PRESBITERIANOS: QUEM SOMOS E DE ONDE VIEMOS
Alderi Souza de Matos
Conceitos Introdutórios
Uma das coisas mais importantes para todo grupo é ter uma consciência clara da sua identidade e objetivos. A identidade tem a ver com as raízes, a história, os fundamentos, as características distintivas. Os objetivos são uma decorrência disso: à luz das raízes, da identidade, das convicções básicas, irão ser traçados os alvos, as prioridades, as maneiras de ser e viver no mundo.
Isto se aplica perfeitamente aos presbiterianos.
Todavia, ocorre que muitos deles ignoram a sua identidade, não sabem exatamente quem são, como indivíduos e como igreja. Não conhecendo as suas raízes – históricas, teológicas, denominacionais – eles têm dificuldade de posicionar-se quanto a uma série de questões e de definir com clareza os seus rumos, as suas prioridades. Muitas vezes, quando questionados por outras pessoas quanto a suas convicções e práticas, sentem-se frustrados com a sua incapacidade de expor de modo coerente e convincente as suas posições.
O presente curso visa proporcionar, ainda que resumidamente, informações sobre os principais elementos que constituem a identidade reformada. Iniciaremos com o estudo da vida, obra e pensamento do grande reformador do século dezesseis ao qual estamos ligados, João Calvino. Prosseguiremos acompanhando a expansão do movimento reformado através da Europa até chegar aos Estados Unidos, de onde, principalmente, o movimento veio para o Brasil.
Ao lado das muitas informações históricas que serão transmitidas, veremos também as principais características teológicas, estruturais e práticas da tradição reformada. Ao lado do pensamento de Calvino, também estudaremos, com maior ou menor detalhe, os padrões doutrinários da Assembléia de Westminster e outros documentos representativos. As últimas aulas serão dedicadas à análise dos principais aspectos práticos que devem caracterizar a nossa vida como presbiterianos nos dias atuais.
Principiaremos o nosso estudo com a análise de três termos importantes cujo significado precisa ser corretamente compreendido: reformado, calvinista e presbiteriano. Esses nomes do nosso movimento são sinônimos em alguns aspectos e diferentes em outros.
1. Reformados
Tendo sido o monge alemão Martinho Lutero (1483-1546) o primeiro dos reformadores protestantes do século XVI, os seus seguidores logo passaram a ser conhecidos como "luteranos." Eventualmente, no país vizinho ao sul da Alemanha, a Suíça, surgiu um novo movimento protestante, independente do movimento de Lutero, que, para distinguir-se do mesmo, passou a ser denominado de "reformado." Inicialmente, o movimento reformado esteve mais ligado à pessoa de Ulrico Zuínglio (1484-1531). Porém, com a morte prematura deste, o movimento veio a associar-se com o seu maior teólogo e articulador, que foi o francês João Calvino (1509-1564). A propósito, os "protestantes," fossem eles luteranos ou reformados, só passaram a ter essa designação a partir da Dieta de Spira, em 1529.
Portanto, o movimento reformado é o ramo do protestantismo que surgiu na Suíça do século dezesseis, tendo como líderes originais Ulrico Zuínglio, em Zurique, e especialmente João Calvino, em Genebra. Esse movimento veio a caracterizar-se por certas concepções teológicas e formas de organização eclesiástica que o distinguiram de todos os outros grupos protestantes (luteranos, anabatistas e anglicanos). A tradição reformada foi preservada e desenvolvida pelos sucessores imediatos e mais remotos dos líderes iniciais, tais como João Henrique Bullinger (1504-1575), Teodoro Beza (1519-1605), os puritanos ingleses e outros.
Até hoje, as igrejas ligadas a essa tradição no continente europeu são conhecidas como Igrejas Reformadas (da Suíça, França, Holanda, Hungria, Romênia e outros países). Porém, o termo reformado é mais que a designação de uma tradição teológica ou eclesiástica. É um conceito abrangente que inclui todo um modo de encarar a vida e o mundo a partir de uma série de pressupostos, dentre os quais destaca-se a soberania de Deus.
2. Calvinistas
O calvinismo, como o nome indica, é o sistema de teologia elaborado pelo mais articulado e profundo dentre os reformadores, João Calvino. Esse sistema, contido especialmente na obra maior de Calvino, a Instituição da Religião Cristã ou Institutas, resulta de uma interpretação cuidadosa e sistemática das Escrituras, e tem como um de seus principais fundamentos a noção da absoluta soberania de Deus como criador, preservador e redentor. O calvinismo não é somente um conjunto de doutrinas, mas inclui concepções específicas a respeito do culto, da liturgia, do ministério, da evangelização e do governo da igreja.
Normalmente, todos os reformados deveriam ser calvinistas, mas isso nem sempre ocorre na prática. Muitos herdeiros de Calvino, embora se considerem reformados, não mais se designam ou podem ser designados como calvinistas, por terem abandonado certas convicções e princípios básicos defendidos pelo reformador. Portanto, todo calvinista é reformado, mas nem sempre a recíproca é verdadeira.
3. Presbiterianos
O termo presbiteriano foi adotado pelos reformados nas Ilhas Britânicas (Escócia, Inglaterra e Irlanda). Isso se deve ao contexto político-religioso em que o protestantismo foi introduzido naquela região, no qual a forma de governo da igreja teve uma importância preponderante. Os reis ingleses e escoceses preferiam o sistema episcopal, ou seja, uma igreja governada por bispos e arcebispos, o que permitia um maior controle da igreja pelo estado. Já o sistema presbiteriano, isto é, o governo da igreja por presbíteros eleitos pela comunidade e reunidos em concílios, significava um governo mais democrático e autônomo em relação aos governantes civis. Das Ilhas Britânicas, o presbiterianismo foi para os Estados Unidos e dali para muitas partes do mundo, inclusive o Brasil.
Daí resulta outra distinção importante. Todo presbiteriano é, por definição, reformado e, em teoria, calvinista. Porém, nem todos os calvinistas são presbiterianos. Um bom exemplo é a Inglaterra dos séculos XVI e XVII. Quase todos os protestantes ingleses daquela época eram calvinistas, mas muitos deles não aceitavam o sistema de governo presbiteriano. Entre eles estavam muitos anglicanos e os congregacionais, além de outros grupos.
 
Conclusão.
Ao dizermos que somos reformados, calvinistas e presbiterianos, ficam implícitos outros dois elementos igualmente importantes da nossa identidade, que nos lembram que não estamos sozinhos na caminhada: somos cristãos e somos evangélicos. Se de um lado devemos valorizar a nossa herança, de outro lado não devemos nos tornar exclusivistas, lembrando que o corpo de Cristo é maior que o movimento ao qual estamos ligados.
I. João Calvino: Vida e Obra (1ª parte: 1509-1541)
O movimento reformado ou presbiterianismo surgiu no contexto da Reforma Religiosa do Século XVI. A Reforma começou na Alemanha, com Martinho Lutero (1517), mas o movimento reformado propriamente dito teve origem no país vizinho, a Suíça, primeiro com Ulrico Zuínglio (†1531) e depois com João Calvino. Sendo Calvino o maior líder e teólogo do movimento, ele foi o principal articulador das concepções doutrinárias e da forma de governo que vieram a caracterizar as igrejas reformadas ou presbiterianas.
Calvino: De Noyon a Genebra
Jean Calvin ou João Calvino (1509-1564) nasceu em Noyon, uma pequena cidade situada a cerca de 100 km a nordeste de Paris. Seu pai, Gérard Cauvin, era um assistente administrativo do bispo local. Sua mãe, Jeanne, morreu quando Jean, seu quarto filho, tinha apenas cinco ou seis anos de idade. Uma autora argumenta que esta triste experiência certamente contribuiu para o sentimento de ansiedade e inquietação pessoal característico de Calvino.
Calvino viveu por vários anos com a aristocrática família Montmor, à qual ele sempre se mostraria profundamente agradecido. Ele dedicou o seu primeiro livro, em 1532, a um membro dessa família, afirmando: "Eu lhe devo tudo o que sou e tenho... Quando menino, fui criado em sua casa e iniciei os meus estudos com você. Assim sendo, devo à sua nobre família o meu primeiro treinamento na vida e nas letras."
Graças a interferência de seu pai, com a idade de doze anos Calvino recebeu um benefício eclesiástico do bispo de Noyon. A posse de um benefício exigia o ingresso em uma ordem menor – João tornou-se sacristão e recebeu a tonsura – e o exercício de tarefas eclesiásticas, no seu caso o cuidado de um dos altares da catedral. A renda desse benefício era uma espécie de bolsa de estudos através da qual o jovem Calvino, já então um estudante precoce, pode continuar os seus estudos.
Em agosto de 1523 o jovem foi para Paris a fim de iniciar os seus estudos formais. Inicialmente ele matriculou-se no Collège de la Marche, onde aperfeiçoou o seu conhecimento do latim sob o grande mestre Mathurin Cordier, que anos depois haveria de lecionar na Academia de Genebra. A seguir, Calvino, dedicou-se aos estudos teológicos no Collège de Montaigu, famoso por sua rígida disciplina e por sua péssima comida. Sendo um estudante compulsivo, Calvino saiu-se muito bem nos seus estudos. Ao mesmo tempo, sob influências humanistas, ele também adquiriu uma forte antipatia pelo método escolástico de se fazer teologia.
Em 1528, por insistência de seu pai, Calvino mudou-se para Orléans a fim de estudar Direito. Gérard Cauvin percebeu que o seu inteligente filho provavelmente se daria melhor como advogado do que como religioso. Mais tarde Calvino deu prosseguimento aos seus estudos jurídicos em Bourges, onde também estudou grego com o erudito evangélico alemão Melchior Wolmar. Timothy George observa que o treinamento jurídico de Calvino exerceu duas influências significativas sobre o seu futuro trabalho: proporcionou-lhe um sólido fundamento em questões práticas que lhe foi muito útil no seu esforço para remodelar as instituições de Genebra, e abriu os seus olhos para a antigüidade clássica e o estudo dos textos antigos.
Quando seu pai morreu, em 1531, Calvino sentiu-se livre para abandonar o estudo do Direito em favor da sua verdadeira paixão, a literatura clássica. Ele voltou para Paris e no ano seguinte publicou o seu primeiro livro, uma edição crítica do tratado de Sêneca Sobre a Clemência, juntamente com um extenso comentário.
A sua transição de humanista a reformador foi marcada por algo que ele certa vez descreveu como uma "conversão repentina" (conversio subita). Isso aconteceu por volta de 1533-1534 e foi precedido de um período de lutas, inquietação e dúvidas. Seus primeiros biógrafos Beza e Colladon atribuem um importante papel na sua conversão ao seu primo Robert Olivétan, para cujo Novo Testamento francês Calvino escreveu um prefácio sob o título: "A todos os que amam Jesus Cristo e o seu Evangelho" (1535). Esta foi a sua primeira obra publicada como protestante. Sua conversão foi atestada publicamente quando ele retornou a Noyon em maio de 1534 a fim de renunciar ao benefício de que tinha usufruído por treze anos.
No Dia de Todos os Santos em 1533, Nicholas Cop, um amigo de Calvino que acabara de ser eleito reitor da Universidade de Paris, fez um discurso de abertura do ano letivo que chocou a audiência por causa de suas idéias protestantes. Acusado de ser um propagandista luterano, Cop teve de fugir para salvar a vida. Calvino, sob suspeita de ser o co-autor do discurso, teve seus papéis apreendidos e tornou-se persona non grata em Paris. Ele encontrou refúgio na casa de um amigo em Angoulême, onde começou a escrever as suas Institutas da Religião Cristã.
Um ano mais tarde, quando irrompeu a perseguição contra os protestantes franceses, Calvino buscou proteção na cidade reformada de Basiléia, a terra natal de Cop, que ali já se encontrava. (Erasmo de Roterdã também estava residindo em Basiléia, onde veio a falecer dois anos mais tarde, em 1536.) Em março de 1536 veio a lume a primeira edição das Institutas, um livro destinado a tornar-se "o principal documento da teologia protestante no século dezesseis." Um bestseller quase da noite para o dia, o livro foi distribuído rapidamente por toda a Europa. Houve duas razões principais para tamanho sucesso: a sua carta introdutória dirigida ao rei Francisco I constituiu-se numa poderosa defesa dos evangélicos franceses perseguidos; todavia, o seu propósito principal foi catequético – servir como um manual para o ensino e a reforma das igrejas. A sua edição definitiva, vastamente ampliada, seria publicada somente em 1559.
No verão de 1536 Calvino estava viajando com seu irmão e meio-irmã de Paris a Estrasburgo, onde esperava instalar-se para uma vida longamente esperada de tranqüilidade e estudo. Todavia, os exércitos de Francisco I e do imperador Carlos V estavam empenhados em manobras militares numa área onde os viajantes deveriam passar. Assim sendo, estes tiveram de fazer um desvio pelo sul, através da cidade de Genebra, na fronteira entre a França, Savóia e a Suíça. Por ironia, Calvino não teve uma boa impressão da cidade e planejou permanecer ali apenas uma noite.
O ardoroso Guillaume Farel (1489-1565) tinha levado a cidade a abraçar a Reforma somente dois meses antes, através do voto unânime de uma assembléia de cidadãos realizada em 25 de maio de 1536. A obra da Reforma em Genebra estava intimamente ligada à sua emancipação política da Casa de Savóia, de convicção católica. Nos anos de 1526 e 1527 a cidade tinha sido atraída para a órbita da Suíça e em 1533 Berna promovera ativamente a causa da Reforma Protestante em Genebra.
Sabendo que Calvino estava na cidade, Farel irrompeu em seu quarto de hotel e lhe implorou que permanecesse em Genebra e o ajudasse a consolidar a Reforma recentemente abraçada. Calvino ficou chocado com a idéia, pois sentiu-se despreparado para a tarefa. Ele poderia fazer mais pela igreja através de seus tranqüilos estudos e de seus escritos. Nesse momento, Farel trovejou a ira de Deus sobre Calvino com palavras que este jamais iria esquecer – Deus amaldiçoaria o seu lazer e os seus estudos se em tão grave emergência ele se retirasse, recusando-se a ajudar. George observa que "a partir daquele momento, o destino de Calvino ficou ligado ao de Genebra."
A primeira estadia de Calvino em Genebra durou menos de dois anos. O seu primeiro catecismo e confissão de fé foram adotados, mas ele e Farel entraram em conflito com as autoridades civis acerca de questões eclesiásticas: disciplina, adesão à confissão de fé e práticas litúrgicas. Em abril de 1538 eles foram expulsos da cidade. Depois de outra breve estadia em Basiléia, Calvino transferiu-se para Estrasburgo, seu destino original dois anos antes. Naquela cidade ele haveria de passar os três anos mais felizes da sua vida (1538-1541); provavelmente eles também foram os anos mais decisivos da sua formação como reformador e teólogo.
Timothy George destaca cinco dimensões da vida de Calvino durante esse período crucial. Primeiramente, ele pastoreou uma pequena congregação de refugiados franceses. Em segundo lugar, ele foi professor na escola de João Sturm, que serviria de modelo para a sua futura Academia de Genebra. Calvino também escreveu extensamente: uma edição inteiramente revista das Institutas (publicada em agosto de 1539), a sua primeira tradução francesa (1541), o Comentário de Romanos, e três escritos mais breves, porém brilhantes – a Resposta a Sadoleto, "provavelmente a melhor apologia da fé reformada escrita no século dezesseis," um livro de liturgia, e um tratado sobre a Santa Ceia. Calvino ainda atuou como diplomata eclesiástico, viajando para muitas cidades como conselheiro de delegações protestantes em conferências interconfessionais que procuravam restaurar a unidade entre protestantes e católicos. Finalmente, ele contraiu núpcias com uma de suas próprias paroquianas, Idelette de Bure, em uma cerimônia oficiada por seu amigo Farel.
Em 1541 os genebrinos suplicaram que Calvino retornasse à sua igreja. Persuadido por Martin Bucer (1491-1551), o grande líder da Reforma em Estrasburgo, Calvino retornou a Genebra no dia 13 de setembro, viu-se nomeado pastor da antiga catedral de Saint Pierre e foi "contemplado com um salário razoável, uma casa ampla, e porções anuais de 12 medidas de trigo e 250 galões de vinho."
O restante da carreira de Calvino como reformador foi simbolizado pelos dois primeiros atos oficiais que ele empreendeu após o seu retorno. No domingo seguinte ele voltou ao seu púlpito e simplesmente prosseguiu a exposição das Escrituras no ponto em que a havia interrompido três anos antes. Além disso, ele apresentou ao conselho da cidade um plano detalhado para a ordem e o governo da igreja. As suas Ordenanças Eclesiásticas requeriam a instalação dos quatro ofícios de pastores, doutores, presbíteros e diáconos, os quais correspondiam às áreas de doutrina, educação, disciplina e ação social. O conselho aprovou o plano de Calvino, mas este passaria o restante da sua carreira tentando, nunca com pleno êxito, obter o seu cumprimento.
II. João Calvino: Vida e Obra (2ª parte: 1541-1564)
Calvino e Serveto
Augustus Nicodemus Lopes
Gerações sempre estão passando a limpo pontos obscuros da história de seus antepassados. Assistimos, no momento, a tentativa de vários grupos alemães de trazer a lume aspectos do envolvimento do povo alemão no Holocausto que
serviriam para amenizar a sombra que paira sobre a nação pelo assassínio de milhares de judeus durante a Segunda Guerra. Recentemente, o Dr. Frans Leonard Schalkwijk, em sua obra Igreja e Estado no Brasil Holandês, lançou luz sobre a figura do "traidor" Calabar, demonstrando que a "traição" foi, na verdade, sua conversão ao Evangelho pregado pelos holandeses reformados. Quem sabe o presente artigo possa ajudar a passar a limpo alguns aspectos do tristemente famoso episódio envolvendo João Calvino e a execução na fogueira do médico espanhol Miguel Serveto, condenado por heresia contra a Trindade, em 1553, em Genebra.
Preciso dizer desde o início que minha intenção não é justificar a participação de Calvino no incidente. Não posso concordar com a pena de morte como castigo para a heresia, muito menos se o método de execução é queimar vivo o faltoso. Até mesmo os maiores heróis do passado tomaram decisões e fizeram declarações que nos causam, séculos depois, estranheza e discordância. Calvino não é nenhuma exceção. Meu alvo neste artigo não é defendê-lo como se ele fosse sem defeitos. É claro que ele os tinha. É claro que ele errou. Mas penso que, particularmente no caso envolvendo a execução de Serveto por heresia em Genebra, durante o tempo em que Calvino ali ministrava, nem sempre vozes se têm levantado para apresentar outra versão dos fatos, versão esta enraizada em documentos confiáveis. Episódios do passado devem ser entendidos à luz dos conceitos e valores da época em que ocorreram. Meu alvo é expor alguns deles que estavam vigentes na época de Calvino, bem como trazer dados freqüentemente ignorados sobre o episódio. Não podemos justificar Calvino por pedir a pena de morte para Serveto, mas podemos entender os motivos que o levaram a isto.
Testemunhas que viveram em Genebra logo após a cidade haver abraçado a Reforma protestante, viram-na como "o espelho e modelo de verdadeira devoção, um abrigo para os refugiados perseguidos por sua fé, um lugar seguro para treinar e enviar ao estrangeiro soldados do Evangelho e ministros da Palavra." Logo que Genebra abraçou a Reforma oficialmente e cortou suas lealdades para com o bispo e duque de Savóia, a cidade foi inundada por refugiados de toda a Europa. Da noite para o dia Genebra se tornou, depois de Wittenberg, Zurique e Estrasburgo, um monumento da fé protestante.
Apesar dessas observações feitas por pessoas que viveram em Genebra na época destes acontecimentos, as impressões que recebemos de nossos professores de escola secundária provavelmente têm pouco, ou nada, em comum com o
depoimento destas testemunhas oculares. Segundo Michael Horton, "abundam imagens de um tirano vestido de toga preta, organizando o equivalente no século XVI de uma polícia secreta moderna para assegurar que ninguém, a qualquer hora ou em qualquer lugar, estivesse se divertindo." É de admirar que, apesar dos testemunhos em contrário, prevaleceu na opinião pública a idéia de que Genebra era uma teocracia e Calvino era seu papa!
Em 25 de maio de 1536 os cidadãos de Genebra decidiram aderir à Reforma protestante. Mas isso era só o começo. Sem liderança qualificada, Genebra estava à beira do colapso civil e religioso. O que a nova república precisava era de um jovem visionário. Calvino chegou em Genebra fugindo das autoridades de Paris. Ele havia inicialmente se encaminhado para a cidade reformada de Estrasburgo, onde Martin Bucer estava pregando. Porém, o rei francês e o imperador alemão estavam envolvidos em uma guerra que bloqueou o caminho para a cidade. Frustrado, mas destemido, Calvino tomou um desvio para Genebra durante a noite. De lá não passaria. Ficou, a pedido insistente de Farel, líder protestante da cidade, e depois de algum tempo foi designado pastor da igreja de São Pedro, a catedral de Genebra. Tensões entre Calvino, Farel e o Conselho Municipal com respeito à celebração da Ceia do Senhor, as atribuições da Igreja e do Estado e o exercício da disciplina, acabaram por levar o Conselho a expulsar Calvino de lá. E ele seguiu, exilado, para Estrasburgo.
Ali (1538-41), Calvino sentiu-se como se estivesse no céu. Martin Bucer tornou-se o seu mentor. Calvino assumiu o pastorado da igreja reformada francesa da cidade. Durante este tempo, ele publicou alguns dos seus trabalhos mais notáveis; ali casou-se com Idelette de Bure, a viúva de um amigo anabatista. Calvino estava muito feliz ali, mas uma vez mais Genebra o chamou.
O Conselho municipal escreveu a Calvino pedindo ajuda contra o ensino do Cardeal Sadoleto, que procurava chamar Genebra de volta para a Igreja Católica. Pediu desculpas e, com mais um apelo de Farel, convenceu Calvino a voltar. Dr. McGrath, historiador da Universidade de Oxford, demonstra como o mito do "grande ditador de Genebra" está enraizado em conceitos populares difundidos especialmente pelas obras de Bolsec e Huxley, que fizeram afirmações sem ter qualquer fato histórico que os apoiasse, mas que não obstante acabaram por moldar a visão de Calvino que hoje prevalece em muitos meios evangélicos. Calvino não tinha qualquer acesso à máquina decisória do Conselho. Ele mesmo não podia votar e nem concorrer a qualquer cargo político eletivo. E mesmo quanto aos negócios da Igreja, Calvino quase não tinha qualquer poder decisório.
A 25 de outubro de 1553 o Conselho municipal emitiu o decreto que condenava Miguel Serveto a ser queimado na estaca por heresia. De fato, foi Calvino quem o denunciou e quem pediu a pena de morte para ele. Vejamos agora o contexto em que isso aconteceu.
  1. A pena de morte por heresia era prática geral da Idade Média.
  2. Serveto chegou a Genebra fugido de Viena e da França, onde havia sido condenado à morte pela Igreja Católica, sob a acusação de heresia contra a Trindade.
  3. Serveto foi a Genebra apesar dos avisos de Calvino de que isto poderia custar-lhe a vida.
  4. Chegando em Genebra, se fez conhecido de Calvino em público. Foi preso e, embora Calvino fosse um teólogo e advogado treinado (havia mesmo sido empregado pelo Conselho municipal para elaborar a legislação relativa à previdência social e ao planejamento dos serviços de saúde pública), mesmo assim não foi o promotor do processo eclesiástico contra Serveto. Lembremos que ele não tinha nem os mesmos direitos de um cidadão comum!
  5. Calvino aceitava a pena de morte, não somente para os que matavam o corpo de seus semelhantes, mas também para os que lhes matavam a alma através do veneno mortal do erro religioso.
  6. Por outro lado, não foram as convicções teológicas de Calvino que o levaram a isto. Não se pode culpar as suas convicções, particularmente sua firme crença na soberania de Deus, pela execução de Serveto.
  7. Calvino havia se correspondido com Serveto e há alguma evidência nessas cartas de que ele tinha tentado até mesmo encontrar-se clandestinamente com o anti-trinitário para tentar convencê-lo do seu erro.
  8. Calvino estava nessa época no maior calor de suas batalhas contra o Conselho municipal. O grupo dos Libertinos exercia dentro do Conselho forte oposição a ele. Caso ele tivesse pedido a execução de Serveto, a reação provável do Conselho teria sido negar.
  9. Há outro fato a ponderar. Quando foi dada a Serveto a escolha da cidade onde seria julgado, ele escolheu Genebra. A outra opção era Viena, de onde viera fugido. Por alguma razão, ele deve ter pensado que suas chances de sobrevivência eram melhores em Genebra. Porém, o Conselho municipal da cidade, conduzido pela facção dos Libertinos, totalmente contrários a Calvino, estava determinado a mostrar que Genebra era uma cidade reformada e comprometida com os credos. E assim, Serveto foi condenado a ser queimado vivo.
  10. Calvino suplicou ao Conselho que executasse Serveto de uma maneira mais humanitária do que o ritual tradicional de queima de hereges. Mas, claro, o Conselho municipal recusou o argumento de Calvino. Farel visitou Calvino durante a execução. Calvino estava tão transtornado, como foi mais tarde comunicado, que Farel partiu sem mesmo dizer adeus.
  11. A execução de Serveto foi aprovada por todas as demais cidades-estados reformadas e por todos os reformadores. Lutero e Zwinglio já havia morrido, mas certamente haveriam concordado. O próprio Lutero havia consentido na execução de camponeses revoltosos. Os demais, Bullinger, Beza, Bucer, etc., todos deram apoio irrestrito a Calvino.
Estes são alguns fatos que devemos lembrar antes de chamarmos Calvino de "assassino." A propósito, durante este mesmo período trinta e nove hereges foram queimados em Paris, vítimas da Inquisição católica, que estava sendo aplicada com rigor na Espanha, Itália e outras partes de Europa. Apesar do fato de que muitos que não eram ortodoxos buscaram (e encontraram) refúgio em Genebra, fugindo das autoridades católicas, Serveto foi o único herege a ser queimado naquela cidade durante a distinta carreira de Calvino.
Até mesmo os judeus foram convidados pelas cidades-estados reformadas para se abrigarem nelas, fugindo da Inquisição. O puritano Oliver Cromwell, líder do
Parlamento inglês por um período, mais tarde tornou a Inglaterra um abrigo seguro para os dissidentes religiosos, e especialmente para os judeus. O mesmo ocorreu nos Países Baixos (atual Holanda). E mesmo hoje, Genebra e Estrasburgo, outrora reformadas, figuram no topo da lista como cidades que se destacam em termos de direitos humanos e relações internacionais.
O que muitos ignoram é que Calvino era um pastor atencioso, que visitava pacientes terminais de doenças contagiosas no hospital que ele mesmo havia estabelecido, embora fosse advertido dos perigos de contágio. Foi ele quem instou o Conselho a afiançar empréstimos a baixos juros para os pobres. Foi ele quem defendeu a educação universal e gratuita para todos os habitantes da cidade, como Lutero e outros reformadores tinham feito. Sua preocupação diária em 1541 era como dar a Genebra uma universidade.
Eis aí o famoso "tirano de Genebra"! Penning escreve que, no fim da vida de Calvino, ao ser visto nas ruas da cidade, os moradores diziam: "Lá vai o nosso mestre Calvino." Em 10 de março de 1564, o Conselho decretou um dia de oração pela saúde de Calvino e o reformador recuperou-se durante um tempo. Na Páscoa desse ano, Calvino foi levado à igreja carregado em sua cadeira para participar da Ceia do Senhor, devido ao seu extremo estado de fraqueza. Quando a enorme congregação o viu chegar assim, começou a lamentar-se e a chorar. No sábado, 27 de maio, Calvino morreu aos cinqüenta e cinco anos de idade. Quando à noite as notícias da sua morte se espalharam pela cidade, "Genebra lamentou-se como uma nação lamenta quando perde seu benfeitor," escreve Penning.
A execução de Serveto permanece como uma mancha na história da distinta carreira de Calvino em Genebra. Usá-la, porém, para denegrir sua imagem, para atacar a sua teologia e para envergonhar os calvinistas, é expediente preconceituoso de quem não deseja ver todos os fatos.
Presbiterianos: Quem Somos e de Onde Viemos
III. João Calvino: Teologia (1ª parte)
  1. As Institutas: Calvino produziu ao todo oito edições do texto latino (1536-1559) e cinco traduções para o francês. A 1ª edição tinha apenas seis capítulos; a última totalizou oitenta. Equivale em tamanho ao Antigo Testamento mais os Evangelhos sinóticos e segue o padrão geral do Credo dos Apóstolos. Visava ser um guia para o estudo das Escrituras.
Livro I: O Conhecimento de Deus, o Criador: o duplo conhecimento de
Deus, as Escrituras, a Trindade, a criação e a providência
Livro II: O Conhecimento de Deus, o Redentor: a queda e a corrupção
humana, a Lei, o Antigo e o Novo Testamento, Cristo o Media-
dor – sua pessoa (profeta, sacerdote, rei) e sua obra (expiação)
Livro III: A Maneira Como Recebemos a Graça de Cristo, Seus Benefícios
e Efeitos: fé e regeneração, arrependimento, vida cristã,
justificação, predestinação, ressurreição final
Livro IV: Os Meios Externos Pelos Quais Deus nos Convida Para a
Sociedade de Cristo: a igreja, os sacramentos, o governo civil
  1. Comentários: são um complemento das Institutas. Calvino escreveu comentários de todos os livros do Novo Testamento, exceto 2 e 3 João e Apocalipse, e sobre o Pentateuco, Josué, Salmos e Isaías.
  2. Sermões: Calvino expunha sistematicamente os livros da Bíblia. Ele costumava pregar sobre o Novo Testamento aos domingos e sobre o Velho Testamento durante a semana. Seus sermões eram anotados taquigraficamente por um grupo de leais refugiados franceses. A série Corpus Reformatorum contém 872 sermões de Calvino.
  3. Folhetos e tratados: temas apologéticos (contra católicos e anabatistas) e gerais.
  4. Cartas: escritas a outros reformadores, soberanos, igrejas perseguidas e protestantes encarcerados, pastores, colportores.
6. Escritos litúrgicos e catequéticos: confissão de fé, catecismo, saltério.
I) A Perspectiva Teológica de Calvino.
1. O conhecimento de Deus:
2. A condição humana:
3. O Deus que se revela:
4. A doutrina das Escrituras:
II) O Deus Que Age.
1. O Deus triúno:
2. Criação:
3. Providência:
III) O Cristo Que Salva.
1. A doutrina do pecado:
2. A pessoa de Cristo:
3. A obra de Cristo:
Fonte: Timothy George, A Teologia dos Reformadores (S. Paulo: Vida Nova). Original em inglês: Theology of the Reformers (Nashville: Broadman, 1988), 185-223.
Presbiterianos: Quem Somos e de Onde Viemos
IV. João Calvino: Teologia (2ª parte)
IV) A Vida no Espírito.
1. :
2. Oração:
3. Predestinação:
V. Os Meios Externos de Graça.
1. Pressupostos:
2. A igreja como mãe e escola:
3. Ordem e ofício:
4. A igreja e o mundo:
O Pensamento Social de Calvino
O conceito de Calvino acerca de um quádruplo ministério revela que a assistência social estava entre as suas principais preocupações. Sua primeira e mais importante contribuição nessa área foi teórica – suas idéias e princípios teológicos concernentes à responsabilidade da igreja cristã para com os desafortunados.
Vários autores observam que Calvino jamais estabeleceu uma conexão entre riqueza ou pobreza e o favor ou desfavor de Deus em relação a indivíduos. W. Fred Graham argumenta que
Calvino nunca viu a pobreza e o infortúnio como evidências do desfavor de Deus para com o indivíduo afligido, nem considerava a prosperidade como um sinal da bênção de Deus por causa de méritos pessoais ou como evidência da eleição para a salvação.1
Antes, o reformador entendeu a riqueza e a pobreza como expressões do favor ou do julgamento de Deus sobre toda a comunidade, que então deveria redistribuir os seus recursos com vistas ao bem-comum. Calvino pergunta: "Por que é então que Deus permite a existência da pobreza aqui embaixo, a não ser porque ele deseja dar-nos ocasião para praticarmos o bem?"2
Em muitas oportunidades, Calvino condenou severamente a ganância e a insensibilidade dos ricos, porque ele estava preocupado com que as dádivas de Deus fossem usadas para o benefício de toda a comunidade do povo de Deus. Graham argumenta que não foi ao ascetismo que Calvino conclamou os ricos de Genebra, mas à regra do amor: "De fato, se existe um tema central no pensamento social e econômico de Calvino, é que a riqueza vem de Deus a fim de ser utilizada para auxiliar os nossos irmãos."3 A solidariedade da comunidade humana é tal que torna-se inexcusável alguns terem abundância e outros passarem necessidade.4 Ronald Wallace observa: "[Calvino] insistia que, como uma lei da vida, onde havia riqueza abundante também deveria haver doações generosas dos ricos aos pobres."5
Um dos textos que Calvino utiliza mais freqüentemente nos seus escritos e ensinos é o apelo de Isaías ao homem rico de Israel: "... e não te escondas do teu semelhante" (58:7), que ele interpreta como uma referência ao "teu pobre."6 Em outro sermão, ele pondera: "Deus mistura os ricos e os pobres para que eles possam encontrar-se e ter comunhão uns com os outros, de modo que os pobres recebam e os ricos repartam."7
Os pobres são irmãos e devem ser tratados como tais. Graham pondera: "Não existe uma beneficência fria no plano calvinista; a beneficência deve ser praticada com compaixão."8 A contribuição não deve ser uma expressão de legalismo, mas de espontaneidade e liberalidade.9
Graham acentua a ética altruísta articulada por Calvino no terreno social e econômico: "A solidariedade humana é tal que qualquer coisa que contribua para o empobrecimento de uma parte da sociedade é, ipso facto, maléfica."10 Quando Calvino pregava sobre a proibição vetotestamentária de se privar um credor pobre da sua mó superior, como garantia de uma dívida, ele falava com implicações que hoje podem ser entendidas no sentido de que nenhuma sociedade jamais deve privar qualquer pessoa da oportunidade de trabalhar para ganhar o seu sustento.11
O reformador ficava particularmente exasperado com aqueles que praticavam o monopólio e a especulação envolvendo alimentos.12 Assim sendo, ele defendeu alguma intervenção por parte do governo para a proteção do bem comum, a fim que "os homens respirem, comam, bebam e mantenham-se aquecidos" (Inst. 4.20.3). Como William C. Innes observou, Calvino insistiu
que a caridade cristã e uma preocupação ética pelo bem da comunidade fossem os fatores determinantes em todas as decisões econômicas. A sua influência e ensinos doutrinários incentivaram e promoveram o interesse já existente em Genebra por uma assistência ampla e respeitosa aos pobres.13