PRESBITERIANOS: QUEM SOMOS E DE ONDE
VIEMOS
Alderi Souza de Matos
Conceitos Introdutórios
Uma das coisas mais importantes para todo grupo é ter uma
consciência clara da sua identidade e objetivos. A identidade tem a ver
com as raízes, a história, os fundamentos, as
características distintivas. Os objetivos são uma
decorrência disso: à luz das raízes, da identidade, das
convicções básicas, irão ser traçados os
alvos, as prioridades, as maneiras de ser e viver no mundo.
Isto se aplica perfeitamente aos presbiterianos.
Todavia, ocorre que muitos deles ignoram a sua identidade, não sabem
exatamente quem são, como indivíduos e como igreja. Não
conhecendo as suas raízes – históricas, teológicas,
denominacionais – eles têm dificuldade de posicionar-se quanto a uma
série de questões e de definir com clareza os seus rumos, as suas
prioridades. Muitas vezes, quando questionados por outras pessoas quanto a suas
convicções e práticas, sentem-se frustrados com a sua
incapacidade de expor de modo coerente e convincente as suas
posições.
O presente curso visa proporcionar, ainda que resumidamente,
informações sobre os principais elementos que constituem a
identidade reformada. Iniciaremos com o estudo da vida, obra e pensamento do
grande reformador do século dezesseis ao qual estamos ligados,
João Calvino. Prosseguiremos acompanhando a expansão do movimento
reformado através da Europa até chegar aos Estados Unidos, de
onde, principalmente, o movimento veio para o Brasil.
Ao lado das muitas informações históricas que
serão transmitidas, veremos também as principais
características teológicas, estruturais e práticas da
tradição reformada. Ao lado do pensamento de Calvino,
também estudaremos, com maior ou menor detalhe, os padrões
doutrinários da Assembléia de Westminster e outros documentos
representativos. As últimas aulas serão dedicadas à
análise dos principais aspectos práticos que devem caracterizar a
nossa vida como presbiterianos nos dias atuais.
Principiaremos o nosso estudo com a análise de três termos
importantes cujo significado precisa ser corretamente compreendido: reformado,
calvinista e presbiteriano. Esses nomes do nosso movimento são
sinônimos em alguns aspectos e diferentes em outros.
1. Reformados
Tendo sido o monge alemão Martinho Lutero (1483-1546) o primeiro dos
reformadores protestantes do século XVI, os seus seguidores logo passaram
a ser conhecidos como "luteranos." Eventualmente, no país vizinho ao sul
da Alemanha, a Suíça, surgiu um novo movimento protestante,
independente do movimento de Lutero, que, para distinguir-se do mesmo, passou a
ser denominado de "reformado." Inicialmente, o movimento reformado esteve mais
ligado à pessoa de Ulrico Zuínglio (1484-1531). Porém, com
a morte prematura deste, o movimento veio a associar-se com o seu maior
teólogo e articulador, que foi o francês João Calvino
(1509-1564). A propósito, os "protestantes," fossem eles luteranos ou
reformados, só passaram a ter essa designação a partir da
Dieta de Spira, em 1529.
Portanto, o movimento reformado é o ramo do protestantismo que
surgiu na Suíça do século dezesseis, tendo como
líderes originais Ulrico Zuínglio, em Zurique, e especialmente
João Calvino, em Genebra. Esse movimento veio a caracterizar-se por
certas concepções teológicas e formas de
organização eclesiástica que o distinguiram de todos os
outros grupos protestantes (luteranos, anabatistas e anglicanos). A
tradição reformada foi preservada e desenvolvida pelos sucessores
imediatos e mais remotos dos líderes iniciais, tais como João
Henrique Bullinger (1504-1575), Teodoro Beza (1519-1605), os puritanos ingleses
e outros.
Até hoje, as igrejas ligadas a essa tradição no
continente europeu são conhecidas como Igrejas Reformadas (da
Suíça, França, Holanda, Hungria, Romênia e outros
países). Porém, o termo reformado é mais que a
designação de uma tradição teológica ou
eclesiástica. É um conceito abrangente que inclui todo um modo de
encarar a vida e o mundo a partir de uma série de pressupostos, dentre os
quais destaca-se a soberania de Deus.
2. Calvinistas
O calvinismo, como o nome indica, é o sistema de teologia elaborado
pelo mais articulado e profundo dentre os reformadores, João Calvino.
Esse sistema, contido especialmente na obra maior de Calvino, a
Instituição da Religião Cristã ou
Institutas, resulta de uma interpretação cuidadosa e
sistemática das Escrituras, e tem como um de seus principais fundamentos
a noção da absoluta soberania de Deus como criador, preservador e
redentor. O calvinismo não é somente um conjunto de doutrinas, mas
inclui concepções específicas a respeito do culto, da
liturgia, do ministério, da evangelização e do governo da
igreja.
Normalmente, todos os reformados deveriam ser calvinistas, mas isso nem
sempre ocorre na prática. Muitos herdeiros de Calvino, embora se
considerem reformados, não mais se designam ou podem ser designados como
calvinistas, por terem abandonado certas convicções e
princípios básicos defendidos pelo reformador. Portanto, todo
calvinista é reformado, mas nem sempre a recíproca é
verdadeira.
3. Presbiterianos
O termo presbiteriano foi adotado pelos reformados nas Ilhas
Britânicas (Escócia, Inglaterra e Irlanda). Isso se deve ao
contexto político-religioso em que o protestantismo foi introduzido
naquela região, no qual a forma de governo da igreja teve uma
importância preponderante. Os reis ingleses e escoceses preferiam o
sistema episcopal, ou seja, uma igreja governada por bispos e arcebispos, o que
permitia um maior controle da igreja pelo estado. Já o sistema
presbiteriano, isto é, o governo da igreja por presbíteros eleitos
pela comunidade e reunidos em concílios, significava um governo mais
democrático e autônomo em relação aos governantes
civis. Das Ilhas Britânicas, o presbiterianismo foi para os Estados Unidos
e dali para muitas partes do mundo, inclusive o Brasil.
Daí resulta outra distinção importante. Todo
presbiteriano é, por definição, reformado e, em teoria,
calvinista. Porém, nem todos os calvinistas são presbiterianos. Um
bom exemplo é a Inglaterra dos séculos XVI e XVII. Quase todos os
protestantes ingleses daquela época eram calvinistas, mas muitos deles
não aceitavam o sistema de governo presbiteriano. Entre eles estavam
muitos anglicanos e os congregacionais, além de outros grupos.
Conclusão.
Ao dizermos que somos reformados, calvinistas e presbiterianos, ficam
implícitos outros dois elementos igualmente importantes da nossa
identidade, que nos lembram que não estamos sozinhos na caminhada: somos
cristãos e somos evangélicos. Se de um lado devemos valorizar a
nossa herança, de outro lado não devemos nos tornar exclusivistas,
lembrando que o corpo de Cristo é maior que o movimento ao qual estamos
ligados.
I. João Calvino: Vida e Obra (1ª
parte: 1509-1541)
O movimento reformado ou presbiterianismo surgiu no contexto da Reforma
Religiosa do Século XVI. A Reforma começou na Alemanha, com
Martinho Lutero (1517), mas o movimento reformado propriamente dito teve origem
no país vizinho, a Suíça, primeiro com Ulrico
Zuínglio (†1531) e depois com João Calvino. Sendo Calvino o
maior líder e teólogo do movimento, ele foi o principal
articulador das concepções doutrinárias e da forma de
governo que vieram a caracterizar as igrejas reformadas ou
presbiterianas.
- 1509: João Calvino nasceu em Noyon, nordeste da França,
no dia 10 de julho. Seu pai, Gérard Cauvin, era advogado dos religiosos e
secretário do bispo local. Sua mãe, Jeanne Lefranc, faleceu quando
ele tinha cinco ou seis anos de idade. Por alguns anos, o menino conviveu e
estudou com os filhos das famílias aristocráticas locais. Aos 12
anos, recebeu um benefício eclesiástico, cuja renda serviu-lhe
como bolsa de estudos.
- 1523: Calvino foi residir em Paris, onde estudou latim e humanidades
no Collège de la Marche e teologia no Collège de Montaigu. Em
1528, iniciou seus estudos jurídicos, primeiro em Orléans e depois
em Bourges, onde também estudou grego com o erudito luterano Melchior
Wolmar. Com a morte do pai em 1531, retornou a Paris e dedicou-se ao seu
interesse predileto – a literatura clássica. No ano seguinte,
publicou um comentário sobre o tratado de Lúcio Enéias
Sêneca De Clementia.
- 1533: converteu-se à fé evangélica,
provavelmente sob a influência do seu primo Robert Olivétan. No
final desse ano, teve de fugir de Paris sob acusação de ser o
co-autor de um discurso simpático aos protestantes, proferido por
Nicholas Cop, o novo reitor da universidade. Refugiou-se na casa de um amigo em
Angoulême, onde começou a escrever a sua principal obra
teológica. Em 1534, voltou a Noyon e renunciou ao benefício
eclesiástico. Escreveu o prefácio do Novo Testamento traduzido
para o francês por Olivétan (1535).
- 1536: no mês de março foi publicada em Basiléia a
primeira edição da Instituição da Religião
Cristã (ou Institutas), introduzida por uma carta ao rei
Francisco I da França contendo um apelo em favor dos evangélicos
perseguidos. Alguns meses mais tarde, Calvino dirigia-se para Estrasburgo quando
teve de fazer um desvio em virtude de manobras militares. Ao pernoitar em
Genebra, o reformador suíço Guilherme Farel o convenceu a
ajudá-lo naquela cidade, que apenas dois meses antes abraçara a
Reforma Protestante (21-05). Logo, os dois líderes entraram em conflito
com as autoridades civis de Genebra acerca de questões
eclesiásticas (disciplina, adesão à confissão de
fé e práticas litúrgicas), sendo expulsos da cidade.
- 1538: Calvino foi para Estrasburgo, onde residia o reformador Martin
Bucer, e ali passou os três aos mais felizes da sua vida (1538-41).
Pastoreou uma pequena igreja de refugiados franceses; lecionou em uma escola que
serviria de modelo para a futura Academia de Genebra; participou de
conferências que visavam aproximar protestantes e católicos.
Escreveu amplamente: uma edição inteiramente revista das
Institutas (1539), sua primeira tradução francesa (1541),
um comentário da Epístola aos Romanos, a Resposta a Sadoleto
(uma apologia da fé reformada) e outras obras. Em 1540,
Calvino casou-se com uma de sua paroquianas, a viúva Idelette de Bure.
Seu colega Farel oficiou a cerimônia.
Calvino: De Noyon a
Genebra
Jean Calvin ou João Calvino (1509-1564) nasceu em Noyon, uma pequena
cidade situada a cerca de 100 km a nordeste de Paris. Seu pai, Gérard
Cauvin, era um assistente administrativo do bispo local. Sua mãe, Jeanne,
morreu quando Jean, seu quarto filho, tinha apenas cinco ou seis anos de idade.
Uma autora argumenta que esta triste experiência certamente contribuiu
para o sentimento de ansiedade e inquietação pessoal
característico de Calvino.
Calvino viveu por vários anos com a aristocrática
família Montmor, à qual ele sempre se mostraria profundamente
agradecido. Ele dedicou o seu primeiro livro, em 1532, a um membro dessa
família, afirmando: "Eu lhe devo tudo o que sou e tenho... Quando menino,
fui criado em sua casa e iniciei os meus estudos com você. Assim sendo,
devo à sua nobre família o meu primeiro treinamento na vida e nas
letras."
Graças a interferência de seu pai, com a idade de doze anos
Calvino recebeu um benefício eclesiástico do bispo de Noyon. A
posse de um benefício exigia o ingresso em uma ordem menor –
João tornou-se sacristão e recebeu a tonsura – e o
exercício de tarefas eclesiásticas, no seu caso o cuidado de um
dos altares da catedral. A renda desse benefício era uma espécie
de bolsa de estudos através da qual o jovem Calvino, já
então um estudante precoce, pode continuar os seus estudos.
Em agosto de 1523 o jovem foi para Paris a fim de iniciar os seus estudos
formais. Inicialmente ele matriculou-se no Collège de la Marche, onde
aperfeiçoou o seu conhecimento do latim sob o grande mestre Mathurin
Cordier, que anos depois haveria de lecionar na Academia de Genebra. A seguir,
Calvino, dedicou-se aos estudos teológicos no Collège de Montaigu,
famoso por sua rígida disciplina e por sua péssima comida. Sendo
um estudante compulsivo, Calvino saiu-se muito bem nos seus estudos. Ao mesmo
tempo, sob influências humanistas, ele também adquiriu uma forte
antipatia pelo método escolástico de se fazer teologia.
Em 1528, por insistência de seu pai, Calvino mudou-se para
Orléans a fim de estudar Direito. Gérard Cauvin percebeu que o seu
inteligente filho provavelmente se daria melhor como advogado do que como
religioso. Mais tarde Calvino deu prosseguimento aos seus estudos
jurídicos em Bourges, onde também estudou grego com o erudito
evangélico alemão Melchior Wolmar. Timothy George observa que o
treinamento jurídico de Calvino exerceu duas influências
significativas sobre o seu futuro trabalho: proporcionou-lhe um sólido
fundamento em questões práticas que lhe foi muito útil no
seu esforço para remodelar as instituições de Genebra, e
abriu os seus olhos para a antigüidade clássica e o estudo dos
textos antigos.
Quando seu pai morreu, em 1531, Calvino sentiu-se livre para abandonar o
estudo do Direito em favor da sua verdadeira paixão, a literatura
clássica. Ele voltou para Paris e no ano seguinte publicou o seu primeiro
livro, uma edição crítica do tratado de Sêneca
Sobre a Clemência, juntamente com um extenso
comentário.
A sua transição de humanista a reformador foi marcada por
algo que ele certa vez descreveu como uma "conversão repentina"
(conversio subita). Isso aconteceu por volta de 1533-1534 e foi precedido
de um período de lutas, inquietação e dúvidas. Seus
primeiros biógrafos Beza e Colladon atribuem um importante papel na sua
conversão ao seu primo Robert Olivétan, para cujo Novo Testamento
francês Calvino escreveu um prefácio sob o título: "A todos
os que amam Jesus Cristo e o seu Evangelho" (1535). Esta foi a sua primeira obra
publicada como protestante. Sua conversão foi atestada publicamente
quando ele retornou a Noyon em maio de 1534 a fim de renunciar ao
benefício de que tinha usufruído por treze anos.
No Dia de Todos os Santos em 1533, Nicholas Cop, um amigo de Calvino que
acabara de ser eleito reitor da Universidade de Paris, fez um discurso de
abertura do ano letivo que chocou a audiência por causa de suas
idéias protestantes. Acusado de ser um propagandista luterano, Cop teve
de fugir para salvar a vida. Calvino, sob suspeita de ser o co-autor do
discurso, teve seus papéis apreendidos e tornou-se persona non grata em
Paris. Ele encontrou refúgio na casa de um amigo em Angoulême, onde
começou a escrever as suas Institutas da Religião
Cristã.
Um ano mais tarde, quando irrompeu a perseguição contra os
protestantes franceses, Calvino buscou proteção na cidade
reformada de Basiléia, a terra natal de Cop, que ali já se
encontrava. (Erasmo de Roterdã também estava residindo em
Basiléia, onde veio a falecer dois anos mais tarde, em 1536.) Em
março de 1536 veio a lume a primeira edição das
Institutas, um livro destinado a tornar-se "o principal documento da
teologia protestante no século dezesseis." Um bestseller quase da noite
para o dia, o livro foi distribuído rapidamente por toda a Europa. Houve
duas razões principais para tamanho sucesso: a sua carta
introdutória dirigida ao rei Francisco I constituiu-se numa poderosa
defesa dos evangélicos franceses perseguidos; todavia, o seu
propósito principal foi catequético – servir como um manual
para o ensino e a reforma das igrejas. A sua edição definitiva,
vastamente ampliada, seria publicada somente em 1559.
No verão de 1536 Calvino estava viajando com seu irmão e
meio-irmã de Paris a Estrasburgo, onde esperava instalar-se para uma vida
longamente esperada de tranqüilidade e estudo. Todavia, os exércitos
de Francisco I e do imperador Carlos V estavam empenhados em manobras militares
numa área onde os viajantes deveriam passar. Assim sendo, estes tiveram
de fazer um desvio pelo sul, através da cidade de Genebra, na fronteira
entre a França, Savóia e a Suíça. Por ironia,
Calvino não teve uma boa impressão da cidade e planejou permanecer
ali apenas uma noite.
O ardoroso Guillaume Farel (1489-1565) tinha levado a cidade a
abraçar a Reforma somente dois meses antes, através do voto
unânime de uma assembléia de cidadãos realizada em 25 de
maio de 1536. A obra da Reforma em Genebra estava intimamente ligada à
sua emancipação política da Casa de Savóia, de
convicção católica. Nos anos de 1526 e 1527 a cidade tinha
sido atraída para a órbita da Suíça e em 1533 Berna
promovera ativamente a causa da Reforma Protestante em Genebra.
Sabendo que Calvino estava na cidade, Farel irrompeu em seu quarto de hotel
e lhe implorou que permanecesse em Genebra e o ajudasse a consolidar a Reforma
recentemente abraçada. Calvino ficou chocado com a idéia, pois
sentiu-se despreparado para a tarefa. Ele poderia fazer mais pela igreja
através de seus tranqüilos estudos e de seus escritos. Nesse
momento, Farel trovejou a ira de Deus sobre Calvino com palavras que este jamais
iria esquecer – Deus amaldiçoaria o seu lazer e os seus estudos se
em tão grave emergência ele se retirasse, recusando-se a ajudar.
George observa que "a partir daquele momento, o destino de Calvino ficou ligado
ao de Genebra."
A primeira estadia de Calvino em Genebra durou menos de dois anos. O seu
primeiro catecismo e confissão de fé foram adotados, mas ele e
Farel entraram em conflito com as autoridades civis acerca de questões
eclesiásticas: disciplina, adesão à confissão de
fé e práticas litúrgicas. Em abril de 1538 eles foram
expulsos da cidade. Depois de outra breve estadia em Basiléia, Calvino
transferiu-se para Estrasburgo, seu destino original dois anos antes. Naquela
cidade ele haveria de passar os três anos mais felizes da sua vida
(1538-1541); provavelmente eles também foram os anos mais decisivos da
sua formação como reformador e teólogo.
Timothy George destaca cinco dimensões da vida de Calvino durante
esse período crucial. Primeiramente, ele pastoreou uma pequena
congregação de refugiados franceses. Em segundo lugar, ele foi
professor na escola de João Sturm, que serviria de modelo para a sua
futura Academia de Genebra. Calvino também escreveu extensamente: uma
edição inteiramente revista das Institutas (publicada em
agosto de 1539), a sua primeira tradução francesa (1541), o
Comentário de Romanos, e três escritos mais breves,
porém brilhantes – a Resposta a Sadoleto, "provavelmente a
melhor apologia da fé reformada escrita no século dezesseis," um
livro de liturgia, e um tratado sobre a Santa Ceia. Calvino ainda atuou como
diplomata eclesiástico, viajando para muitas cidades como conselheiro de
delegações protestantes em conferências interconfessionais
que procuravam restaurar a unidade entre protestantes e católicos.
Finalmente, ele contraiu núpcias com uma de suas próprias
paroquianas, Idelette de Bure, em uma cerimônia oficiada por seu amigo
Farel.
Em 1541 os genebrinos suplicaram que Calvino retornasse à sua
igreja. Persuadido por Martin Bucer (1491-1551), o grande líder da
Reforma em Estrasburgo, Calvino retornou a Genebra no dia 13 de setembro, viu-se
nomeado pastor da antiga catedral de Saint Pierre e foi "contemplado com um
salário razoável, uma casa ampla, e porções anuais
de 12 medidas de trigo e 250 galões de vinho."
O restante da carreira de Calvino como reformador foi simbolizado pelos
dois primeiros atos oficiais que ele empreendeu após o seu retorno. No
domingo seguinte ele voltou ao seu púlpito e simplesmente prosseguiu a
exposição das Escrituras no ponto em que a havia interrompido
três anos antes. Além disso, ele apresentou ao conselho da cidade
um plano detalhado para a ordem e o governo da igreja. As suas
Ordenanças Eclesiásticas requeriam a
instalação dos quatro ofícios de pastores, doutores,
presbíteros e diáconos, os quais correspondiam às
áreas de doutrina, educação, disciplina e
ação social. O conselho aprovou o plano de Calvino, mas este
passaria o restante da sua carreira tentando, nunca com pleno êxito, obter
o seu cumprimento.
II. João Calvino: Vida e Obra (2ª
parte: 1541-1564)
- 1541: por volta da ocasião em que Calvino escreveu a sua
Resposta a Sadoleto, o governo municipal de Genebra passou a ser
controlado por amigos seus, que o convidaram a voltar. Após alguns meses
de relutância, Calvino retornou à cidade no dia 13 de setembro de
1541 e foi nomeado pastor da antiga catedral de Saint Pierre. Logo em seguida,
escreveu uma constituição para a igreja reformada de Genebra (as
célebres Ordenanças Eclesiásticas), uma nova
liturgia e um novo catecismo, que foram logo aprovados pelas autoridades civis.
Nas Ordenanças, Calvino prescreveu quatro ofícios para a
igreja: pastores, mestres, presbíteros e diáconos. Os dois
primeiros constituíam a Venerável Companhia e os pastores e
presbíteros formavam o controvertido Consistório.
- Por causa de seu esforço em fazer da dissoluta Genebra uma cidade
cristã, durante catorze anos (1541-55) Calvino travou grandes lutas com
as autoridades e algumas famílias influentes (os "libertinos"). Nesse
período, ele também enfrentou alguns adversários
teológicos, o mais famoso de todos sendo o médico espanhol Miguel
Serveto, que negava a doutrina da Trindade. Depois da fugir da
Inquisição, Serveto foi parar em Genebra, onde acabou julgado e
executado na fogueira em 1553. A participação de Calvino nesse
episódio, ainda que compreensível à luz das
circunstâncias da época, é triste mancha na biografia do
grande reformador, mais tarde lamentada por seus seguidores.
- 1548: nesse ano ocorreu o falecimento de Idelette e Calvino nunca
mais tornou a casar-se. O único filho que tiveram morreu ainda na
infância. Não obstante, Calvino não ficou inteiramente
só. Tinha muitos amigos, inclusive em outras regiões de Europa,
com os quais trocava volumosa correspondência. Graças à sua
liderança, Genebra tornou-se famosa e atraiu refugiados religiosos de
todo o continente. Ao regressarem a seus países de origem, essas pessoas
ampliaram ainda mais a influência de Calvino.
- 1555: os partidários de Calvino finalmente derrotaram os
"libertinos." Os conselhos municipais passaram a ser constituídos de
homens que o apoiavam. Embora não tenha ocupado nenhum cargo
governamental, Calvino exerceu enorme influência sobre a comunidade,
não somente no aspecto moral e eclesiástico, mas em outras
áreas. Ele ajudou a tornar mais humanas as leis da cidade, contribuiu
para a criação de um sistema educacional acessível a todos
e incentivou a formação de importantes entidades assistenciais
como um hospital para carentes e um fundo de assistência aos estrangeiros
pobres.
- 1559: nesse ano marcante, ocorreram vários eventos
significativos. Calvino finalmente tornou-se um cidadão da sua cidade
adotiva. Foi inaugurada a Academia de Genebra, embrião da futura
universidade, destinada primordialmente à preparação de
pastores reformados. No mesmo ano, Calvino publicou a última
edição das Institutas. Ao longo desses anos, embora
estivesse constantemente enfermo, desenvolveu intensa atividade como pastor,
pregador, administrador, professor e escritor.
- 1564: João Calvino faleceu com quase 55 anos em 27 de maio de
1564. A seu pedido, foi sepultado discretamente em um local desconhecido, pois
não queria que nada, inclusive possíveis homenagens
póstumas à sua pessoa, obscurecesse a glória de Deus. Um
dos emblemas que aparecem nas obras do reformador mostram uma mão
segurando um coração e as palavras latinas "Cor meum tibi offero
Domine, prompte et sincere" (O meu coração te ofereço,
ó Senhor, de modo pronto e sincero).
- Escritos: a vasta produção literária de Calvino
preenche 59 grossos volumes da coleção conhecida como Corpus
Reformatorum. As Institutas em suas várias
edições ocupam quatro volumes. Cinco ou seis volumes contém
os escritos ocasionais e outros onze a correpondência de Calvino. Do
restante, nada menos de 35 volumes correspondem a suas obras bíblicas,
que incluem comentários de quase todo o Novo Testamento (exceto 2 e 3
João e Apocalipse) e de boa parte do Antigo Testamento (Pentateuco,
Josué, Salmos e Isaías), preleções sobre todos os
Profetas e sermões expositivos de muitos livros da Bíblia.
Calvino e Serveto
Augustus Nicodemus Lopes
Gerações sempre estão passando a limpo pontos obscuros
da história de seus antepassados. Assistimos, no momento, a tentativa de
vários grupos alemães de trazer a lume aspectos do envolvimento do
povo alemão no Holocausto que
serviriam para amenizar a sombra que paira sobre a nação pelo
assassínio de milhares de judeus durante a Segunda Guerra. Recentemente,
o Dr. Frans Leonard Schalkwijk, em sua obra Igreja e Estado no Brasil
Holandês, lançou luz sobre a figura do "traidor" Calabar,
demonstrando que a "traição" foi, na verdade, sua conversão
ao Evangelho pregado pelos holandeses reformados. Quem sabe o presente artigo
possa ajudar a passar a limpo alguns aspectos do tristemente famoso
episódio envolvendo João Calvino e a execução na
fogueira do médico espanhol Miguel Serveto, condenado por heresia contra
a Trindade, em 1553, em Genebra.
Preciso dizer desde o início que minha intenção
não é justificar a participação de Calvino no
incidente. Não posso concordar com a pena de morte como castigo para a
heresia, muito menos se o método de execução é
queimar vivo o faltoso. Até mesmo os maiores heróis do passado
tomaram decisões e fizeram declarações que nos causam,
séculos depois, estranheza e discordância. Calvino não
é nenhuma exceção. Meu alvo neste artigo não
é defendê-lo como se ele fosse sem defeitos. É claro que ele
os tinha. É claro que ele errou. Mas penso que, particularmente no caso
envolvendo a execução de Serveto por heresia em Genebra, durante o
tempo em que Calvino ali ministrava, nem sempre vozes se têm levantado
para apresentar outra versão dos fatos, versão esta enraizada em
documentos confiáveis. Episódios do passado devem ser entendidos
à luz dos conceitos e valores da época em que ocorreram. Meu alvo
é expor alguns deles que estavam vigentes na época de Calvino, bem
como trazer dados freqüentemente ignorados sobre o episódio.
Não podemos justificar Calvino por pedir a pena de morte para Serveto,
mas podemos entender os motivos que o levaram a isto.
Testemunhas que viveram em Genebra logo após a cidade haver
abraçado a Reforma protestante, viram-na como "o espelho e modelo de
verdadeira devoção, um abrigo para os refugiados perseguidos por
sua fé, um lugar seguro para treinar e enviar ao estrangeiro soldados do
Evangelho e ministros da Palavra." Logo que Genebra abraçou a Reforma
oficialmente e cortou suas lealdades para com o bispo e duque de Savóia,
a cidade foi inundada por refugiados de toda a Europa. Da noite para o dia
Genebra se tornou, depois de Wittenberg, Zurique e Estrasburgo, um monumento da
fé protestante.
Apesar dessas observações feitas por pessoas que viveram em
Genebra na época destes acontecimentos, as impressões que
recebemos de nossos professores de escola secundária provavelmente
têm pouco, ou nada, em comum com o
depoimento destas testemunhas oculares. Segundo Michael Horton, "abundam
imagens de um tirano vestido de toga preta, organizando o equivalente no
século XVI de uma polícia secreta moderna para assegurar que
ninguém, a qualquer hora ou em qualquer lugar, estivesse se divertindo."
É de admirar que, apesar dos testemunhos em contrário, prevaleceu
na opinião pública a idéia de que Genebra era uma teocracia
e Calvino era seu papa!
Em 25 de maio de 1536 os cidadãos de Genebra decidiram aderir
à Reforma protestante. Mas isso era só o começo. Sem
liderança qualificada, Genebra estava à beira do colapso civil e
religioso. O que a nova república precisava era de um jovem
visionário. Calvino chegou em Genebra fugindo das autoridades de Paris.
Ele havia inicialmente se encaminhado para a cidade reformada de Estrasburgo,
onde Martin Bucer estava pregando. Porém, o rei francês e o
imperador alemão estavam envolvidos em uma guerra que bloqueou o caminho
para a cidade. Frustrado, mas destemido, Calvino tomou um desvio para Genebra
durante a noite. De lá não passaria. Ficou, a pedido insistente de
Farel, líder protestante da cidade, e depois de algum tempo foi designado
pastor da igreja de São Pedro, a catedral de Genebra. Tensões
entre Calvino, Farel e o Conselho Municipal com respeito à
celebração da Ceia do Senhor, as atribuições da
Igreja e do Estado e o exercício da disciplina, acabaram por levar o
Conselho a expulsar Calvino de lá. E ele seguiu, exilado, para
Estrasburgo.
Ali (1538-41), Calvino sentiu-se como se estivesse no céu. Martin
Bucer tornou-se o seu mentor. Calvino assumiu o pastorado da igreja reformada
francesa da cidade. Durante este tempo, ele publicou alguns dos seus trabalhos
mais notáveis; ali casou-se com Idelette de Bure, a viúva de um
amigo anabatista. Calvino estava muito feliz ali, mas uma vez mais Genebra o
chamou.
O Conselho municipal escreveu a Calvino pedindo ajuda contra o ensino do
Cardeal Sadoleto, que procurava chamar Genebra de volta para a Igreja
Católica. Pediu desculpas e, com mais um apelo de Farel, convenceu
Calvino a voltar. Dr. McGrath, historiador da Universidade de Oxford, demonstra
como o mito do "grande ditador de Genebra" está enraizado em conceitos
populares difundidos especialmente pelas obras de Bolsec e Huxley, que fizeram
afirmações sem ter qualquer fato histórico que os apoiasse,
mas que não obstante acabaram por moldar a visão de Calvino que
hoje prevalece em muitos meios evangélicos. Calvino não tinha
qualquer acesso à máquina decisória do Conselho. Ele mesmo
não podia votar e nem concorrer a qualquer cargo político eletivo.
E mesmo quanto aos negócios da Igreja, Calvino quase não tinha
qualquer poder decisório.
A 25 de outubro de 1553 o Conselho municipal emitiu o decreto que condenava
Miguel Serveto a ser queimado na estaca por heresia. De fato, foi Calvino quem o
denunciou e quem pediu a pena de morte para ele. Vejamos agora o contexto em que
isso aconteceu.
- A pena de morte por heresia era prática geral da Idade Média.
- Serveto chegou a Genebra fugido de Viena e da França, onde havia sido
condenado à morte pela Igreja Católica, sob a
acusação de heresia contra a Trindade.
- Serveto foi a Genebra apesar dos avisos de Calvino de que isto poderia
custar-lhe a vida.
- Chegando em Genebra, se fez conhecido de Calvino em público. Foi
preso e, embora Calvino fosse um teólogo e advogado treinado (havia mesmo
sido empregado pelo Conselho municipal para elaborar a legislação
relativa à previdência social e ao planejamento dos serviços
de saúde pública), mesmo assim não foi o promotor do
processo eclesiástico contra Serveto. Lembremos que ele não tinha
nem os mesmos direitos de um cidadão comum!
- Calvino aceitava a pena de morte, não somente para os que matavam o
corpo de seus semelhantes, mas também para os que lhes matavam a alma
através do veneno mortal do erro religioso.
- Por outro lado, não foram as convicções
teológicas de Calvino que o levaram a isto. Não se pode culpar as
suas convicções, particularmente sua firme crença na
soberania de Deus, pela execução de Serveto.
- Calvino havia se correspondido com Serveto e há alguma
evidência nessas cartas de que ele tinha tentado até mesmo
encontrar-se clandestinamente com o anti-trinitário para tentar
convencê-lo do seu erro.
- Calvino estava nessa época no maior calor de suas batalhas contra o
Conselho municipal. O grupo dos Libertinos exercia dentro do Conselho forte
oposição a ele. Caso ele tivesse pedido a execução
de Serveto, a reação provável do Conselho teria sido negar.
- Há outro fato a ponderar. Quando foi dada a Serveto a escolha da
cidade onde seria julgado, ele escolheu Genebra. A outra opção era
Viena, de onde viera fugido. Por alguma razão, ele deve ter pensado que
suas chances de sobrevivência eram melhores em Genebra. Porém, o
Conselho municipal da cidade, conduzido pela facção dos
Libertinos, totalmente contrários a Calvino, estava determinado a mostrar
que Genebra era uma cidade reformada e comprometida com os credos. E assim,
Serveto foi condenado a ser queimado vivo.
- Calvino suplicou ao Conselho que executasse Serveto de uma maneira mais
humanitária do que o ritual tradicional de queima de hereges. Mas, claro,
o Conselho municipal recusou o argumento de Calvino. Farel visitou Calvino
durante a execução. Calvino estava tão transtornado, como
foi mais tarde comunicado, que Farel partiu sem mesmo dizer adeus.
- A execução de Serveto foi aprovada por todas as demais
cidades-estados reformadas e por todos os reformadores. Lutero e Zwinglio
já havia morrido, mas certamente haveriam concordado. O próprio
Lutero havia consentido na execução de camponeses revoltosos. Os
demais, Bullinger, Beza, Bucer, etc., todos deram apoio irrestrito a Calvino.
Estes são alguns fatos que devemos lembrar antes de
chamarmos Calvino de "assassino." A propósito, durante este mesmo
período trinta e nove hereges foram queimados em Paris, vítimas da
Inquisição católica, que estava sendo aplicada com rigor na
Espanha, Itália e outras partes de Europa. Apesar do fato de que muitos
que não eram ortodoxos buscaram (e encontraram) refúgio em
Genebra, fugindo das autoridades católicas, Serveto foi o único
herege a ser queimado naquela cidade durante a distinta carreira de Calvino.
Até mesmo os judeus foram convidados pelas cidades-estados
reformadas para se abrigarem nelas, fugindo da Inquisição. O
puritano Oliver Cromwell, líder do
Parlamento inglês por um período, mais tarde tornou a
Inglaterra um abrigo seguro para os dissidentes religiosos, e especialmente para
os judeus. O mesmo ocorreu nos Países Baixos (atual Holanda). E mesmo
hoje, Genebra e Estrasburgo, outrora reformadas, figuram no topo da lista como
cidades que se destacam em termos de direitos humanos e relações
internacionais.
O que muitos ignoram é que Calvino era um pastor atencioso, que
visitava pacientes terminais de doenças contagiosas no hospital que ele
mesmo havia estabelecido, embora fosse advertido dos perigos de contágio.
Foi ele quem instou o Conselho a afiançar empréstimos a baixos
juros para os pobres. Foi ele quem defendeu a educação universal e
gratuita para todos os habitantes da cidade, como Lutero e outros reformadores
tinham feito. Sua preocupação diária em 1541 era como dar a
Genebra uma universidade.
Eis aí o famoso "tirano de Genebra"! Penning escreve que, no fim da
vida de Calvino, ao ser visto nas ruas da cidade, os moradores diziam:
"Lá vai o nosso mestre Calvino." Em 10 de março de 1564, o
Conselho decretou um dia de oração pela saúde de Calvino e
o reformador recuperou-se durante um tempo. Na Páscoa desse ano, Calvino
foi levado à igreja carregado em sua cadeira para participar da Ceia do
Senhor, devido ao seu extremo estado de fraqueza. Quando a enorme
congregação o viu chegar assim, começou a lamentar-se e a
chorar. No sábado, 27 de maio, Calvino morreu aos cinqüenta e cinco
anos de idade. Quando à noite as notícias da sua morte se
espalharam pela cidade, "Genebra lamentou-se como uma nação
lamenta quando perde seu benfeitor," escreve Penning.
A execução de Serveto permanece como uma mancha na
história da distinta carreira de Calvino em Genebra. Usá-la,
porém, para denegrir sua imagem, para atacar a sua teologia e para
envergonhar os calvinistas, é expediente preconceituoso de quem
não deseja ver todos os fatos.
Presbiterianos: Quem
Somos e de Onde Viemos
III. João Calvino: Teologia (1ª
parte)
- As concepções teológicas de Calvino encontram-se em
seis categorias de escritos do reformador:
- As Institutas: Calvino produziu ao todo oito edições do
texto latino (1536-1559) e cinco traduções para o francês. A
1ª edição tinha apenas seis capítulos; a última
totalizou oitenta. Equivale em tamanho ao Antigo Testamento mais os Evangelhos
sinóticos e segue o padrão geral do Credo dos Apóstolos.
Visava ser um guia para o estudo das Escrituras.
Livro I: O
Conhecimento de Deus, o Criador: o duplo conhecimento de
Deus, as Escrituras, a Trindade, a criação e a
providência
Livro II: O Conhecimento de Deus, o Redentor: a queda e a
corrupção
humana, a Lei, o Antigo e o Novo Testamento, Cristo o Media-
dor – sua pessoa (profeta, sacerdote, rei) e sua obra
(expiação)
Livro III: A Maneira Como Recebemos a Graça de Cristo, Seus
Benefícios
e Efeitos: fé e regeneração, arrependimento,
vida cristã,
justificação, predestinação,
ressurreição final
Livro IV: Os Meios Externos Pelos Quais Deus nos Convida Para a
Sociedade de Cristo: a igreja, os sacramentos, o governo
civil
- Comentários: são um complemento das Institutas. Calvino
escreveu comentários de todos os livros do Novo Testamento, exceto 2 e 3
João e Apocalipse, e sobre o Pentateuco, Josué, Salmos e
Isaías.
- Sermões: Calvino expunha sistematicamente os livros da
Bíblia. Ele costumava pregar sobre o Novo Testamento aos domingos e sobre
o Velho Testamento durante a semana. Seus sermões eram anotados
taquigraficamente por um grupo de leais refugiados franceses. A série
Corpus Reformatorum contém 872 sermões de Calvino.
- Folhetos e tratados: temas apologéticos (contra
católicos e anabatistas) e gerais.
- Cartas: escritas a outros reformadores, soberanos, igrejas
perseguidas e protestantes encarcerados, pastores, colportores.
6. Escritos litúrgicos e catequéticos:
confissão de fé, catecismo, saltério.
I) A Perspectiva Teológica de Calvino.
1. O conhecimento de Deus:
- A verdadeira sabedoria consiste de dois elementos: o conhecimento de Deus e
o conhecimento de nós mesmos. Daí a importância da
revelação. Não podemos conhecer a Deus em sua
essência, mas somente na medida em que ele se dá a conhecer a
nós.
- Existe um duplo conhecimento de Deus: como criador e como redentor. Todo ser
humano é essencialmente uma criatura religiosa, tendo em si a "semente da
religião." Deus se revela não só através desse senso
inato de si mesmo, mas também através das maravilhas da
criação.
- Esse conhecimento de Deus revelado na natureza exige uma resposta humana,
seja de piedade ou idolatria. O fim último da piedade não é
a salvação individual, mas a glória de Deus.
2. A condição humana:
- O pecado torna a revelação natural totalmente insuficiente
para o correto conhecimento de Deus. Ela tem somente uma função
negativa – deixar os seres humanos inescusáveis por sua idolatria.
O ser humano encontra-se perdido como que em um labirinto. A imagem de Deus
ainda permanece nele, mas foi totalmente distorcida e desfigurada.
3. O Deus que se revela:
- Todo verdadeiro conhecimento de Deus decorre do fato de que Deus, em sua
misericórdia, houve por bem revelar-se. Calvino usa aqui o conceito de
"acomodação" ou adaptação. Deus desce ao nosso
nível, adapta-se à nossa capacidade. Vemos isso na
encarnação, nas Escrituras, nos sacramentos e na
pregação.
- Nas Escrituras, Deus balbucia a nós, fala-nos como uma ama fala a um
bebê. Outra figura: a Bíblia é como óculos divinos
para os que são espiritualmente míopes. Assim, a verdadeira
teologia é uma reverente reflexão sobre a revelação
escrita de Deus; não deve pois perder-se em "vãs
especulações," mas ater-se às Escrituras.
4. A doutrina das Escrituras:
- A Bíblia é a Palavra de Deus inspirada, revelada em linguagem
humana e confirmada ao crente pelo testemunho interno do Espírito Santo.
Calvino tratava o texto biblico tanto reverentemente quanto criticamente (por
exemplo, Atos 7.14 e Gn 46.27). A capacidade de reconhecer a Bíblia como
a Palavra de Deus não depende de provas, mas é um dom gratuito do
próprio Deus.
- Calvino afirma a unidade entre a Palavra e o Espírito contra dois
erros opostos. Os católicos subestimavam o papel da
iluminação ao subordinarem as Escrituras à igreja. Calvino,
como Lutero, afirmou que as Escrituras foram o ventre do qual nasceu a igreja, e
não vice-versa. Por outro lado, os "fanáticos" concentravam-se de
tal modo no Espírito que subestimavam a Palavra escrita.
- Toda a teologia de Calvino foi elaborada dentro destes parâmetros: a
objetividade da revelação divina nas Escrituras e o testemunho
iluminador do Espírito Santo no crente. A verdadeira teologia deve
manter-se dentro dos limites da revelação.
- A função principal das Escrituras é a nossa
edificação, capacitando-nos a ver o que de outro modo seria
impossível. Seu propósito é revelar o que precisamos saber
sobre Deus e nós mesmos.
II) O Deus Que
Age.
1. O Deus triúno:
- Calvino deu mais atenção à doutrina da trindade que
Lutero ou Zuínglio. Ele basicamente sustentou a doutrina da igreja antiga
de que Deus é uma única essência que subsiste em três
pessoas distintas: Pai, Filho e Espírito Santo. Ele advertiu quanto a
especulações sobre o mistério da essência divina e
recusou-se a torcer a Escrituras para sustentar essa doutrina.
- Como no caso de Atanásio, no quarto século, a Trindade era
fundamental por ser um testemunho da divindade de Jesus Cristo e, assim, da
certeza da salvação realizada por ele. Somente alguém que
era verdadeiramente Deus poderia redimir os que estavam totalmente perdidos.
- A fé na trindade é confessada na liturgia do batismo e na
doxologia, não para definir plenamente o ser de Deus, mas somente para
permanecer em silêncio diante do mistério da sua presença
(Agostinho).
2. Criação:
- A seguir, ainda no Livro I das Institutas, Calvino descreve a
atividade de Deus em relação ao mundo na criação e
na providência. O mundo criado é o "deslumbrante teatro" da
glória de Deus. Depois que as pessoas são iluminadas pelo
Espírito Santo e têm o auxílio dos "óculos" das
Escrituras, a criação pode fornecer um conhecimento de Deus mais
lúcido e edificante (teologia da natureza), fortalecendo a fé dos
crentes.
- Deus criou o mundo a partir do nada (ex nihilo). O mundo foi criado
para a glória de Deus, mas também para o benefício da
humanidade. Os crentes devem contemplar a bondade de Deus em sua
criação de tal modo que seus próprios
corações sejam despertados para o louvor (Jonathan Edwards).
3. Providência:
- Calvino reflete acerca do caráter precário e incerto da vida
humana sobre a terra. Sua doutrina da providência não reflete um
otimismo piedoso, mas resulta de uma avaliação realista das
vicissitudes da vida e da ansiedade que elas produzem.
- Ele critica duas concepções errôneas: o fatalismo e o
deísmo. A doutrina estóica do destino pressupõe que todos
os eventos são governados pela necessidade da natureza. Calvino pondera
que, na concepção cristã, o "regente e governador de todas
as coisas" não é uma força impessoal, mas o Criador pessoal
do universo, que em sua sabedoria decretou desde a eternidade o que iria fazer e
agora em seu poder realiza o que decretou.
- Ele também combate a idéia de que Deus fez o mundo no
princípio, mas depois o deixou entregue a si mesmo. Como mostram as
Escrituras, Deus está contínua e eficazmente envolvido no governo
da sua criação. Assim, a providência é uma
espécie de continuação do processo criador, tanto nos
grandes como nos pequenos eventos.
- Essa ênfase na atividade imediata e direta de Deus no mundo leva
Calvino a rejeitar a teoria traducianista da origem da alma, a idéia de
que a alma é transmitida de geração a geração
pelo processo da procriação humana (Lutero). Calvino cria que,
toda vez que uma criança é gerada, Deus cria uma nova alma ex
nihilo.
- Apesar de sua interação direta com o mundo, Deus também
pode usar causas secundárias para realizar a sua vontade. Ele pode
até mesmo usar instrumentos maus (como Satanás e suas hostes),
transformando o mal em bem.
- Se Deus decreta cada evento, onde fica a responsabilidade humana? Calvino
responde que a providência de Deus não atua de modo a negar ou
tornar desnecessário o esforço humano. As próprias
ações humanas são um dos meios pelos quais Deus realiza os
seus propósitos.
- O governo divino de todos os eventos não torna Deus o autor do
pecado? Assim como Lutero, Calvino distingue entre a vontade revelada e a
vontade oculta de Deus. Ao enviar Cristo para a cruz, a Bíblia diz que
Herodes e Pilatos estavam cumprindo o que Deus havia determinado (Atos 4.27-28).
Ao mesmo tempo, eles também estavam violando a vontade expressa de Deus
revelada em sua lei.
- Vez após vez Calvino apela ao mistério e incompreensibilidade
das ações de Deus. O problema do mal é tão
difícil precisamente porque não podemos entender como as
tragédias da vida contribuem para a maior glória de Deus.
- A fé verdadeira percebe que, por trás dos sofrimentos, que em
si mesmos são maus, existe um Pai de justiça, sabedoria e amor que
prometeu nunca abandonar-nos. Nessas questões, não se pode
submeter Deus aos padrões humanos de julgamento.
III)
O Cristo Que Salva.
1. A doutrina do pecado:
- A partir do Livro II das Institutas, Calvino trata de Deus, o
Redentor. Calvino geralmente é visto como o autor de uma
concepção totalmente pessimista do ser humano. Todavia, o
reformador sempre mostrou profunda apreciação pelas
realizações humanas na ciência, literatura, arte e outras
áreas, atribuindo-as à graça comum de Deus. A imagem de
Deus no ser humano está terrivelmente deformada, mas não
inteiramente apagada.
- Todavia, as muitas virtudes e dons da natureza humana nada valem para
alcançar a justificação. Para entender plenamente a
natureza humana, é preciso olhar para Jesus Cristo, o verdadeiro ser
humano.
- Calvino define o pecado original como "uma depravação e
corrupção hereditária de nossa natureza, difundida em todas
as partes da alma, que primeiramente nos torna sujeitos à ira de Deus e
depois também produz em nós aquelas obras que a Escritura chama de
‘obras da carne’" (Inst., 2.1.8).
- Vale destacar dois aspectos: (a) não podemos simplesmente culpar
Adão por nossa condição pecaminosa; o pecado de Adão
é também o nosso pecado; (b) o pecado original não se
limita a uma dimensão da pessoa humana, mas permeia toda a vida e a
personalidade.
- Pecado não é somente o ato, mas a inclinação da
própria natureza humana em sua condição decaída.
Cometemos pecados porque somos pecadores. A essência do pecado de
Adão, que se repete em diferentes graus nos seus descendentes, é
orgulho, desobediência, incredulidade e ingratidão. Somente a
consciência da nossa total pecaminosidade pode preparar-nos para ouvir as
boas novas da libertação do pecado através de Jesus Cristo.
2. A pessoa de Cristo:
- A teologia de Calvino é profundamente cristocêntrica e o tema
que domina a sua cristologia não é o conhecimento de Cristo em sua
essência, mas em seu papel salvífico como Mediador. A
revelação de Deus em Cristo é o supremo exemplo da sua
acomodação à capacidade humana. Precisamos de um Mediador
tanto por sermos pecadores quanto por sermos criaturas.
- Cristo como Mediador é verdadeiro Deus e verdadeiro homem (1 Tm
3.16). Ele é o Verbo eterno de Deus gerado do Pai antes de todas as eras,
que, em sua encarnação, ocultou a sua divindade sob o "véu"
da sua carne.
- Uma formulação peculiar da cristologia de Calvino é o
chamado extra Calvinisticum: a noção de que o Filho de Deus
tinha uma existência "também fora da carne." Ver Institutas
2.13.4.
3. A obra de Cristo:
- Mais importante que conhecer a essência de Cristo é conhecer
com que propósito ele foi enviado pelo Pai. Calvino explicou a obra de
Cristo em conexão com o seu tríplice ofício de Profeta, Rei
e Sacerdote, todos os quais eram ungidos no Antigo Testamento, prefigurando o
Messias.
- Como Profeta, ele foi ungido pelo Espírito para ser arauto e
testemunha da graça de Deus, fazendo-o através do seu
ministério de ensino e pregação. Na qualidade de Rei,
Cristo atua como o vice-regente do Pai no governo do mundo; uma dia sua
vitória e senhorio se manifestarão plenamente. Em seu
ofício sacerdotal, ele foi um Mediador puro e imaculado que aplacou a ira
de Deus e fez perfeita satisfação pelos pecados humanos.
- Calvino observa que Deus poderia resgatar os seres humanos de outra maneira,
mas quis fazê-lo através do seu Filho. Ele dá ênfase
não tanto à justiça de Deus, mas à sua ira e amor,
ambas ilustradas na obra de Cristo. Não somente a morte de Cristo tem
efeito redentor, mas toda a sua vida, ensinos, milagres e sua contínua
intercessão nos céus, à destra do Pai. A obra
expiatória de Cristo tem também um aspecto subjetivo, pelo qual
somos chamados a uma vida de obediência.
Fonte: Timothy George, A Teologia dos
Reformadores (S. Paulo: Vida Nova). Original em inglês: Theology of
the Reformers (Nashville: Broadman, 1988), 185-223.
Presbiterianos: Quem
Somos e de Onde Viemos
IV. João Calvino: Teologia (2ª
parte)
IV) A Vida no Espírito.
- Toda a obra de Calvino pode ser interpretada como um esforço de
formular uma espiritualidade autêntica, isto é, uma vida no
Espírito, baseada na Palavra de Deus revelada, vivida no contexto da
igreja e direcionada para o louvor e a glória de Deus. O Livro 3 das
Institutas é um belo tratado sobre a vida cristã no qual
Calvino elabora uma grande quantidade de tópicos como a obra do
Espírito Santo, fé e regeneração, arrependimento,
negação de si mesmo, justificação,
santificação, oração, eleição e
ressurreição. Três deles merecem destaque especial:
1. Fé:
- Calvino começa por rejeitar certas noções equivocadas:
"fé histórica" (mero assentimento intelectual), "fé
implícita" (submissão ao juízo coletivo da igreja),
"fé informe" (estágio preliminar da fé). O que é
então a fé? "Um conhecimento firme e certo da benevolência
de Deus para conosco, fundada na verdade da promessa dada gratuitamente em
Cristo, revelada a nossas mentes e selada em nossos corações pelo
Espírito Santo" (Institutas 3.2.7).
- Antes de ser uma capacidade inata do ser humano, é um dom
sobrenatural do Espírito Santo. É também uma resposta
humana genuína pela qual os eleitos ingressam na sua nova vida em Cristo.
Entre os efeitos da fé estão a regeneração, o
arrependimento e o perdão dos pecados.
- O arrependimento é "a verdadeira conversão de nossa vida a
Deus, procedente de um sincero e real temor de Deus, que consiste da
mortificação de nossa carne e do velho homem e da
vivificação do espírito" (Inst. 3.3.5). É um
processo contínuo que deve estender-se por toda a vida.
- Embora possa ser assaltada por dúvidas, a fé verdadeira por
fim triunfará sobre todas as dificuldades. Os descrentes podem, quando
muito, ter uma "fé temporária." Já os crentes verdadeiros,
ainda que cometam pecados, mesmo pecados graves, são sustentados pelo
Espírito e finalmente não irão perder-se.
2. Oração:
- O mais longo capítulo das Institutas é dedicado
à oração, que Calvino chamou "o principal exercício
da fé e o meio pelo qual recebemos diariamente os benefícios de
Deus." Porém, se toda a vida cristã, desde o primeiro passo
até a perseverança final, é um dom de Deus, por que orar? A
resposta é que os fiéis não oram para informar ou convencer
Deus de alguma coisa, mas para expressarem sua fé, confiança e
dependência dele.
- Calvino propôs quatro regras para a oração: (a)
reverência: evitar toda ostentação ou
arrogância; (b) contrição: deve proceder de um
coração arrependido; (c) humildade: ter em mente a
glória de Deus; (d) confiança: firme esperança de
que a oração será respondida. Isso se aplica tanto à
oração individual quanto às orações coletivas
da igreja. O oração é a parte principal do culto a Deus (Is
56.7; Mt 21.13).
3.
Predestinação:
- Calvino usou a palavra "predestinação" pela primeira vez na
edição de 1539 das Institutas. A sua doutrina nessa
área não tem nada de original: nos pontos essenciais ele
não difere de Lutero, Zuínglio ou Bucer, os quais recorreram todos
a Agostinho. A inovação de Calvino consistiu no lugar em que
colocou a doutrina em seu sistema teológico, não em conexão
com a doutrina da providência (Livro I), mas no final do Livro III, que
trata da aplicação da obra da redenção.
- Calvino não começou com a predestinação e depois
foi para a expiação, regeneração,
justificação e outras doutrinas. Ele a introduziu como um problema
resultante da pregação do evangelho. Por que, quando o evangelho
é proclamado, alguns respondem e outros não? Nessa diversidade,
ele afirmou, torna-se manifesta a maravilhosa profundidade do juízo de
Deus. Trata-se, pois, de uma preocupação pastoral.
- A doutrina de Calvino sobre a predestinação pode ser resumida
em três termos: (a) absoluta: não é condicionada por
quaisquer circunstâncias finitas, mas repousa exclusivamente na vontade
imutável de Deus; (b) particular: aplica-se a indivíduos e
não a grupos de pessoas; Cristo não morreu por todos
indiscriminadamente, mas somente pelos eleitos; (c) dupla: Deus em sua
misericórdia ordenou alguns indivíduos para a vida eterna e em sua
justiça ordenou outros para a condenação eterna.
- Calvino cria que essa doutrina era claramente encontrada nas Escrituras e
não queria dizer nada sobre a predestinação que não
pudesse ser tomado da Bíblia. Ele também não permitiu que a
doutrina fosse usada como desculpa para não proclamar o evangelho a
todos. De fato, na história da igreja, alguns dos maiores evangelistas e
missionários foram firmes defensores dessa doutrina (George Whitefield,
Jonathan Edwards).
V. Os Meios Externos de
Graça.
- No Livro IV das Institutas, Calvino trata dos seguintes temas: a
igreja verdadeira e seus oficiais, o desvios do romanismo, os sacramentos, o
governo civil. Calvino também aborda essas questões nos seus
comentários das Epístolas Pastorais.
1.
Pressupostos:
- Calvino, mais que os outros reformadores, preocupou-se com a
relação entre a igreja invisível e a igreja como uma
instituição que pode ser reconhecida como verdadeira
através de certas marcas distintivas. As marcas que constituem a igreja
visível são, acima de tudo, a correta pregação da
Palavra e a fiel ministração dos sacramentos. Embora não
tenha incluído a disciplina eclesiástica entre as marcas da
igreja, ele certamente a valorizava.
- A preocupação de Calvino com a ordem e a forma da
congregação resultou de sua ênfase na
santificação como o processo e o alvo da vida cristã. Em
contraste com a ênfase luterana unilateral na justificação,
Calvino deu precedência à santificação. O contexto da
santificação é a igreja visível, na qual os eleitos
participam dos benefícios de Cristo não como indivíduos
isolados, mas como membros de um corpo. Assim, a igreja visível torna-se
uma "comunidade santa."
- A eclesiologia de Calvino tem dois polos em contínua tensão: a
eleição divina (igreja invisível) e a
congregação local (igreja visível). Por isso, a igreja ao
mesmo tempo enfrenta perigos mortais e é preservada por Deus. A igreja
visível é um corpo misto composto de trigo e joio; já a
igreja invisível compõe-se de todos os eleitos (inclusives anjos,
fiéis do Velho Testamento e eleitos que se encontram fora da igreja
verdadeira).
2. A igreja como mãe e
escola:
- A igreja é a mãe de todos os crentes porque os leva ao novo
nascimento através da Palavra de Deus, bem como os educa e alimenta
durante toda a sua vida. Esse caráter maternal da igreja é visto
de modo especial na sua ministração dos sacramentos.
- O batismo é o ingresso do crente na igreja e o símbolo de sua
união com Cristo. Ele visa confirmar a fé dos eleitos, mas deve
ser aplicado a todos os que estão na igreja visível. Quanto
à Santa Ceia, Calvino adotou uma posição
intermediária entre Lutero e Zuínglio. Embora Cristo esteja nos
céus à destra do Pai, a ceia não é mero
símbolo, mas um meio de "verdadeira participação" em Cristo
(Inst. 4.17.10-11).
- A igreja é também uma escola que instrui seus alunos no
caminho da santidade. Essa instrução perdura por toda a vida e
também se dirige aos alunos rebeldes, na esperança de que um dia
sejam transformados.
3. Ordem e
ofício:
- Calvino encontrou nas Escrituras o quádruplo ofício de pastor,
mestre, presbítero e diácono, que é a base da forma de
governo incorporada nas Ordenanças Eclesiásticas.
- Ele cria que os ofícios de profeta, apóstolo e evangelista
eram temporários e cessaram no final da era apostólica. Dentre os
ofícios que permaneceram, o de pastor é o mais honroso e o mais
necessário para a ordem e o bem-estar da igreja. Depois da
aceitação de doutrinas puras, a nomeação de pastores
é a coisa mais importante para a edificação espiritual da
igreja.
- Para ser escolhido, o aspirante deve preparar-se e depois ser comissionado
publicamente segundo a ordem prescrita pela igreja. Em Genebra, esse processo
incluía a companhia de pastores, o conselho municipal e a igreja. A
ordenação é um rito solene de instalação no
ofício pastoral.
- As funções dos pastores são ensino,
pregação, governo e disciplina. Os pastores devem ter um profundo
conhecimento das Escrituras para que possam instruir corretamente as suas
igrejas. Sua pregação deve revelar conhecimento e habilidade para
ensinar. A pregação visa a edificação da igreja e
deve ser prática e perspicaz. A função disciplinar do
pastor requer que a sua própria conduta esteja acima de qualquer
suspeita.
4. A igreja e o mundo:
- Calvino rejeitou o conceito anabatista de que a igreja devia isolar-se da
sociedade e cultura circundantes. A relação entre a igreja e o
mundo inclui tanto tensão quanto interação. O seu
entendimento do governo de Deus e da soberania de Cristo sobre toda a
criação, e não somente sobre a igreja, levou-o a defender a
participação na sociedade.
- O governo de Cristo deve manifestar-se idealmente através de
governantes piedosos. Os magistrados deviam manter a ordem cívica e a
uniformidade religiosa. Todavia, igreja e estado tem esferas separadas e
autônomas de atuação. Os cristãos devem obedecer
até mesmos os governantes que oprimem a igreja, orando por seu bem-estar,
porque foram instituídos por Deus.
O
Pensamento Social de Calvino
O conceito de Calvino acerca de um quádruplo ministério
revela que a assistência social estava entre as suas principais
preocupações. Sua primeira e mais importante
contribuição nessa área foi teórica – suas
idéias e princípios teológicos concernentes à
responsabilidade da igreja cristã para com os desafortunados.
Vários autores observam que Calvino jamais estabeleceu uma
conexão entre riqueza ou pobreza e o favor ou desfavor de Deus em
relação a indivíduos. W. Fred Graham argumenta que
Calvino nunca viu a pobreza e o infortúnio como evidências do
desfavor de Deus para com o indivíduo afligido, nem considerava a
prosperidade como um sinal da bênção de Deus por causa de
méritos pessoais ou como evidência da eleição para a
salvação.1
Antes, o reformador entendeu a riqueza e a pobreza como expressões
do favor ou do julgamento de Deus sobre toda a comunidade, que então
deveria redistribuir os seus recursos com vistas ao bem-comum. Calvino pergunta:
"Por que é então que Deus permite a existência da pobreza
aqui embaixo, a não ser porque ele deseja dar-nos ocasião para
praticarmos o bem?"2
Em muitas oportunidades, Calvino condenou severamente a ganância e a
insensibilidade dos ricos, porque ele estava preocupado com que as
dádivas de Deus fossem usadas para o benefício de toda a
comunidade do povo de Deus. Graham argumenta que não foi ao ascetismo que
Calvino conclamou os ricos de Genebra, mas à regra do amor: "De fato, se
existe um tema central no pensamento social e econômico de Calvino,
é que a riqueza vem de Deus a fim de ser utilizada para auxiliar os
nossos irmãos."3 A solidariedade da comunidade humana é
tal que torna-se inexcusável alguns terem abundância e outros
passarem necessidade.4 Ronald Wallace observa: "[Calvino] insistia
que, como uma lei da vida, onde havia riqueza abundante também deveria
haver doações generosas dos ricos aos pobres."5
Um dos textos que Calvino utiliza mais freqüentemente nos seus
escritos e ensinos é o apelo de Isaías ao homem rico de Israel:
"... e não te escondas do teu semelhante" (58:7), que ele interpreta como
uma referência ao "teu pobre."6 Em outro sermão, ele
pondera: "Deus mistura os ricos e os pobres para que eles possam encontrar-se e
ter comunhão uns com os outros, de modo que os pobres recebam e os ricos
repartam."7
Os pobres são irmãos e devem ser tratados como tais. Graham
pondera: "Não existe uma beneficência fria no plano calvinista; a
beneficência deve ser praticada com compaixão."8 A
contribuição não deve ser uma expressão de
legalismo, mas de espontaneidade e liberalidade.9
Graham acentua a ética altruísta articulada por Calvino no
terreno social e econômico: "A solidariedade humana é tal que
qualquer coisa que contribua para o empobrecimento de uma parte da sociedade
é, ipso facto, maléfica."10 Quando Calvino pregava
sobre a proibição vetotestamentária de se privar um credor
pobre da sua mó superior, como garantia de uma dívida, ele falava
com implicações que hoje podem ser entendidas no sentido de que
nenhuma sociedade jamais deve privar qualquer pessoa da oportunidade de
trabalhar para ganhar o seu sustento.11
O reformador ficava particularmente exasperado com aqueles que praticavam o
monopólio e a especulação envolvendo
alimentos.12 Assim sendo, ele defendeu alguma
intervenção por parte do governo para a proteção do
bem comum, a fim que "os homens respirem, comam, bebam e mantenham-se aquecidos"
(Inst. 4.20.3). Como William C. Innes observou, Calvino
insistiu
que a caridade cristã e uma preocupação ética
pelo bem da comunidade fossem os fatores determinantes em todas as
decisões econômicas. A sua influência e ensinos
doutrinários incentivaram e promoveram o interesse já existente em
Genebra por uma assistência ampla e respeitosa aos pobres.13