores pensá-lo’, concluiu a
psicolingüista.”22
Uma música “rap” escrita por Artis Ivey, Jr.
(Coolio) expressa muito bem o niilismo e o desespero que toma conta das mentes
que clamam por orientação, mas são abandonadas a construir autonomamente o seu futuro. Um de seus trechos afirma:
They say I’ve got to learn, Eles dizem que eu preciso aprender,
But nobody’s here to teach me. Mas ninguém está aqui para me ensinar.
They think they understand, Eles acham que entendem,
But how can they reach me? Mas como podem me alcançar?
I guess they can’t, Acho que eles não podem,
I guess they won’t. Acho que eles não o farão.23
Ausência de direcionamento é o
que o construtivismo defende. Na prática, essa situação está expressa nos
versos acima, mas o resultado de tal omissão não é “conhecimento construído,”
mas caos educativo implantado. Com tantos anos de prática dessa filosofia, não
podemos nos surpreender quando a frustração e a indisciplina tomam conta das
salas de aula. Não deveríamos ficar abismados quando os alunos, deixados à sua
inclinação natural, começam a “construir” formas hedonísticas de satisfação e
são levados à marginalidade e às drogas. Deveríamos entender que a busca do
conhecimento sem direcionamento leva ao envolvimento com as mais diversas
questões que competem entre si pelo prêmio da irrelevância suprema na vida que
se descortina aos futuros cidadãos.
Martin Lloyd-Jones contesta a
visão didática moderna e pós-moderna, a qual ele chama de “culto da
auto-expressão,” que retira o direcionamento e a correção de rumo das salas de
aula, pois seriam fatores inibidores da construção moral e intelectual esperada
das crianças. Ele chama a atenção para as escolas “onde o antigo programa de
ensinar às crianças as três instruções básicas não é mais popularmente aceito.
O resultado da atual noção popular de que a finalidade da educação consiste primordialmente
em treinar a criança a expressar-se pode ser visto por toda a parte, tanto no
colapso do controle paterno, como no aumento da delinqüência juvenil.”24
Do ponto de vista
bíblico-teológico, o direcionamento deveria estar sempre presente, pelo reconhecimento
do elemento do pecado e pela possibilidade desse direcionamento moldar vidas
para um comportamento responsável em sociedade, mesmo quando falamos de
descrentes e pessoas não regeneradas pelo sacrifício de Cristo. Mesmo em sua
natureza pecaminosa, os seres humanos são capazes de agir pela lei da natureza,
que procede de Deus, e são habilitados pela ação do seu Espírito (o que os
teólogos chamam de graça comum) a concretizar valores morais em suas ações (ver
Mt 7.11 — os homens, mesmo sendo maus, sabem procurar o bem de seus filhos).
Esse bem é relativo, no sentido de que não possui validade espiritual eterna,
pois não procede de um coração regenerado que conscientemente realiza as ações
para a glória do Criador (Pv 21.14; Rm 8.8). Entretanto, o bem assim praticado,
considerado intrínseca e isoladamente, é uma ação de valor. Abrir mão de
direcionamento e disciplina é promover o caos, a irresponsabilidade social e o
descontrole total nas salas de aula.
VI. A Experiência de Summerhill
Os postulados do
construtivismo fizeram parte dos conceitos de Alexander Neill (1883-1973),
praticados na desastrada experiência da escola Summerhill,25 na Inglaterra. Neill foi um educador escocês
entusiasmado com as chamadas “modernas técnicas de educação.” Em 1917, visitou
uma comunidade de delinqüentes juvenis que era administrada sob a premissa da
“bondade inata das crianças.”26 Em 1921, Neill fundou a escola Summerhill. Duas
premissas básicas da escola são a rejeição de qualquer autoridade no processo
educacional e a importância do bem-estar emocional da criança acima do seu
desenvolvimento acadêmico. A escola passou por várias localizações e hoje está
situada na cidade de Leiston, na Inglaterra, onde é administrada pela filha de
Neill, Zoe Readhead. Como na escola Summerhill, dentro dos seus princípios, as
crianças brincam o tempo que querem e a freqüência às aulas é opcional, além de
outras peculiaridades, como o nado coletivo sem roupas,27 a escola tem sido alvo de pressão e inspeção do
governo inglês, no sentido de que se enquadre em padrões morais e acadêmicos
aceitáveis.
Um autor construtivista
escreve o seguinte sobre Summerhill:
Com base na doutrina de Rousseau, que fundiu com teses de Sigmund Freud e Wilhelm Reich, Neill se propôs a realizar o postulado de uma educação sem violência. Afinal, para Rousseau e também na opinião do educador escocês, o homem recém-nascido é bom em essência [grifo nosso]. Se ele puder crescer em plena liberdade, sem uma direção autoritária, sem influência moral e religiosa, sem ameaças e sem coação, só conhecendo o limite, o direito e a liberdade do outro, aí a criança se transformará em um homem feliz e, conseqüentemente, bom.28
Esse entendimento é
inteiramente oposto ao conceito bíblico-teológico do pecado. Não apenas se
contradiz a essência da natureza humana caída (Rm 3.10-23; 5.12), como também
se determina a salvação pela ausência de autoridade. Pelas idéias de Neill, o
ser humano encontra a felicidade na ausência de “influência moral e religiosa.”
Ainda segundo Neill, “a religião diz: sê bom e serás feliz. Mas o inverso é
mais certo: sê feliz e serás bom.”29 Ocorre que, nesse ponto, Neill estava certo: a
religião verdadeira, a revelação divina, coloca a felicidade como um
sub-produto do enquadramento nos preceitos de Deus (Sl 1.1-3). A observância
dos seus mandamentos produz uma vida harmônica na sociedade e a verdadeira
liberdade. O construtivismo, proclamando essa falsa libertação praticada por
Neill e pela escola Summerhill, leva à escravidão.
VII. O Sistema de Valores do Construtivismo
A autonomia individual ou a
definição personalizada dos rumos do conhecimento, do crescimento intelectual,
é um dos princípios básicos do construtivismo. Essa visão, entretanto, não está
restrita ao desenvolvimento do conhecimento próprio. Já fizemos alusão, em
ponto anterior, ao fato de que o construtivismo não está restrito à mecânica do
aprendizado, mas tem abrangência na área do julgamento moral das pessoas. Com
efeito, o construtivismo também reivindica
autonomia na formação moral, em paralelo à formação intelectual do ser humano.
Esse é um passo gigantesco e de grandes implicações teológicas. Não apenas os
psicólogos e especialistas educacionais construtivistas, supostamente apoiados
em suas experiências, passam a ditar o que se conhece e como se conhece, mas
tratam as questões morais, os sistemas de valores, em paridade com a formação
intelectual, postulando igual individualidade e subjetivismo. Esse ponto
procede dos trabalhos de Piaget, como bem claramente apresenta um autor
construtivista:
Para Piaget, ter assegurado o direito à educação, significa ter oportunidades de se desenvolver, tanto do ponto de vista intelectual, como social e moral… Para que esse processo se efetive, é importante considerar o principal objetivo da educação que é a autonomia, tanto intelectual como moral.30
Como vemos, a filosofia
construtivista não ficou restrita ao campo educacional. Ao determinar essa
autonomia “tanto intelectual como moral,” o construtivismo elimina qualquer
possibilidade de absolutos morais, uma vez que eles são subjetivamente
construídos em cada indivíduo. Os construtivistas passaram das teorias
relacionadas com a formação do conhecimento nas pessoas (epistemologia
própria), para teorizar sobre a questão dos valores morais (ética). Um dos livros
mais famosos de Piaget (já citado neste ensaio) é O Juízo Moral na Criança, no qual ele disserta sobre comportamento
moral e demonstrações de moralidade nos alvos de suas experiências. Suas
conclusões, largamente utilizadas pela psicologia educacional, resultaram na
falta de direcionamento moral nas escolas. Suas teorias foram construídas fora
das premissas bíblicas da existência do pecado e dos dados bíblicos sobre o
pecado original. É exatamente neste passo ilegítimo dado pelo construtivismo que ocorrem as maiores contradições entre
o trabalho de Piaget e de seus seguidores e a Palavra de Deus.
VIII. A Gênese do Dever Moral na Filosofia de Piaget
O teólogo reformado John H.
Gerstner (1913-1996) observa que a origem do próprio senso de moralidade [da criança]
mostra ter conexão direta com a sua constituição inata e com o ensinamento dos
seus pais. Escreve ele:
Nem a Bíblia, nem qualquer outro tipo de literatura religiosa, é a fonte da consciência moral, porque senão a existência dessa conscientização moral fora da Bíblia ou de outras tradições religiosas permaneceria sem explicação… Nem o cristianismo nem as demais comunidades religiosas possuem o monopólio da consciência… A Bíblia ensina em Rm 2.14-16 que os homens possuem uma consciência moral independente da própria Bíblia.31
Jean
Piaget defende um pensamento totalmente contrário. Em sua visão, as pessoas são tabula rasa no sentido moral.32 Nada
possuem de referencial inato de moralidade, e muito menos de inclinação para o
mal em função do pecado original. Alguns trabalhos acadêmicos que defendiam
essa posição, mesmo empiricamente (sem abstraí-la das verdades das Escrituras),
foram duramente contestados por Piaget, como por exemplo o de Helena Antipoff,
que reconhecia nas crianças a existência de “uma ‘estrutura moral’ elementar,
que a criança parece possuir muito cedo e que lhe permite apreender, de uma só
vez, o mal e a causa deste mal, a inocência e a culpabilidade.”33 Contra
a existência dessa “manifestação moral inata, instintiva, e que, para se desenvolver,
não precisa, em suma, nem de experiências anteriores nem da socialização da
criança entre seus semelhantes,”34 Piaget postula que as reações da
criança nessa idade, assim interpretadas, são fruto de “toda espécie de
influências adultas”35 e nada têm de intrínseco à
natureza ou formação constitucional da criança. Ou seja, Piaget não aceita o
ensinamento bíblico da existência e noção do mal nas pessoas (teologicamente
chamada de “pecado original”), desde o seu nascimento.
Mais uma vez, Gerstner aponta
para a operação harmônica de Deus tanto internamente nas pessoas, como na
natureza. Ele afirma que a natureza procede de Deus; conseqüentemente, o
discernimento moral derivado da natureza deve refletir os valores de Deus. Pode
o Deus verdadeiro revelar, sobrenaturalmente, obrigações morais adicionais que
venham a contradizer as leis da natureza? Os canibais normalmente procuram
sanção divina (de suas divindades) para as suas práticas de alimentação, mas a
maioria da humanidade discorda de suas práticas e julgamento de certo e errado.
A nossa rejeição das práticas dos canibais resulta não de negarmos a
possibilidade de revelação divina, mas do fato de que a revelação especial não
contradiz a revelação natural e nem a revelação especial é contraditória em si
mesma, porque ambas procedem de um Deus que não se contradiz.36
A lei revelada tanto confirma
a lei natural como é confirmada por esta. Cada uma diz a mesma história, porém
uma com maior precisão do que a outra.37 Tanto a lei natural quanto a especial (revelada) nos
ensinam o que é certo e o que é errado, nos instruem sobre o pecado original e
nos comunicam o conceito da depravação total das pessoas, desde a sua
concepção.
Ao lermos Piaget, no entanto,
ficamos com a impressão de que para ele a realidade divina é irrelevante, pois
a neutralidade moral das pessoas é que é uma realidade indisputável.38 As crianças nasceriam destituídas do senso de certo e
errado, absorvendo isso dos adultos. Essa interferência adulta na construção do
pensamento e dos valores das crianças não é bem-vinda; antes, em seu
pensamento, é deletéria e prejudicial. Na realidade, Piaget afirma com relação
às regras de justiça retributiva39 que “se o adulto não interviesse, as relações sociais
das crianças entre si bastariam para constituí-las.”40 Baseado nessa premissa da neutralidade moral, Piaget
não pode aceitar qualquer inclinação para o mal na criança. Os atos errados
recebem o nome de apenas mais uma “experiência física.”41 Os atos claramente errados e moralmente questionáveis recebem
o revisionismo rotulador do construtivismo, como, por exemplo, nas duas
definições a seguir, extraídas de um autor construtivista: 42
Agressividade — conduta demonstrada quando existe frustração, quando as aspirações da vida não são realizadas, quando os desejos fracassam.
Violência — comportamento presente quando a frustração vai além do que o indivíduo pode suportar.
O contraste teológico desses
conceitos com a revelação bíblica do pecado original e da depravação total das
pessoas é bastante claro. Os três primeiros capítulos do Epístola aos Romanos
transmitem uma visão totalmente diferente da natureza humana, mostrando a
necessidade universal e genérica de direcionamento, correção e, especialmente,
de salvação da perdição eterna, em função do pecado que nos afasta do Deus
Santo.
O erro de Piaget e do
construtivismo nesse sentido deveria ser por demais evidente aos educadores
cristãos, mas infelizmente não encontramos muitas vozes de protesto,
proclamando a realidade do pecado original e de suas implicações para a nossa
filosofia de educação. Parece que somos todos vítimas de uma capitulação
coletiva à pressão acadêmica para aplicação da visão construtivista no ensino.
IX. Relativismo ou Valores Absolutos?
O construtivismo tem
encontrado muita dificuldade em manter coerência filosófica nas premissas que
foram abraçadas. Por um lado, uma grande maioria dos seus simpatizantes prega o
relativismo moral e a inexistência de valores absolutos. Por outro lado, uns
poucos, forçados pela observação das sociedades humanas e até pela realidade
das salas de aula incontroláveis, vêem a necessidade de admitir a realidade de
valores morais universais, como escreveu um construtivista:
Existem valores morais que transcendem as classe sociais, porque são universais — a liberdade de consciência, a felicidade dos homens, o bem-estar universal, a justiça, a paz, o amor à verdade, a solidariedade, etc. Estes valores devem ser transmitidos a todos, indistintamente.43
Entretanto, essa constatação,
por mais verdadeira que seja, é rapidamente esquecida e não serve de base para
o desenvolvimento das idéias apresentadas. A norma é a apresentação relativista
dos conceitos morais. O mesmo educador piagetiano Henrique Nielsen, que
escreveu o parágrafo acima, com sua apreensão da dialética marxista, observa
que Karl Marx (1818-1883) demonstrou de tal modo a relação entre os valores e a
estrutura social (ideologia), que a “questão ética deixou de ser vista de modo
absoluto e com metas almejadas e conceitos previamente definidos. Com Marx, os
valores referem-se sempre à realidade concreta vivenciada pelas pessoas.”44
Nielsen também defende o
trabalho de Friedrich Nietzsche (1844-1900), dizendo que ele criticou
radicalmente as “doutrinas filosóficas defensoras de uma concepção metafísica
dos valores. Para este filósofo, a visão tradicional dos valores, alicerçada na
ascese cristã, nada mais era do que uma ética do ressentimento.”45 Traduzindo o linguajar “filosofês” do autor, ele está dizendo que Nietzsche se posicionou
contra os que defendiam a tese de que os valores têm raízes que ultrapassam a
existência do homem, ou seja, que seriam derivados da divindade. Na opinião de
Nietzsche, a ética cristã refletiria apenas o ressentimento e frustração de
objetivos não alcançados.
X. Valores ou Costumes?
Tanto Nietzsche como o
construtivista Nielsen parecem confundir e misturar o conceito de valor com o de costume. Os cristãos diferenciam muito bem esses dois conceitos
comportamentais. Enquanto os valores
procedem dos atributos de Deus, são explicitamente revelados na lei moral
contida nas Escrituras e estão impressos na natureza humana (reconhecidamente
afetados pelo pecado), os costumes
representam regras temporais geradas por uma diversidade de razões (algumas
derivadas de valores, outras não). O cristianismo não despreza os costumes, e
não gera choques indevidos quando esses são “moralmente neutros,” isto é,
quando não entram em contradição aberta com qualquer determinação da lei moral
de Deus. A fé cristã reconhece a necessidade de manutenção de um testemunho
tranqüilo e pacífico em meio às diversas sociedades, com relação aos seus
costumes peculiares. 1 Tm 2.2 e 2 Tm 3.24 falam que o apreço e a intercessão
pelas autoridades, requeridas do servo de Deus, têm como objetivo a
possibilidade de se viver “uma vida tranqüila e mansa” e que o mesmo não deve
caracterizar-se por uma vida de contendas. O próprio Jesus Cristo, conforme
registra Lucas 2.52, cresceu em conhecimento46 e, paralelamente, “em graça diante de Deus e dos homens.” Certamente não foi
desconsiderando os costumes que Jesus cresceu no favor dos circunstantes.
Paulo, em 1 Co 11.2-16, transmite princípios construídos ao redor do costume
local e temporal de “cobrir a cabeça.” Lucas, em At 18.18, registra a
conformação e observância por Paulo dos costumes temporais, cumprindo as etapas
do voto de nazireu. A adaptabilidade e flexibilidade de Paulo está retratada em
1 Co 9.19-23, mostrando a sua predisposição de conformação para que os seus
objetivos de proclamação do evangelho não fossem comprometidos.
O cristão não é, entretanto,
pragmatista, pois, com relação aos valores, reconhece o seu caráter
transcendental, defendendo-os na medida em que refletem a natureza de Deus e
suas determinações ao ser humano. Nas palavras do teólogo R. C. Sproul, “Deus
é, e onde ele é, existe dever… Deus tem um direito eterno e intrínseco de impor
obrigações, de subjugar a consciência de suas criaturas.”47 Nesse sentido, os cristãos não
são pacíficos e tranqüilos e estão prontos a subverter a sociedade para
apresentar esses valores centralizados no evangelho de Cristo (como lemos em At
17.6, onde os cristãos são descritos como os “que têm transtornado [subvertido]
o mundo”). “O Evangelho nos liberta do julgamento mortífero da lei. Ele nos
liberta da maldição da lei mas nunca denigre a lei de Deus. O Evangelho não nos
salva do dever, mas para o dever, pelo qual é estabelecida a
lei de Deus.”48 Colocando
um dos alicerces fundamentais da ética cristã, Paulo ensina em Romanos 14 e 15
sobre a necessidade de se evitar choques culturais através da quebra de
costumes (o assunto discutido era o comer carne sacrificada aos ídolos — um
costume), mas não confunde tais costumes com os valores morais, que são
derivados dos padrões eternos e imutáveis da pessoa de Deus.
Na opinião construtivista
expressa por Nielsen, os valores não são absolutos ou eternos. “Os valores são
constituídos em conformidade com a época, local ou ambiente e circunstância da
sociedade onde estão inseridos, variando segundo o seu tipo, regime político, religiões
dominantes, etc.”49 Nessa
visão, não existe qualquer aspecto transcendental ou metafísico nos valores,
que “são criados pelos homens.”50 Os valores do passado são educativos e importantes
para o entendimento cultural e evolutivo do homem, mas são meramente
referenciais e não devem ser considerados “como herança a ser defendida.”51
R. C. Sproul faz a seguinte
referência ao relativismo da época em que vivemos, alertando quanto à anarquia
ética para a qual nos dirigimos:
A nossa era apresenta um antinomianismo52 sem precedentes… todos fazem o que parece correto aos seus próprios olhos. O relativismo ético é como um gêmeo siamês, unido pelos quadris ao ateísmo prático. Nossa cultura ainda abraça um deísmo teórico, mas na prática vivemos como se Deus não existisse. Cumprimos o axioma de Dostoyevski: “Se não existe um Deus então todas as coisas são possíveis.”53
XI. Construtivismo e Relativismo Moral
O construtivismo é exatamente
a “libertação dos absolutos” proclamada pelo homem pós-moderno. Nielsen identifica
bem a questão quando afirma: “O construtivismo de Piaget (1967) encaminha-nos
para uma posição em que o erro, como oposição ao acerto, deve ser revisto ou
interpretado de outro modo… Aquilo que é errado em um contexto, pode estar
certo em outro.”54
Ainda de acordo com esse
autor, Paulo foi mal sucedido em Atenas (apenas dois convertidos) porque não
reconheceu “os valores culturais dos ouvintes gregos. Eles eram
irreconciliáveis com os do cristianismo.”55 Ainda em sua opinião, foi a aplicação dos valores
cristãos, a partir do quarto século, que impediu “a especulação filosófica,
científica, afastando todo o espírito de curiosidade acerca do mundo.”56 O cristianismo adotou, portanto, “um comportamento
anti-intelectivo.”57 A
fé cristã, em sua opinião, não representa redenção,
mas uma barreira às aspirações das
pessoas.
A visão relativista dos valores morais é bem evidente em um “quadro dialético” construído por esse defensor da pedagogia construtivista contemporânea.58 Do gráfico apresentado pelo autor extraímos três valores exemplificativos (de acordo com essa filosofia, a coluna da direita – Valores Novos – representaria a conclusão adequada, à qual chega a sociedade, após ser submetida à tensão dos conflitos gerados pelas posturas comportamentais contidas nas duas outras colunas):
VALOR (situação) |
ANTIVALOR (reação) |
VALORES
NOVOS |
Virgindade, |
Promiscuidade | Liberdade sexual |
Estudo (cultura) | Pedantismo | Pragmatismo |
Respeito à vida |
Eutanásia, aborto, |
Bebê
de proveta, inseminação artificial, geriatria |
A nossa sociedade, permeada
pelo pecado e com suas recém-adquiridas liberdades pós-modernas, reflete e
acolhe o abandono dos valores morais, e providencia um solo fértil para a
pregação permissiva do construtivismo. Nesse ambiente, nossos filhos vão
aprendendo a amoralidade como postura comportamental normal e aceitável. Como
exemplo disso, a revista Nova Escola trouxe, em um de seus números, uma matéria
publicitária travestida de matéria editorial, com instruções para a realização
de uma aula de educação sexual de adolescentes.59 A matéria, patrocinada por diversas marcas de
preservativos, pretende ensinar a jovens em uma classe mista, com bastante
detalhes gráficos e exercícios, como devem “se proteger” da gravidez, da AIDS e
de outras doenças sexualmente transmissíveis. Dentre as cinco alternativas para
prevenir a gravidez não aparece a abstinência como uma das opções. É como se
ela simplesmente inexistisse, quando, na realidade, seria a única postura
comportamental compatível com os preceitos morais que Deus deu às pessoas
solteiras (Êx 20.14; At 15.20; Ef 5.3; 1 Ts 5.3). Portanto, como no quadro
acima, terminamos com a “liberdade sexual” como o “novo valor” a ser ensinado.
XII. Tese, Antítese, Síntese e a Filosofia da Fé Cristã
Ao cristão deveria ser
evidentemente falsa uma visão filosófica que apresenta a esquematização
superada de tese-antítese-síntese como sendo a forma construtiva de valores e
procedimentos. Essa compreensão parte da premissa de que os valores primários
são relativos e passíveis de serem superados por outros e de que o processo de
contrastes irá gerar uma forma superior, mais aceitável e mais moderna de
valores. No exemplo acima, uma filosofia que mostra (corretamente) a promiscuidade se contrapondo à virgindade, mas que (erroneamente) chega
à liberdade sexual como antídoto para essa promiscuidade, ou
como uma forma superior de
comportamento, não se sustenta em bases lógicas e filosóficas, nem encontra
abrigo na ética cristã.
Sobre a questão específica da
promiscuidade, retratada no quadro acima, John Gerstner indica que, mesmo
independentemente da revelação especial das Escrituras, a lei da natureza (que
procede de Deus e não é contraditória à revelação especial) “encoraja o
casamento e opõe-se à promiscui-dade.”60 Teríamos, portanto, um valor não substituível ou
superável. Dando um exemplo sobre a questão da promiscuidade, Gerstner observa
que, apesar da “lei da natureza,” da revelação especial e de todos os
impedimentos sociais existentes, um homem pode recusar-se a obedecer esses
deveres e entregar-se à promiscuidade, envolvendo-se com várias mulheres, seja
isso certo ou errado. Entretanto, esse autor observa que “a recusa [do homem]
no reconhecimento de um dever não é prova contrária à existência desse dever.”61
É evidente que a suposta
síntese corretiva do contraste inicial (virgindade
vs. promiscuidade gerando liberdade sexual) não existe, na
realidade, nem abole o valor inerente da virgindade, castidade ou pureza. A
abordagem isenta da questão mostra que o que temos é apenas uma nova rotulação
da posição contraditória — liberdade
sexual é apenas um novo nome para promiscuidade.
Ou seja, como alguém declarou corretamente, a
nova moralidade não passa da velha
imoralidade sob novos nomes.
Infelizmente,
muitos autores e pensadores evangélicos têm sucumbido diante dessa forma de
análise filosoficamente superada para o estabelecimento de posições. Eles
acreditam que Deus forma contrastes e desses contrastes gera sínteses
determinantes da postura e dos rumos a serem tomados pelos indivíduos e pela
própria Igreja.62 Não se contentam em absorver e
aplicar as singelas escalas de valores retratadas na Escritura. Confundem
costumes com valores. Prescrevem aos seus ouvinte e leitores a dúvida e o
questionamento sobre tudo o que é antigo, ignorando as advertências bíblicas
quanto à preservação das verdades imutáveis e pela continuidade dos atos de
Deus na história.
O cristão não pode abraçar
esse relativismo moral. Os seus valores e padrões estão firmados no caráter
imutável do Deus soberano e adequadamente revelados em sua Palavra. Esta se
constitui em uma coletânea de proposições objetivas inter-relacionadas,
sujeitas ao exame e escrutínio, sob a orientação do Espírito, dos
verdadeiramente fiéis. A expectativa é que esses valores, assim apreendidos,
passem a ser aplicados na vida de pecadores redimidos e a integrar a mensagem
que proclamam ao mundo. A nossa fé cristã, quando consistentemente compreendida
e aplicada, sob a iluminação do Espírito Santo, é a verdadeira filosofia de
vida abrangente que compreende todas as esferas de nossa existência.
XIII. Proposições Bíblicas Anti-Construtivistas
Dentre as muitas proposições
das Escrituras que tratam da questão do conhecimento e do entendimento, sendo
relevantes ao nosso exame e antagônicas às premissas do construtivismo,
destacamos as seguintes:
1. O conhecimento
não é fruto de um agente “facilitador,” mas de um agente “transmissor.” Por
exemplo, no Salmo 39.4 lemos: “Dá-me a conhecer, Senhor, o meu fim...” Se
redefinirmos “conhecer” para significar “construir compreensão,” as expressões
que identificam conhecimento com transmissão de saber (e respectiva compreensão
subseqüente) ficam sem sentido, como vemos em Mateus 13.11: “... a vós outros é
dado conhecer os mistérios...”
2. Conhecimento (apreensão dos fatos) e
entendimento (correlação adequada dos fatos) não são conceitos subjetivos,
mutáveis, mas objetivos, representando algo que
se pede a Deus (1 Rs 3.11: “... mas pediste entendimento para discernires”;
At 15.18: “...diz o Senhor que faz estas cousas conhecidas desde séculos”). É
tão objetivo que é comparado a um tesouro (Pv 10.14; Cl 2.3). Em 1 Jo 2.4 temos
o conhecimento considerado como algo bastante objetivo e que é objetivamente
retratado, contrastado com a mentira e comprovado por ações compatíveis com a
revelação objetiva de Deus – seus mandamentos: “Aquele que diz: Eu o conheço, e
não guarda os seus mandamentos, é mentiroso e nele não está a verdade.”
3. Mesmo considerando a finitude, imperfeição e
pecado das pessoas, o conhecimento verdadeiro é uma possibilidade bíblica para
o ser humano (Jo 8.32 – “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”). As
limitações do homem se apresentam na sua impossibilidade de conhecer exaustivamente, ou seja, de
esgotar o conhecimento. Isso não significa que aquilo que lhe é dado conhecer
(e, na esfera espiritual, o conhecimento verdadeiro é possibilitado pelo
Espírito Santo), ele não o conheça verazmente. Esse é o ensinamento de Paulo,
quando fala concretamente sobre o conhecimento do amor de Cristo em Ef 3.18-19. Primeiro ele indica que as suas
instruções estão sendo dadas para que tenhamos um conhecimento comum “com todos
os santos” da dimensão desse amor; em termos bem concretos – largura,
comprimento, altura, profundidade. Portanto, o conhecimento que temos condição
de ter é verdadeiro e concreto. Por outro lado, em segundo lugar, ele nos
indica que esse mesmo “amor de Cristo... excede todo o entendimento,” ou seja,
não temos condição de esgotar o seu pleno conhecimento. Isso não muda o fato de
que o que dele sabemos é verdadeiro.
Os ensinamentos de Paulo sobre Cristo não são subjetivamente construídos em
nossas mentes, mas são ministrados.
Os fatos e as doutrinas nos são transmitidas para que conheçamos a altura, a
profundidade e a largura do seu amor.
XIV. A Rendição dos Pedagogos Cristãos ao Construtivismo
Pedagogos e psicólogos
cristãos têm penetrado nesses estudos relacionados com o desenvolvimento da
inteligência do ser humano e, conseqüentemente, com o processo de ensino e
aprendizado, de uma maneira acrítica. Constatamos uma absorção passiva do que é
apresentado e, principalmente, da filosofia construtivista. Existe uma rendição
à abordagem e às experiências supostamente científicas, como se estivessem
frente a uma forma de revelação divina, absoluta e inquestionável. Nesse
sentido, estabelece-se uma dicotomia entre aquilo que a Palavra de Deus revela
sobre a constituição moral e psicológica do ser humano e os estudos dedutivos
das correntes psicológicas e pedagógicas contemporâneas. Isso tem ocorrido na
exposição das idéias e experiências de Jean Piaget e de seus seguidores. Na
maioria das vezes todo o campo da psicologia educacional é estudado como se
fosse uma área estanque e segregada do conhecimento humano, intocável e imune
às proposições reveladas na Palavra de Deus. É como se as premissas
estabelecidas não fossem diferentes daquelas estabelecidas pela fé cristã e da
sua compreensão da natureza das pessoas.
A dissociação moderna e
pós-moderna que é feita entre a fé cristã e os campos de atuação do ser humano
é o reflexo de uma doutrina diluída, estranha à Palavra de Deus, que se
concentra na autonomia do homem às custas da soberania de Deus. É uma visão
presente na maior parte do evangelicalismo moderno, mas que deve ser desafiada
e combatida, especialmente pelos pressupostos da fé reformada de Lutero e
Calvino.
A situação encontrada hoje em
dia entre os acadêmicos cristãos dá a impressão de que a fé cristã deveria
ficar limitada a expressões metafísicas da religiosidade humana, de preferência
aos domingos. É como se as premissas do cristianismo não tivessem interferência
no dia-a-dia de cada um; como se Deus não tivesse nada a dizer às diversas
áreas da atuação humana; como se não vivêssemos em um universo criado por Deus,
mas em um mundo autônomo, no qual ele interfere aqui e ali, sem exigências
reais no que diz respeito à produção intelectual do ser humano. Esse
retraimento do exame crítico das concepções filosóficas acerca do conhecimento
humano é o maior entrave ao verdadeiro progresso do pensamento cristão, gerando
nos crentes um complexo indevido de inferioridade intelectual. Deixamos que as
forças do mal tripudiem impunemente nas áreas de erudição, sem levar à frente a
obrigação, que foi colocada em nossas mãos pelo Deus verdadeiro, de desafiá-las
e de proclamar as verdades de Deus em todas as esferas (Gn 1.28). Tornamo-nos
anões acadêmicos sem refletir a glória do Senhor do universo. Queremos
participação e respeitabilidade, e o preço pago por isso é a retração do
desafio e da controvérsia, quando eles devem estar presentes.
Nessa área da psicologia e
pedagogia, a questão é ainda mais grave. Apesar de crentes, servos de Deus,
participantes da iluminação do Espírito no entendimento da sua Revelação aos
homens, abrimos mão de toda essa compreensão. Ao estudarmos as pessoas, em vez
de procurarmos na Palavra aquilo que ela revela objetivamente sobre o ser humano, sua constituição, formação e
intelecto, somos vítimas dos estudos dedutivos
das correntes psicológicas e pedagógicas. Estas, mesmo quando fruto de
procedimentos aparentemente científicos,63 procuram nos apresentar repetidas experiências através
das quais deduzem qual a constituição
interna do homem.
Por exemplo, Yves de La
Taille, escrevendo o prefácio à edição brasileira do livro de Piaget O Juízo Moral na Criança, diz que para
estudarmos os aspectos ambíguos e paradoxais do homem “…basta cada um observar
atentamente os seus semelhantes ou olhar honestamente para si mesmo.”64 Com essa afirmação, ele não está simplesmente
indicando a melhor alternativa de estudo, mas a única possibilidade que a
psicologia tem de procurar definir o homem — deduzir o que ele é, pelo
que ele faz. Partindo desse ponto,
passam a postular a sistemática do nascimento, evolução e desenvolvimento, não
apenas da inteligência humana, como também da formação moral das pessoas. Um
autor construtivista faz a seguinte afirmação: “Hoje, está mais do que
comprovado que os motivos sociais são adquiridos.”65
Qualquer filosofia que tenha a
pretensão de trazer conclusões sobre fatores internos da constituição
intelectual e cognitiva humana e que despreze as verdades reveladas pelo autor
do homem nas Escrituras, não pode ser aceita passivamente pelos cristãos;
antes, deve ser submetida ao mais intenso crivo e exame à luz da objetiva
revelação divina da Palavra de Deus.
XV. Escolas Evangélicas, Construtivismo e a Importância dada à Educação
Se pedagogos, psicólogos e
educadores cristãos se renderam ao construtivismo, não é de surpreender que a
maioria das escolas ditas “evangélicas,” que se propõem a apresentar as
verdades e ensinamentos sob o ponto de vista da Palavra de Deus, abracem a
mesma filosofia, sem qualquer questionamento teológico. Os professores cristãos
foram submetidos a um martelar contínuo de que as idéias do construtivismo se
constituem na última palavra pedagógica e na única abordagem moderna admissível
no ensino. Por essa razão, na melhor das hipóteses, ouvimos apenas as seguintes
críticas: “O problema não está no construtivismo, mas na aplicação errada dos
seus métodos”; ou ainda: “Somos construtivistas, mas mantemos a abordagem
cristã no ensino.” Tais declarações evidenciam falta de discernimento de que
existem incompatibilidades de premissas
filosóficas e que o construtivismo, como já temos demonstrado, não consiste
apenas em um método alternativo de educação ou de administração escolar, mas em
uma filosofia niilista real.
Por vezes, ouvimos: “A
orientação desta escola é construtivista, mas a aula é clássica,” ou “... é
apenas uma aplicação parcial do construtivismo.” Já apontamos que, teoricamente, o construtivismo tem sido
aceito quase que na totalidade do sistema educacional brasileiro. Concordamos
que, na prática, as idéias não são
aplicadas em sua maior dimensão e existem incoerências com as premissas básicas
da corrente.
Não devemos inferir,
entretanto, que a falta de aplicação do construtivismo em sua totalidade,
significa uma influência insignificante na formação das crianças. Muitas
escolas e professores deixam de lado parte da metodologia acadêmica prescrita
(mais difícil de compreender e executar), mas prontamente acatam os postulados
de suposta “liberdade” e “ausência de direcionamento” (mais fáceis de entender,
de acolhida rápida pelos alunos, mais entrelaçados com a sociedade permissiva
na qual vivemos). Mesmo nos casos de aplicação parcial do construtivismo, os
reflexos prejudiciais à formação das crianças continuam intensamente presentes.
As escolas seculares, particulares
ou públicas, são construídas em cima de premissas que divergem das bases da fé
cristã. Não devemos ter a pretensão de convencer pela lógica aqueles que
rejeitam aprioristicamente a revelação de Deus e a visão bíblica da
constituição do ser humano. As escolas seculares, mesmo construindo cabanas de
palha filosóficas que não se sustentam em coerência intrínseca, estão tentando
ser fiéis às suas próprias premissas anti-Deus e anti-cristãs. Entretanto, com
relação às escolas cristãs, não podemos ter a mesma visão tolerante. Elas têm a
obrigação de analisar todas as coisas sob a ótica das Escrituras e de,
corajosamente, até mesmo suportar a rejeição das esferas acadêmicas, ao se
posicionarem pela interpretação bíblica da realidade. O filósofo holandês Hermann
Dooyeweerd (1894-1977) bem expressou essa situação quando, conclamando à
coragem para os posicionamentos perante o mundo, escreveu: “A filosofia cristã
não deve hesitar na aceitação da ‘ofensa da cruz’ como a pedra fundamental da
sua epistemologia. Assim fazendo, sabe que conscientemente corre o risco de ser
mal-entendida e dogmaticamente rejeitada.”66
Com a nossa crítica ao
construtivismo, não estamos defendendo métodos arcaicos e desinteressantes de
ensino e aprendizado; devemos sempre aplicar as mais modernas técnicas
educacionais possíveis e o maior esmero no ensino criativo. Os bons professores
deixarão a criança “descobrir” aquilo que necessita ser transmitido. Não
estamos dizendo que o conhecimento prévio não serve de base e alicerce para novos
entendimentos e para uma compreensão mais ampla da realidade – sabemos que o
entendimento se “constrói,” nesse sentido. Mas não precisamos abraçar novos
rótulos e muito menos novas filosofias para expressar o que sempre foi
reconhecido como boa prática pedagógica. Com muito mais veemência, não podemos
abraçar uma construção filosófica que faz violência ao conceito judaico-cristão
do que é o ser humano, como se o construtivismo
fosse apenas mais uma metodologia neutra, esterilizada e inocente, aplicável em
qualquer situação e contexto acadêmico, sem confrontá-la com a Palavra de Deus.
A preocupação com um ensino
bom e eficaz sempre foi uma constante no âmbito cristão, com resultados
excelentes que devem ser retomados. Em uma carta dirigida aos prefeitos das
cidades alemãs, Martinho Lutero já expressava a importância da educação, que
viria a nortear e caracterizar os protestantes: “Em minha opinião,” escreve
ele, “não há nenhuma outra ofensa visível que, aos olhos de Deus, seja um fardo
tão pesado para o mundo e mereça castigo tão duro quanto a negligência na
educação das crianças.”67 Até
hoje, a fórmula de batismo da Igreja Presbiteriana requer dos pais que trazem a
sua criança à cerimônia a promessa de que a ensinarão a ler, para que possa
compreender as verdades de Deus, reveladas em sua Palavra e transmitidas por
meio da linguagem escrita através das gerações.
Esse apreço cristão pela educação decorre do “mandato cultural” (Gn 1.28), no qual o ser humano é comissionado a dominar a criação (e obviamente ele não pode dominá-la se não conhecê-la), bem como do conceito bíblico do ser humano. O cristão vê, tanto empiricamente como pela revelação das Escrituras, que as pessoas se diferenciam dos animais não por estarem “mais adiantadas na escala evolutiva,” mas em sua essência e por desígnio divino. “Um dos aspectos mais nobres da semelhança de Deus no homem é a capacidade de pensar… Somente o homem tem o que a Bíblia chama de ‘entendimento’ (Sl 32.9),”68 escreve John Stott, que complementa indicando que a racionalidade básica das pessoas, em virtude da criação, é admitida em toda a Escritura. A expectativa, portanto, é que as pessoas sejam educadas e se comportem diferentemente dos animais, como estabelece o restante do verso já citado: “Não sejais como o cavalo ou a mula, sem entendimento,” ou ainda o Salmo 73.22: “Eu estava embrutecido e ignorante; era como um irracional à tua presença.”
Que Deus capacite os nossos
educadores com o discernimento necessário ao exame das filosofias nas quais
foram treinados e que são chamados a aplicar nas salas de aula. Que haja o
desenvolvimento de uma verdadeira filosofia de educação cristã, contrapondo-se
ao subjetivismo e à permissividade do construtivismo. Que haja coragem da parte
de nossas escolas de orientação e formação evangélica para desafiarem o status quo, imprimindo excelência
educacional com coerência teológica, mesmo que isso lhes custe muita luta e
eventual perda financeira. Assim fazendo, pela misericórdia de Deus, estaremos
formando cidadãos verdadeiramente responsáveis e cristãos conscientes, e
teremos tranqüilidade com o que estão ensinando aos nossos filhos.
ENGLISH ABSTRACT
In this essay, Solano Portela raises some theological questions about the validity of Jean Piaget’s educational theories. Portela’s main thesis is that Constructivism is not a neutral method of education, but a full-grown philosophy with moral premises that contradict the Biblical revelation on human nature. The author begins by showing that Constructivism has made significant inroads into the Brazilian educational system to the point that it is unquestionably accepted by virtually all major schools and by the teachers that have graduated from them in the past two decades – Christians and non-Christians alike. The author presents how the seemingly straightforward research material about pedagogical methodology, produced by Piaget, turned into this educational philosophy that rejects moral guidance as “coercion.” While recognizing that an updated methodology is necessary for effective education, Portela shows that although Constructivism has successfully done away with archaic teaching and encouraged student participation, it has also been responsible for the lack of discipline and a debasement of morality in our classrooms. Portela characterizes Constructivism as a child of postmodernism and emphasizes its incompatibility with the Christian faith, which is built on moral absolutes and objective truth. Showing that according to Biblical data and human experience knowledge is primarily transmitted and then constructed, Portela disputes the Constructivist figure of the teacher as a facilitator and not as an instructor. He concludes his essay by challenging Christian educators and schools not to succumb to Constructivism. Showing that even diehard Constructivists are having a hard time applying their premises with a minimum of consistency and order, he issues a call for the application of a true Christian Philosophy of Education.
____________________
1 Ver a descrição dos quatro estágios na seção “Jean Piaget Lança os Fundamentos,” logo adiante.
2 Maria da Graça Azenha, Construtivismo: De Piaget a Emilia Ferreiro (São Paulo: Ática, 1995), 8.
3
Ibid.
4 Ibid., 18.
5
Ibid.
6 Franco Lo Presti Seminério, Piaget: O Construtivismo na Psicologia e na Educação (Rio de Janeiro: Imago, 1996), 13.
7 Quanto mais simplificada for a visão epistemológica e mais relacionada com as ciências físicas (no caso, aqui, a biologia), mais apropriadas parecerão as experiências e questionários utilizados na formulação dos postulados e na extrapolação dos mesmos em uma filosofia educacional e de valores. A frase citada é de Robert L. Campbell, em palestras proferidas no “Objectivist Studies Summer Seminar,” em Charlottesville, Virginia, Estados Unidos, intituladas Jean Piaget’s Genetic Epistemology: Appreciation and Critique, disponíveis na Internet no endereço: http://hubcap.clemson.edu/~campber/index.html.
8 Esses quatro estágios são, às vezes, reduzidos a três, bem como cada estágio específico é subdividido em até seis etapas. A essência de toda essa esquematização de Jean Piaget está contida em seus livros: A Construção do Real na Criança, 3ª ed. (Rio de Janeiro: Zahar, 1979); O Nascimento da Inteligência na Criança, 4ª ed. (Rio de Janeiro: Zahar, 1982) e A Formação do Símbolo na Criança: Imitação, Jogo e Sonho, Imagem e Representação (Rio de Janeiro: Zahar, 1975).
9 Lauro de Oliveira Lima, A Construção do Homem Segundo Piaget (São Paulo: Summus Editorial, 1984), 149.
10 A Secretaria Municipal de Educação da Prefeitura do Rio de Janeiro apresenta um breve resumo do construtivismo sob o título “Os Pressupostos da Teoria Construtivista de Jean Piaget.” Esse artigo pode ser encontrado na Internet, no endereço: http://www.rio.rj.gov.br:80/multirio/cime/ME03/ME03_001.html.
11 Lino de Macedo, Ensaios Construtivistas (São Paulo: Casa do Psicólogo, 1994), XVI.
12 Azenha, Construtivismo, 96.
13 Jean Piaget, O Juízo Moral na Criança, trad. Elzon Leonardon (São Paulo: Summus, 1994), 93.
14 Ibid.
15 Para Piaget, no realismo moral “...é bom todo o ato que testemunhe uma obediência à regra ou mesmo uma obediência aos adultos.” Juízo Moral, 93.
16 Secretaria Municipal de Educação, “Pressupostos da Teoria Construtivista.”
17
Herbert F. J. Muller, How Constructivist is Piaget’s Theory?
Ensaio não publicado, disponível na Internet no endereço: http://www.mcgill.ca/douglas/fdg/kjf/15-R9MOR.htm.
18 Ibid.
19 Brian Campbell, Realism versus Constructivism: Which is a More Appropriate Theory for Addressing the Nature of Science in Science Education? Ensaio não publicado da Southwestern Oklahoma State University, disponível pela Internet no endereço: http://unr.edu/homepage/jcannon/ejse/ejsev3n1.html1.
20 Macedo, Ensaios Construtivistas, 24.
21 Jornal da Tarde, São Paulo (31 de outubro de 1996), 15A.
22 Ibid.
23 Artis Ivey, Jr. (Coolio), Gangsta’s Paradise, música tema do filme Mentes Perigosas (Dangerous Minds, 1995). Esse filme, apesar de não mostrar muita coerência em sua mensagem, retrata uma escola de uma área urbana deteriorada dos Estados Unidos, na qual os estudantes, carentes de direcionamento, amor e disciplina, rendem-se à tutela de uma nova professora, ex-militar, que enfatiza a necessidade do estudo e da ordem.
24 D. Martin Lloyd-Jones, A Procura de Verdade (São Paulo: Fiel, 1976), 7.
25 Essa escola foi estabelecida totalmente sem regras, objetivando a formação mais moderna e a educação sem fronteiras das crianças e adolescentes ali colocados. Saudada como a maior experiência educacional de vanguarda, a escola de Sumerhill está para fechar as portas, após décadas de deficiência acadêmica e disciplinar de seus alunos.
26
A Brief History of Summerhill – parte do site, na internet, destinado a
arregimentar apoio amplo às medidas necessárias para salvar a escola
Summerhill, diante das recentes medidas do governo inglês que prevêem o
enquadramento em uma disciplina e formato educacional mais rígido, ou o
fechamento da instituição. Endereço: http://www.s-hill.demon.co.uk/history.htm.
27
A direção da escola diz
que a escola “não força o nadar sem roupas” e que, na realidade, em anos
recentes, “quase todo mundo nada vestido...” Ver a seção “Mitos e Realidades” no endereço: http://www.s-hill.demon.co.uk/hmi/myths.htm
28 Moacir Gadotti, História das Idéias Pedagógicas (São Paulo: Ática, 1995), 175.
29 Citado por Gadotti, História, 175.
30 Secretaria Estadual de Educação, “Pressupostos da Teoria Construtivista.”
31 John H. Gerstner, Reasons for Duty (Morgan, Pensilvânia: Soli Deo Gloria, 1995), 3.
32 Muitos construtivistas farão objeções a essa declaração, uma vez que Piaget se posiciona fortemente contra o empirismo – negando a idéia da tabula rasa. Mas é exatamente nas suas considerações morais que Piaget apresenta essa grave contradição intrínseca ao seu próprio pensamento. Quando tratava apenas de epistemologia, realmente ele se contrapôs à idéia da tabula rasa, procurando um meio termo, uma síntese: as pessoas não possuíam apenas conhecimento desde o nascimento (inatismo), nem apenas como resultado de percepções e informações (empirismo); ele procurava a aceitação de ambos. Mas a pergunta permanece: Por que então, quando trata da questão moral, ele coloca toda ela como sendo absorção externa impingida?
33 Helena Antipoff, citada por Piaget, Juízo Moral, 178.
34 Helena Antipoff, Ibid.
35 Piaget, Juízo Moral, 178.
36 Gerstner, Reasons for Duty, 21-27.
37 Ibid., 37.
38 Essa é uma conclusão pouco construtivista, mas presente em muitos autores da escola. Verificamos, na realidade, que a filosofia nega a existência das “realidades indisputáveis” dos outros, enquanto que postula as suas próprias.
39 Incluindo-se aqui os conceitos de culpabilidade, inocência e formação de uma “estrutura” moral.
40 Piaget, Juízo Moral, 178.
41 Ibid., 142.
42 Henrique Nielsen Neto, Filosofia da Educação (São Paulo: Abba Press e Melhoramentos, 1988-1990), 62-65.
43 Ibid., 24.
44 Ibid., 17.
45 Ibid. O autor indica que as idéias de Scheler, Kierkegaard, Sprangler, Husserl, Marcel, Heidegger, Merleau-Ponty e até Sartre foram reflexões sobre os temas marxistas e nietzschianos, numa tentativa de combatê-los.
46 Essa é uma afirmação de profundas implicações epistemológicas, partindo do pressuposto da divindade, que muito deve nos ensinar sobre a realidade da encarnação e sobre a intensidade da natureza humana de Cristo.
47 R. C. Sproul, no prefácio do livro de Gerstner, Reasons for Duty, viii.
48
Sproul, ibid.
49 Nielsen Neto, Filosofia da Educação, 18.
50 Ibid.
51 Ibid., 19.
52 Ausência de lei ou norma.
53 Sproul, prefácio de Gerstner, Reasons for Duty, viii.
54 Macedo, Ensaios, 64.
55 Nielsen Neto, Filosofia da Educação, 21.
56 Ibid.
57 Ibid., 22.
58 Ibid., 20.
59 “Jogo de Corpo,” Nova Escola (Editora Abril), nº 129 (Jan-Fev 2000), 18-19.
60 Gerstner, Reasons for Duty, 194.
61 Ibid., 194-195.
62 Ver o livro de Caio Fábio D’Araújo Filho, Vivendo em Tempo de Mudanças: Percebendo o Mover de Deus na História (São Paulo: Cultura Cristã, 1996), adequadamente resenhado por Augustus Nicodemus Lopes em Fides Reformata I:2 (Julho-Dezembro 1996), 152-154.
63 Já expressamos o nosso reconhecimento de que houve bastante progresso acadêmico nas áreas psicológica e pedagógica, uma vez que as opiniões categóricas, sem qualquer embasamento real, deram lugar às pesquisas e testes, numa tentativa de substanciar as conclusões. O trabalho de Jean Piaget traz essa “chancela,” pelo seu treinamento prévio no método científico de investigação, em função de sua primeira formação nas ciências biológicas. Mas já indicamos, igualmente, que o exame mais acurado das experiências de Piaget, demonstra que elas são, na realidade, bastante limitadas e não tão extensas assim para permitir deduções tão firmes da constituição da criança (e, conseqüentemente, do ser humano). Se elas são insuficientes para asseverar o que é o homem, quanto mais ainda para que delas venha a se inferir a psicogênese do pensamento humano, os pontos formativos da inteligência. Não satisfeitos, entretanto, com essas extrapolações, os especialistas nos indicam que eles têm condições de fazer afirmações inequívocas quanto à formação do julgamento moral das pessoas, bem como determinar as escalas de valores e o que deveria ou não ser ensinado, na área moral do aprendizado. É preciso muita fé e credulidade para aceitar, sem questionamentos, todos esses postulados.
64 Piaget, Juízo Moral, 13.
65 Nielsen Neto, Filosofia da Educação, 61. Onde se lê “motivos sociais,” deve-se entender “comportamentos certos ou errados das pessoas.” O autor cita trabalhos de dois comportamentistas americanos, John B. Watson e Ernest Ropiquiet Hilgard (autor de Teorias de Aprendizagem [São Paulo: EPU, 1973]), como comprovação para a sua afirmação.
66 Citado por J. M. Spier, An Introduction to Christian Philosophy (Filadélfia: Presbyterian and Reformed, 1954), 155.
67 Martinho Lutero, Carta aos Prefeitos e Conselheiros de Todas as Cidades da Alemanha em Prol de Escolas Cristãs, citado por Moacir Gadotti, História das Idéias Pedagógicas (São Paulo: Ática, 1995), 71. Ver texto integral em Rui J. Bender, Martin N. Dreher e Ricardo W. Rieth, eds., Educação e Reforma, Coleção Lutero Para Hoje (São Leopoldo e Porto Alegre: Sinodal/Concórdia, 2000).
68 John Stott, Crer é Também Pensar, trad. Milton A. Andrade (São Paulo: ABU, 1978), 12.